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Traduzido por José Pedro Xavier Pinheiro
INFERNO
CANTO I
[ Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante o segue. ]
DA nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.
Dizer qual era é cousa tão penosa,
Desta brava espessura a asperidade,
Que a memória a relembra inda cuidosa.
Na morte há pouco mais de acerbidade;
Mas para o bem narrar lá deparado
De outras cousas que vi, direi verdade.
Contar não posso como tinha entrado;
Tanto o sono os sentidos me tomara,
Quando hei o bom caminho abandonado.
Depois que a uma colina me cercara,
Onde ia o vale escuro terminando,
Que pavor tão profundo me causara.
Ao alto olhei, e já, de luz banhando,
Vi-lhe estar às espaldas o planeta,
Que, certo, em toda parte vai guiando.
Então o assombro um tanto se aquieta,
Que do peito no lago perdurava,
Naquela noite atribulada, inquieta.
E como quem o anélito esgotava
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
Olha o mar perigoso em que lutava,
O meu ânimo assim, que treme ansioso,
Volveu-se a remirar vencido o espaço
Que homem vivo jamais passou ditoso.
Tendo já repousado o corpo lasso,
Segui pela deserta falda avante;
Mais baixo sendo o pé firme no passo.
Eis da subida quase ao mesmo instante
Assoma ágil e rápida pantera
Tendo a pele por malhas cambiante.
Não se afastava de ante mim a fera;
E em modo tal meu caminhar tolhia,
Que atrás por vezes eu tornar quisera.
No céu a aurora já resplandecia,
Subia o sol, dos astros rodeado,
Seus sócios, quando o Amor divino um dia
A tais primores movimento há dado.
Me infundiam desta arte alma esperança
Da fera o dorso alegre e mosqueado,
A hora amena e a quadra doce e mansa.
De um leão de repente surge o aspecto,
Que ao meu peito o pavor de novo lança.
Que me investisse então cuido inquieto;
Com fome e raiva atroz fronte levanta;
Tremer parece o ar ao seu conspeto.
Eis surge loba, que de magra espanta;
De ambições todas parecia cheia;
Foi causa a muitos de miséria tanta!
Com tanta intensa torvação me enleia
Pelo terror, que o cenho seu movia,
Que a mente à altura não subir receia.
Como quem lucro anela noite e dia,
Se acaso o tempo de perder lhe chega,
Rebenta em pranto e triste se excrucia,
A fera assim me fez, que não sossega;
Pouco a pouco me investe até lançar-me
Lá onde o sol se cala e a luz me nega.
Quando ao vale eu já ia baquear-me
Alguém fraco de voz diviso perto,
Que após largo silêncio quer falar-me.
Tanto que o vejo nesse grão deserto,
— “Tem compaixão de mim” — bradei transido —
“Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”
“Homem não sou” tornou-me — “mas hei sido,
Pais lombardos eu tive; sempre amada
Mântua lhes foi; haviam lá nascido.
“Nasci de Júlio em era retardada,
Vivi em Roma sob o bom Augusto,
Quando em deuses havia a crença errada.
“Poeta, decantei feitos do justo
Filho de Anquíses, que de Tróia veio,
Depois que Ílion soberbo foi combusto.
“Mas por que tornas da tristeza ao meio?
Por que não vais ao deleitoso monte,
Que o prazer todo encerra no seu seio?”
“— Oh! Virgílio, tu és aquela fonte
Donde em rio caudal brota a eloqüência?”
Falei, curvando vergonhoso a fronte. —
“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!
Valham-me o longo estudo, o amor profundo
Com que em teu livro procurei ciência!
“És meu mestre, o modelo sem segundo;
Unicamente és tu que hás-me ensinado;
O belo estilo que honra-me no mundo.
“A fera vês que o passo me há vedado;
Sábio famoso, acude ao perseguido!
Tremo no pulso e veias, transtornado!”
Respondeu, do meu pranto condoído;
“Te convém outra rota de ora avante
Para o lugar selvagem ser vencido.
“A fera, que te faz bradar tremante,
Aqui passar não deixa impunemente;
Tanto se opõe, que mata o caminhante.
“Tem tão má natureza, é tão furente,
Que os apetites seus jamais sacia,
E fome, impando, mais que de antes sente.
“Com muitos animais se consorcia,
Há-de a outros se unir té ser chegado
Lebréu, que a leve à hórrida agonia.
“Por ouro ou por poder nunca tentado
Saber, virtude, amor terá por norte,
Sendo entre Feltro e Feltro potentado.
“Será da humilde Itália amparo forte,
Por quem Camila a virgem dera a vida,
Turno Eurialo, Niso acharam morte.
“Por ele, em toda parte, repelida
Irá lançar-se no infernal assento,
Donde foi pela Inveja conduzida.
“Agora, por teu prol, eu tenho o intento
De levar-te comigo; ir-te-ei guiando
Pela estância do eterno sofrimento,
“Onde, estridentes gritos escutando,
Verás almas antigas em tortura
Segunda morte a brados suplicando.
“Outros ledos verás, que, em prova dura
Das chamas, inda esperam ter o gozo
De Deus no prêmio da imortal ventura.
“Se lá subir quiseres, um ditoso
Espírito, melhor te será guia,
Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.
“Do céu o Imperador, a rebeldia
Minha à lei castigando, não consente
Que eu da cidade sua haja a alegria.
“Em toda parte impera onipotente,
Mas tem no Empíreo sua augusta sede:
Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”
— “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede,
Por esse Deus, que nunca hás conhecido,
Porque este e maior mal de mim se arrede.
“Que, até onde disseste conduzido,
À porta de São Pedro eu vá contigo
E veja os maus que houveste referido”.
Move-se o Vate então, após o sigo.
CANTO II
[ Depois da invocação às Musas, Dante, considerando a sua fraqueza, duvida de aventurar-se na viagem. Dizendo-lhe, porém, Virgílio, que era Beatriz quem o mandava, e que havia quem se interessava pela sua salvação, determina-se segui-lo e entra com o seu guia no difícil caminho. ]
FORA-se o dia; e o ar, se enevoando,
Aos animais, que vivem sobre a terra,
As fadigas tolhia; eu só, velando,
Me aparelhava a sustentar a guerra
Da jornada, assim como da piedade,
Que vai pintar memória, que não erra.
Ó Musas! Ó do gênio potestade!
Valei-me! Aqui, ó mente, que guardaste
Quanto vi, mostra a egrégia qualidade.
“Poeta”, — assim falei, — “que começaste
A guiar-me, vê bem se em mim persiste
Calor que, à empresa que me fias, baste.
“Que o pai do Sílvio fora, referiste,
Corrutível ainda, até o inferno
Sem perder o que em corpo humano existe.
“Se do mal assim quis o imigo eterno,
Origem vendo nele do alto efeito,
O que e o qual, segundo o que discerno,
“Pela razão bem pode ser aceito;
Que para Roma e o império se fundarem
Fora no céu por genitor eleito;
“À qual e ao qual cabia aparelharem,
Dizendo-se a verdade, o lugar santo
Aos que do maior Pedro o sólio herdaram.
“Nessa empresa, em que o hás louvado tanto,
Cousas ouviu, de que surgiu motivo
Ao seu triunfo e ao pontifício manto.
“Lá foi o Vaso Eleito ainda vivo:
Conforto ia buscar, à fé, que à estrada
Da salvação princípio é decisivo.
“Por que irei? Quem permite esta jornada?
Enéias, Paulo sou? Essa ventura
Nem eu, nem outrem crê ser-me adatada.
“Receio, pois seja ato de loucura,
Se eu me resigno a cometer a empresa.
Supre, és sábio, o que digo em frase escura”.
Como quem ora quer, ora despreza,
Sua alma a idéias novas tem disposta,
Mostrando aos seus desígnios estranheza,
Assim fiz eu na tenebrosa encosta,
Porque, pensando, abandonava o intento,
Formado à pressa, que ora me desgosta.
“Do teu dizer se atinjo o entendimento”
— Do magnânimo a sombra me tornava, —
“Eivado estás de ignóbil sentimento,
“Que do homem muita vez faz alma ignava,
Das honrosas ações o desviando,
Qual sombra, que o corcel ao medo trava.
“Desse temor livrar-te desejando,
Por que vim te direi e quanto ouvido
Hei logo ao ver-te mísero lutando.
“No Limbo era suspenso: eis requerido
Por Dama fui tão bela, tão donosa,
Que as ordens suas presto lhe hei pedido.
“Brilhavam mais que a estrela radiosa
Os seus olhos; suave assim dizia
De anjo com voz, falando-me piedosa:
— “De Mântua alma cortês, que inda hoje em dia
No mundo gozas fama tão sonora,
Que, enquanto existir mundo, mais se amplia,
“Amigo meu, que a sorte desadora,
Pela deserta falda indo, impedido
De medo, atrás os passos volta agora.
“Temo que esteja tanto já perdido,
Que tarde eu tenha vindo a socorrê-lo,
Pelo que lá no céu dele hei sabido.
“Parte, pois, e com teu discurso belo
E quanto o salvar possa do perigo
Lhe acode; e me console o teu desvelo.
“Sou Beatriz, que envia-te ao que digo,
De lugar venho a que voltar desejo:
Amor conduz-me e faz-me instar contigo.
“Voltando ao meu Senhor, em todo o ensejo
Repetirei louvor, que hás merecido”. —
“Tornei-lhe, quando já calar-se a vejo:
— “Senhora da virtude, a quem tem sido
Dado só que proceda a espécie humana
Quanto é no mundo sublunar contido,
“Tanto praz-me a ordem que de ti dimana,
Que, já cumprida, houvera inda demora:
Em me abrir teu querer não mais te afana.
“Diz-me, porém, por que razão, Senhora,
Baixar a este centro hás resolvido
Do céu, a que ardes por voltar agora”.
— “Se queres tanto ser esclarecido
Eu te direi” — tornou-me — “frase breve
Por que sem medo às trevas hei descido.
“Somente as cousas recear se deve
Que a outrem podem ser causa de dano
Não das mais: a temor a causa é leve.
“De Deus favor criou-me soberano
Tal, que a vossa miséria não me empece
Nem deste incêndio assalta o fogo insano.
“Nobre Dama há no céu, que compadece
O mal, a que te envio; e tanto implora,
Que lá decreto austero se enternece.
— “Volvendo-se a Luzia, assim a exora:
“O teu servo fiel tanto periga,
Que ao teu amparo o recomendo agora”. —
“Luzia, sempre do que é mau imiga
Ergue-se e ao lugar foi, em que eu sentada
Ao lado estava de Raquel antiga.
“De Deus vero louvor!” — diz-me apressada —
“Por que não socorrer quem te amou tanto,
Que só por ti deixou do vulgo a estrada?
“Não lhe ouves, Beatriz, o amargo pranto?
Não vês que junto ao rio é combatido,
Que ao mar não corre, por mortal espanto?” —
“Os danos, tão veloz, não tem fugido
Ninguém, nem procurado o que deseja,
Como eu, em tendo vozes tais ouvido;
“O trono meu deixei, por que te veja,
Fiada em teus discursos eloqüentes,
Honra tua e de quem te ouvindo esteja”. —
“Assim falava e os olhos fulgentes
Com lágrimas a mim ela volvia,
Para apressar-me a vir assaz potentes.
“A ti vim, pois, como ela requeria;
Da fera te livrei, que da colina
Tão perto já, teus passos impedia.
“Que fazes, pois? Por que, por que domina
Tanta fraqueza o peito espavorido?
Por que ao valor tua alma não se inclina,
“Quando és pelas três santas protegido,
Que na corte do céu por ti se esmeram,
E gozar tanto bem lhe é prometido?” —
Quais flores, que, fechadas, se abateram
Da noite ao frio, e, quando o sol aquece,
Erguem-se abertas na hástea, tais como eram,
Tal meu valor renova e fortalece.
Tanto ardimento o coração me aviva,
Que exclamei, como quem jamais temesse:
“Ó Dama em socorrer-me compassiva!
E tu, que a voz lhe ouvindo, obedeceste,
Cortês ao rogo e com vontade ativa,
“Por teu dizer no peito me acendeste
Desejo tal de vir, que sou tornado
Ao propósito, a que antes me trouxeste.
“Vai, pois nosso querer ’stá combinado.
Serás meu guia, meu senhor, meu mestre!”
Disse-lhe assim. Moveu-se ele; ao seu lado
Pelo caminho entrei alto e silvestre.
CANTO III
[ Chegam os Poetas à porta do Inferno, na qual estão escritas terríveis palavras. Entram e no vestibulo encontram as almas dos ignavos, que não foram fiéis a Deus, nem rebeldes. Seguindo o caminho, chegam ao Aqueronte, onde está o barqueiro infernal, Caron, que passa as almas dos danados à outra margem, para o suplício. Treme a terra, lampeja uma luz e Dante cai sem sentidos. ]
“POR mim se vai das dores à morada,
Por mim se vai ao padecer eterno,
Por mim se vai à gente condenada.
“Moveu Justiça o Autor meu sempiterno,
Formado fui por divinal possança,
Sabedoria suma e amor supremo.
No existir, ser nenhum a mim se avança,
Não sendo eterno, e eu eternal perduro:
Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”
Estas palavras, em letreiro escuro,
Eu vi, por cima de uma porta escrito.
“Seu sentido” — disse eu — “Mestre me é duro”
Tornou Virgílio, no lugar perito:
— “Aqui deixar convém toda suspeita;
Todo ignóbil sentir seja proscrito.
“Eis a estância, que eu disse, às dores feita,
Onde hás de ver atormentada gente,
Que da razão à perda está sujeita”.
Pela mão me travando diligente,
Com ledo gesto e coração me erguia,
E aos mistérios guiou-me incontinênti.
Por esse ar sem estrelas irrompia
Soar de pranto, de ais, de altos gemidos:
Também meu pranto, de os ouvir, corria.
Línguas várias, discursos insofridos,
Lamentos, vozes roucas, de ira os brados,
Rumor de mãos, de punhos estorcidos,
Nesses ares, pra sempre enevoados,
Retumbavam girando e semilhando
Areais por tufão atormentados.
A mente aquele horror me perturbando,
Disse a Virgílio: — “Ó Mestre, que ouço agora?
“Quem são esses, que a dor está prostrando?” —
“Deste mísero modo” — tornou — “chora
Quem viveu sem jamais ter merecido
Nem louvor, nem censura infamadora.
“De anjos mesquinhos coro é-lhes unido,
Que rebeldes a Deus não se mostraram,
Nem fiéis, por si sós havendo sido”.
“Desdouro aos céus, os céus os desterraram;
Nem o profundo inferno os recebera,
De os ter consigo os maus se gloriaram”.
— “Que dor tão viva deles se apodera,
Que aos carpidos motivo dá tão forte?” —
“Serei breve em dizer-to” — me assevera. —
“Não lhes é dado nunca esperar morte;
É tão vil seu viver nessa desgraça,
Que invejam de outros toda e qualquer sorte.
“No mundo o nome seu não deixou traça;
A Clemência, a Justiça os desdenharam.
Mais deles não falemos: olha e passa”.
Bandeira então meus olhos divisaram,
Que, a tremular, tão rápida corria,
Que avessa a toda pausa a imaginaram.
E após, tão basta multidão seguia,
Que, destruído houvesse tanta gente
A morte, acreditado eu não teria.
Alguns já distinguira: eis, de repente,
Olhando, a sombra conheci daquele
Que a grã renúncia fez ignobilmente.
Soube logo, o que ao certo me revele,
Que era a seita das almas aviltadas,
Que os maus odeiam e que Deus repele.
Nunca tiveram vida as desgraçadas;
Sempre, nuas estando, as torturavam
De vespas e tavões as ferroadas.
Os rostos seus as lágrimas regavam,
Misturadas de sangue: aos pés caindo,
A imundos vermes o repasto davam.
De um largo rio à margem dirigindo
A vista, de almas divisei cardume.
— “Mestre, declara, aos rogos me anuindo,
“Que turba é essa” — eu disse — “e qual costume
Tanto a passar a torna pressurosa,
Se bem discirno ao duvidoso lume?” —
Tornou-me: — “Explicação minuciosa
Darei, quando tivermos atingido
Do Aqueronte a ribeira temerosa”.
Então, baixos os olhos e corrido
Fui, de importuno a culpa receando,
Té o rio, em silêncio recolhido.
Eis vejo a nós em barca se acercando,
De cãs coberto um velho — “Ó condenados,
Ai de vós! — alta grita levantando.
“O céu nunca vereis, desesperados:
Por mim à treva eterna, na outra riva,
Sereis ao fogo, ao gelo transportados.
“E tu que estás aqui, ó alma viva,
De entre estes que são mortos, já te ausenta!”
Como não lhe obedeço à voz esquiva,
“Por outra via irás” — ele acrescenta —
“Ao porto, onde acharás fácil transporte;
Lá pássaras sem barca menos lenta”. —
“Não te agastes, Caronte! Desta sorte
Se quer lá onde” — disse-lhe o meu Guia —
“Quem pode ordena. E nada mais te importe”.
Sereno, ouvido, o gesto se fazia
Da lívida lagoa ao nauta idoso,
Quem em círculos de fogo olhos volvia.
As desnudadas almas doloroso
O gesto descorou; dentes rangeram
Logo em lhe ouvindo o vozear raivoso.
Blasfemaram de Deus e maldisseram
A espécie humana, a pátria, o tempo, a origem
Da origem sua, os pais de quem nasceram.
Todas no pranto acerbo, em que se afligem,
Se acolhem juntas ao lugar tremendo,
Dos maus destinos, que se não corrigem.
Caronte, os ígneos olhos revolvendo,
Lhes acenava e a todos recebia:
Remo em punho, as tardias vai batendo.
Como no outono a rama principia
As flores a perder té ser despida,
Dando à terra o que à terra pertencia,
Assim de Adam a prole pervertida,
Da praia um após outro se enviavam,
Qual ave dos reclamos atraída.
Sobre as túrbidas águas navegavam;
E pojado não tinham no outro lado,
Mais turbas já no oposto se apinhavam.
“Aqui meu filho” — disse o Mestre amado —
“concorrem quantos há colhido a morte,
De toda a terra, tendo a Deus irado.
“O rio prontos buscam desta sorte,
De Deus tanto a justiça os punge e excita,
Tornando-se o temor anelo forte!
“Alma inocente aqui jamais transita,
E, se Caronte contra ti se assanha,
Patente a causa está, que tanto o irrita”.
Assim falava; a lúrida campanha
Tremeu e foi tão forte o movimento,
Que do medo o suor ainda me banha.
Da terra lacrimosa rompeu vento,
Que um clarão respirou avermelhado;
Tolhido então de todo o sentimento,
Caí, qual homem que é do sono entrado.
CANTO IV
[ Dante é despertado por um trovão e acha-se na orla do primeiro círculo. Entra depois no Limbo, onde estão os que não foram batizados, crianças e adultos. Mais adiante, num recinto luminoso, vê os sábios da antigüidade, que, embora não cristãos, viveram virtuosamente. Os dois poetas descem depois ao segundo círculo. ]
DESSE profundo sono fui tirado
Por hórrido estampido, estremecendo
Como quem é por força despertado.
Ergui-me, e, os olhos quietos já volvendo,
Perscruto por saber onde me achava,
E a tudo no lugar sinistro atendo.
A verdade é que então na borda estava
Do vale desse abismo doloroso,
Donde brado de infindos ais troava.
Tão escuro, profundo e nebuloso
Era, que a vista lhe inquirindo o fundo,
Não distinguia no antro temeroso.
“Eia! Baixemos, pois, da treva ao mundo!” —
O Poeta então disse-me enfiando —
“Eu descerei primeiro, tu segundo”. —
Tornei-lhe, a palidez sua notando:
“Como hei-de ir, se és de espanto dominado,
Quando conforto estou de ti sperando?” —
“Dos que lá são o angustioso estado
Causa a que vês no rosto meu impressa,
Piedade, medo não, como hás cuidado.
“Vamos: longa a jornada exige pressa”.
Entrou, e eu logo, o círculo primeiro
Em que o abismo a estreitar-se já começa,
Escutei: não mais pranto lastimeiro
Ouvi; suspiros só, que murmuravam,
Vibrando do ar eterno o espaço inteiro.
Pesares sem martírio os motivavam
De varões e de infantes, de mulheres
Nas multidões, que ali se apinhoavam.
“Conhecer” — meu bom Mestre diz — “não queres
Quais são os que assim vês ora sofrendo?
Antes de avante andar convém saberes
“Que não pecaram: boas obras tendo
Acham-se aqui; faltou-lhes o batismo,
Portal da fé, em que és ditoso crendo.
“Na vida antecedendo o Cristianismo,
Devido culto a Deus nunca prestaram:
Também sou dos que penam neste abismo.
“Por tal defeito — os mais nos não mancharam —
Perdemo-nos: a pena é desesp’rança,
Desejos, que para sempre se frustaram”.
Ouvi-lo, em dor o coração me lança,
Pois muitos conheci de alta valia,
A quem do Limbo a suspenção alcança.
“Ó Mestre! Ó meu Senhor! diz-me — inquiria,
Para ter da certeza o firme esteio
À fé, que os erros todos desafia,
“Por seu merecimento ou pelo alheio
Daqui alguém ao céu já tem subido?”
Da mente minha ao alvo o Mestre veio,
E falou-me: “Des’pouco aqui trazido,
Descer súbito vi forte guerreiro;
De triunfal coroa era cingido.
“Almas levou — do nosso pai primeiro,
Abel, Noé, Moisés, que legislara,
Abraam, na fé, na obediência inteiro,
“Davi, que sobre o povo hebreu reinara,
Israel com seu pai e a prole basta,
E Raquel, por quem tanto se afanara.
“Para a glória outros muitos mais afasta
Do Limbo; e sabe tu que antes não fora
Salvo quem pertencera à humana casta”.
Andávamos, enquanto isto memora,
Sem parar, pela selva penetrando,
Selva de almas, que aumenta de hora em hora,
E da entrada não longe ainda estando,
Eis um clarão brilhante divisamos
Das trevas o hemisfério alumiando.
Dali distantes ainda nos achamos
Não tanto, que eu não discernisse em parte
Que à sede de almas nobres caminhamos.
“Ó tu, que és honra da ciência e da arte,
Quem são” — disse — “os que, aos outros preferidos,
Privilégio tamanho assim disparte?”
Falou Virgílio: “— Assim são distinguidos
Do céu, que atende à fama alta e preclara,
Com que foram na terra engrandecidos”.
Eis voz escuto sonorosa e clara:
“Honrai todos o altíssimo poeta!
A sombra sua torna, que ausentara”.
Quatro sombras notei, quando aquieta
O rumor, que a nós vinham: nos semblantes
Nem prazer, nem tristeza se interpreta.
E disse o Mestre, após alguns instantes:
“Aquele vê, que, qual monarca ufano,
Empunha espada e os três deixa distantes.
É Homero, o poeta soberano;
O satírico Horácio é o outro, e ao lado
Ovídio, em lugar último Lucano.
Como lhes cabe o nome assinalado
Que soou nessa voz há pouco ouvida,
Me honrando, honrosa ação têm praticado”.
A bela escola assim vi reunida
Do Mestre egrégio do sublime canto,
Águia em seu vôo além dos mais erguida.
Discursado entre si tendo algum tanto,
A mim volveram gracioso o gesto:
Sorriu Virgílio, dessa mostra ao encanto.
Mais foi-me alto conceito manifesto,
Quando acolher-me ao grêmio seu quiseram,
Entre eles me cabendo o lugar sexto.
Té o clarão comigo se moveram,
Prática havendo, que omitir é belo,
Sublime no lugar, onde a teceram.
Chegamos junto a um fúlgido castelo
Sete vezes de muro alto cercado:
Cinge-o ribeiro lindo, mas singelo.
Passei-o a pé enxuto; acompanhado
Entrei por sete portas, caminhando
De fresca relva até ameno prado.
Graves, pausados olhos meneando
Stavam sombras de aspecto majestoso,
Com voz suave rara vez falando.
A um lado, sobre viso luminoso
Subimo-nos: de lá se divisava
Dessas almas o bando numeroso.
No verde esmalte o Mestre me indicava
Egrégias sombras: inda me extasia
O prazer com que vê-los exultava.
Eletra vi de heróis na companhia,
Enéias com Heitor e guarnecido
Grifanhos olhos César nos volvia.
Pentesiléia vi e o rosto ardido
De Camila, e sentado o rei Latino
Junto a Lavinia estava enternecido.
Notei Márcia, Lucrécia e o que Tarquino
Lançou, Cornélia e Júlia; retirado
De todos demorava Saladino.
Alçando os olhos, de respeito entrado,
O Mestre vejo dos que mais se acimam
Em saber, de filósofos cercado.
Todos com honra e acatamento o estimam.
Aqui Platão e Sócrates estavam,
Que na grandeza mais se lhe aproximam.
Demócrito, o atomista, acompanhavam
Tales, Zeno, Heráclito e Anaxagora.
Empédocle e Diógenes falavam,
Dióscoris, o que a natura outrora
Sábio estudara, Orfeu, Túlio eloqüente,
Sêneca, o douto, que a moral explora,
Lívio, Euclides, Hipócrates ingente,
Ptolomeu, Galeno e o Avicena;
Averróis, nos comentos sapiente.
Resenha não me é dado fazer plena
De todos; longo o assunto está-me urgindo,
E a ser omisso muita vez condena.
A companhia então se dividindo,
Comigo o Mestre outra vereda trilha,
Do ar sereno ao ar, que treme, vindo:
Chegados somos onde luz não brilha.
CANTO V
[ No ingresso do segundo circulo está Minos, que julga as almas e designa-lhes a pena. No repleno desse círculo estão os luxuriosos, que são continuamente arrebatados e atormentados por um horrível turbilhão. Aqui Dante encontra Francesca de Rimini, que lhe narra a história do seu amor infeliz. ]
DESCI desta arte ao círculo segundo,
Que o espaço menos largo compreendia,
Onde o pungir da dor é mais profundo.
Lá stava Minos e feroz rangia:
Examinava as culpas desde a entrada,
Dava a sentença como ilhais cingia.
Ante ele quando uma alma desditada
Vem, seus crimes confessa-lhe em chegando,
Com perícia em pecados consumada.
Lugar no inferno, Minos, lhe adaptando,
Do abismo o círc’lo arbitra, a que pertença,
Pelas voltas da cauda graduando.
Sempre muitas se lhe acham na presença;
Cada qual tem sua vez de ser julgada,
Diz, ouve, cai, se some sem detença.
Minos, logo me vendo, iroso brada,
Do grave ofício no ato sobrestando:
— “Ó tu, que vens das dores à morada;
“Olha como entras e em quem stás fiando:
Não te engane do entrar tanta largueza!”
— “Por que falar” — meu guia diz — “gritando?”
“Vedar não tentes a fatal empresa:
Assim se quer lá onde o que se ordena
Se cumpre. Assaz te seja esta certeza!”
Eis já começo da infernal geena
A ouvir os lamentos: sou chegado
Onde intenso carpir me aviva a pena.
Em lugar de luz mudo tenho entrado:
Rugia, como faz mar combatido
Dos ventos, pelo ímpeto encontrado.
Da tormenta o furor, nunca abatido,
Perpetuamente as almas torce, agita,
Molesta, em seus embates recrescido.
Quando à borda do abismo as precipita,
Ais, soluços, lamentos vão rompendo.
Blasfema a Deus a multidão maldita.
Ouvi que estão no padecer horrendo
Os que aos vícios da carne se entregavam,
Razão aos apetites submetendo.
Quais estorninhos, que a voar se travam
Em densos bandos na estação já fria,
Em rodopio as almas volteavam,
Ao capricho do vento, que as trazia.
De pausa não, de menos dor a esp’rança
Conforto lhes não dá nessa agonia.
Como nos ares longa série avança
De grous, que vão cantado o seu grasnido,
Assim no gemer seu, que não descansa,
Traz o tufão as sombras desabrido.
— “Mestre” — disse eu — “quais almas são aquelas
Que o vendaval fustiga denegrido?”
— “A primeira” — tornou Virgílio — “entre elas
De quem notícias ter desejarias,
Regeu nações, diversas nas loquelas.
“De luxúria fez tantas demasias
Que em lei dispôs ser lícito e agradável
Para desculpa às torpes fantasias.
“Semíramis chamou-se: o trono estável
Herdou de Nino e foi a sua esposa.
Do Soldão teve a terra memorável.
“A morte deu-se a outra, de amorosa,
Às cinzas de Siqueu traidora e infida;
Cleópatra após vem luxuriosa”.
Helena vi, a causa fementida
De tanto mal, e Aquiles celebrado
Que teve por amor a extrema lida.
Páris, Tristão e um bando assinalado
De sombras me indicou, nomes dizendo,
Que à sepultura amor tinha arrojado.
A compaixão me estava confrangendo,
Dessas damas e antigos cavaleiros
Nomes ouvindo e mágoas conhecendo.
Então disse eu: — “Poeta, aos companheiros
Dois, que ali vêm, falar muito desejo:
Ao vento ser parecem tão ligeiros!”
“Hás de ter” — me tornou — “asado ensejo,
Quando forem mais perto; então lhes pede
Pelo amor que os uniu: virão sem pejo”. —
Quando acercar-se o vento lhes concede
A voz alcei: — “Ó! vinde, almas aflitas,
Falar-nos, se alta lei não vo-lo impede”. —
Quais pombas, que saudosas de asas fitas,
Ao doce ninho, em vôo despedido,
Vão pelo ar, aos desejos seus adstritas:
Tais saíram da turba, em que era Dido,
A nós as duas sombras se inclinando,
Tanto as moveu da voz o tom sentido!
— “Entre beni’no, compassivo e brando,
Que nos vem visitar por este ar perso,
Tendo nós dado o sangue ao mundo infando,
“Se amigo o Senhor fosse do universo,
Da paz aos rogos nossos, gozarias,
Pois te enternece o nosso mal perverso.
“Enquanto o vento é quedo, o que dirias
Havemos nós de ouvir atentamente;
Diremos quanto ouvir desejarias.
“Onde, a paz desejando, o Pado ingente
Com seus vassalos para o mar descende,
A terra, em que hei nascido, está jacente.
“Amor, que os corações súbito prende,
Este inflamou por minha formosura,
Que roubaram-me: o modo inda me ofende.
“Amor, em paga exige igual ternura,
Tomou por ele em tal prazer meu peito,
Que, bem o vês, eterno me perdura.
“Amor nos igualou da morte o efeito:
A quem no-la causou, Caína, esperas”.
Após tais vozes foi silêncio feito.
Daquelas almas as angústias feras
Em meditar amargo a fronte inclino
Té que o Mestre exclamou: “Que consideras?”
Quando pude, falei: “Cruel destino!
Que doce cogitar! Que meigo encanto,
Precederam do par o fim maligno!” —
Aos dois voltei-me e disse-lhes, entanto:
“Teus martírios, Francesca, me angustiam,
Movem-me o triste, compassivo pranto.
“Quando os doces suspiros só se ouviam,
Como, em que Amor mostrar-vos há querido
Os desejos, que ainda se escondiam?” —
— “Não há” — disse — “tormento mais dorido
Que recordar o tempo venturoso
Na desgraça. Teu Mestre o tem sentido.
“Mas porque de saber és desejoso,
Como nasceu a flor do nosso afeto,
Direi chorando o lance lastimoso.
“Por passatempo eu lia e o meu dileto
De Lanceloto extremos namorados;
Éramos sós, de coração quieto.
“Nossos olhos, por vezes encontrados,
Cessam de ler; ao gesto a cor mudara.
Um ponto só deu causa aos nossos fados.
“Ao lermos que nos lábios osculara
O desejado riso, o heróico amante,
Este, que mais de mim se não separa,
“A boca me beijou todo tremante,
De Galeotto fez o autor e o escrito.
Em ler não fomos nesse dia avante”.
Enquanto a história triste um tinha dito,
Tanto carpia o outro, que eu, absorto
Em piedade, senti letal conflito,
E tombei, como tomba corpo morto.
CANTO VI
[ No terceiro círculo estão os gulosos, cuja pena consiste em ficarem prostrados debaixo de uma forte chuva de granizo, água e neve, e ser dilacerados pelas unhas e dentes de Cérbero. Entre os condenados Dante encontra Ciacco, florentino, que fala com Dante acerca das discórdias da pátria comum. ]
DO soçobro tornando a aflita mente,
Que da cópia infelice contristado
Havia tanto o padecer pungente,
Achei-me novamente circundado
De outros míseros, de outras amarguras,
Que via em toda parte, ao longe e ao lado.
Sou no terceiro círculo, onde escuras,
Eternas chuvas, gélidas caíam,
Pesadas, sempre as mesmas, sempre impuras.
Saraiva grossa, neve, água desciam
Desse ar pelas alturas tenebrosas:
No chão caindo infeto odor faziam.
Latia com três fauces temerosas,
Cérbero, o cão multíface e furente,
Contra as turbas submersas, criminosas.
Sangüíneos olhos tem, o ventre ingente,
Barba esquálida, as mãos de unhas armadas;
Rasga, esfola, atassalha a triste gente.
Uivam à chuva, quais lebréus, coitados!
Mudam de lado sem cessar, buscando
Defensa e alívio, as almas condenadas.
Cérbero, o grão réptil, nos divisando
Os dentes mostra, as bocas escancara,
De sanha os membros todos convulsando.
Meu Guia, as mãos abrindo, se prepara:
Enche-as de terra, e às guelas devorantes
Lança da fera essa iguaria amara.
Qual mastim, que em latidos retumbantes
Brada de fome, e, apenas a sacia
Devorando, aquieta as iras de antes:
Tal, aplacando a fúria, parecia
O demônio que as almas atordoa:
Surdez de ouvi-lo o mal lhes pouparia.
O solo, onde pisamos, se povoa
Das sombras, que essas chuvas derrubavam:
Forma e aparência tinham de pessoa.
Sobre a terra estendidas, a alastravam;
Mas uma surge, súbito sentada,
Aos passos que adiante nos levavam.
“Tu” — disse — “que és guiado pela estrada
Do inferno, vê se acaso me conheces:
Nasceste antes de eu ser nesta morada”.
Tornei-lhe: “A grande angústia em que padeces,
Tua feição lembrar-me não consente:
Inota face aos olhos me ofereces.
“Quem és que em tal lugar tão duramente
Pelos pecados teus stás dando a pena?
Se há maior, nenhuma é tão displicente”. —
— “Em tua pátria” — responde — “que tão plena
Já é de inveja, que transborda o saco,
Existência gozei leda e serena.
“Vós, Florentinos, me chamastes Ciacco:
Por ter da gula a intemperança amado,
À chuva peno enregelado e fraco.
“Mas sou nesta miséria acompanhado;
Pois quantos aqui estão de igual castigo
Punidos foram por igual pecado”. —
— “Com dor sincera” — lhe falei — “te digo
Que esse tormento o peito me enternece.
Saberás se os partidos a perigo
“Florença levarão, que já padece?
Algum justo ali vive? A que motivo
A cizânia se deve, que ali cresce?” —
— “Virão a sangue após ódio excessivo;
E o partido selvagem triunfante
O outro lançará feroz e esquivo.
“Três sóis passados, chegará o instante
De ser pelos vencidos suplantado,
Que esforça alguém, que aos dois faz bom semblante.
“Por algum tempo o vencedor ousado
A cerviz calcará do outro partido
Que se aflige oprimido e envergonhado.
“Justos há dois: ninguém lhes presta ouvido.
Três brandões — Avareza, Orgulho, Inveja,
Incêndio têm nos peitos acendido”. —
Assim a flébil narração boqueja.
Eu lhe respondo: “A informação completa;
Favor farás a quem te ouvir almeja.
“Farinata e Tegghiaio, de alma reta,
Jacopo Rusticucci, Mosca, Arrigo,
E os mais que da virtude o amor inquieta,
“Onde estão? Diz e franco sê comigo!
Saber qual seja anelo a sorte sua:
Stão no céu, ou no inferno têm castigo?” —
“Entre os que sofrem punição mais crua
Estão, por seus maus feitos, lá no fundo:
Se lá desces, verão a face tua.
“Quando tomares ao saudoso mundo,
De mim aviva aos meus o pensamento...
Não mais: volto ao silêncio meu profundo” —
Os olhos que não tinham movimento,
Torcendo fita em mim; já curva a frente
E cai entre os mais cegos num momento.
E disse, o Vate: “Em sono permanente
Hão de aguardar a angélica chamada,
Quando os julgar severo o Onipotente.
“Cad’um, a triste sepultura achada,
Ressurgindo na carne e na figura,
Voz ouvirá pra sempre reboada”. —
A passo lento assim pela mistura
Das sombras e da chuva caminhando,
Falávamos da vida, que é futura.
— “Mestre” — lhe disse então — “irá medrando
Depois da grã sentença esse tormento?
Igual pungir terá? Será mais brando?” —
— “Do teu saber recorre ao documento:
Verás que ao ente quando mais se eleva
Do bem, da dor mais cresce o sentimento.
“Bem que esta raça condenada à treva
Jamais da perfeição se eleve à altura
Ressurgindo, há de ter pena mais seva”. —
Perlustramos do círculo a cintura,
De cousas praticando que não digo,
Té descer um degrau na estância escura.
Ali’stá Pluto, o nosso grande imigo.
CANTO VII
[ Pluto, que está de guarda à entrada do quarto círculo, tenta amedrontar a Dante com palavras irosas. Mas Virgílio o faz calar-se, e conduz o discípulo a ver a pena dos pródigos e dos avarentos, que são condenados a rolar com os peitos grandes pesos e trocarem-se injúrias. Os Poetas discorrem sobre a Fortuna, e, depois, descem ao quinto círculo e vão margeando o Estiges, onde estão mergulhados os irascíveis e os acidiosos. ]
PAPE Satan, pape Satan, aleppe:
Pluto com rouca voz, ao ver-nos brada.
Para que eu do conforto não discrepe,
Virgílio, em tudo sábio: — “Da aterrada
Mente” — me diz — “se desvaneça o susto!
Poder Pluto não tem, que tolha a entrada”.
E, se volvendo ao vulto, de ira adusto,
Lhe grita: — “Cal’-te, ó lobo abominoso!
Em ti consome esse furor injusto!
“Se ao abismo descemos tenebroso,
A lei se cumpre do alto, onde, em castigo,
Suplantara Miguel bando orgulhoso”. —
Como o mastro, abatendo, traz consigo
Velas, que o vento de feição tendia,
Baqueou-se por terra o monstro imigo.
E, pois que o quarto círculo se abria,
Mais penetramos pela estância horrenda,
A que todo seu mal o mundo envia.
Ah! justiça de Deus! Que lei tremenda,
Dores, penas, quais vi, tanto amontoa?
Por que da culpa nos obceca a venda?
Como em Caribde a vaga que ressoa
Embate noutra, e quebram-se espumantes:
Assim turba com turba se abalroa.
Almas em cópia, nunca vista de antes,
Fardos de um lado e de outro, em grita ingente,
Rolavam com seus peitos ofegantes.
Batiam-se encontrando rijamente,
E gritavam depois, atrás voltando:
“Por que tens?” “Por que empurras loucamente?”
Assim no tetro círc’lo volteando
Iam de toda parte ao ponto oposto,
Por injúria o estribilho apregoando.
Nos semicírc’lo novamente rosto
Faziam, té o embate reiterarem.
Eu, me sentindo à compaixão disposto,
— “Quem são? Que razão há para aqui estarem?”
Ao Mestre disse — “À esquerda os colocados
Clérigos são para tonsura usarem?”
— “Da mente sendo vesgos, transviados”
— Tornou — “andaram na primeira vida,
Sempre os bens aplicando desregrados.
“Quem seus clamores ouve não duvida:
Levantam grita aos termos dois chegados,
Onde oposta os separa a culpa havida:
“Os que então de cabelos despojados
Clérigos, papas, cardeais hão sido,
Pela nímia avareza subjugados”. —
— “Entre eles” — respondi — “Mestre querido,
Muitos serão, por certo, que eu conheça,
Imundos desse mal aborrecido”. —
— “Te enganas, quando assim — diz — “te pareça:
Da sua ignóbil vida a oscuridade
Vestígio não deixou, que ora apareça:
“Eles se hão de embater na eternidade:
Ressurgindo, uns terão as mãos fechadas,
Os outros de cabelos pouquidade.
“Por dar mal, por mal ter, viram cerradas
Do céu as portas; penam nesta lida,
Com mágoas, que não podem ser contadas.
“Vês quanto é de vaidade iludida
A ambição, em que os homens a porfiam,
Da Fortuna anelando os bens na vida.
“Todo o ouro, que as entranhas conteriam
Da terra, não pudera dar repouso
A um dos que em fadiga se cruciam”. —
— “Quem é Mestre” — falei — “o portentoso
Ser, que chamas Fortuna, que à vontade
Bens distribui ao mundo cobiçoso?” —
Responde o Vate: — “Ó cega humanidade,
Quanta ignorância a mente vos ofende.
Do meu pensar direi toda a verdade.
“Quem pelo seu saber tudo transcende,
Os céus criando, guias elegeu-lhes;
E toda parte a toda parte esplende,
“Pela luz que igualmente concedeu-lhes.
Assim fez aos mundanos esplendores,
Geral ministra e diretora deu-lhes,
“Que em tempo os bens mudasse enganadores
De nação a nação, de raça a raça
Contra esforços de humanos sabedores.
“A pujança de um povo é grande ou escassa
Segundo o seu querer, que, se escondendo
Qual serpe em erva triunfante passa.
“Contra ela o saber vosso não valendo,
No seu reino ela tem poder e mando,
Como os outros o seu, estão regendo.
“Mudanças incessante efetuando,
Se apressa por fatal necessidade,
E assim tantas no mundo vai formando.
“Tal é Fortuna, a quem por má vontade
Insulta o que louvá-la deveria,
Censurando-a com dura iniqüidade.
“Mas, feliz, não escuta a vozeria,
E entre iguais criaturas primitivas,
Volvendo a esfera, em paz goza alegria.
“Desçamos ora a dores mais esquivas;
Estrelas baixam, que ao partir surgiram;
Demoras são defesas, são nocivas”. —
Os nossos passos através seguiram
Do círculo até fonte, que, fervendo,
As águas brota, que torrente abriram,
A cor mais negra do que persa tendo.
Ao longo do seu curso nós baixamos,
Por caminho diverso nos movendo.
Lagoa, dita Stígia, deparamos,
Junto à encosta maligna produzida
Pelo triste ribeiro, que notamos.
Eu, que tinha a atenção toda embebida,
Vi sombras, nesse pântano, lodosas,
Desnudas, de face enfurecida.
Não só co’as mãos batiam-se raivosas;
Peitos, cabeças, pés armas lhes sendo,
Com dentes laceravam-se espantosas.
— “As almas, filho meu, que ora estás vendo
São dos que” — disse o mestre — “venceu ira.
Como certo também fica sabendo
“Que sob as águas multidão suspira,
E em borbulhões as águas entumece
Por toda essa extensão, que vista gira”. —
— “Nos doces ares, a que o sol aquece”
— No ceno imersas dizem — “tristes fomos:
Dentro em nós fumo túrbido recresce.
“Ora no lodo inda mais triste somos”. —
Com voz cortada assim gargarejavam,
De palavras somente havendo assomos.
“Os passos, em grande arco, nos levavam.
Do paul sobre a borda seca; o bando,
Tendo à vista, que assim lodo tragavam,
E junto de uma torre alfim chegando.
CANTO VIII
[ Flégias corre com a sua barca para os dois Poetas serem conduzidos, passando à lagoa, à cidade de Dite. No trajeto encontram a Filipe Argenti, florentino, que discute com Dante. Chegando às portas de Dite, os demônios não o querem deixar entrar. Virgílio, porém, diz a Dante que não lhe falte a coragem, pois vencerão a prova e que não há de estar longe quem os socorra. ]
ACRESCENTAR eu devo, prosseguindo,
Que da torre inda estávamos distantes,
Quando os olhos ao cimo dirigindo,
Dois fanais brilhar vemos vacilantes,
A que outro de tão longe respondia,
Que mal se avistam seus clarões tremantes.
E eu de todo o saber ao mar dizia:
— “Os lumes dois por que? Por que o terceiro?
Para acendê-los quem razão teria?” —
— “Pela onda impura” — me tornou — “ligeiro
Quem se aguarda já vês, se não te empece
A vista do paul o nevoeiro”. —
Qual seta, que pelo ar veloz corresse
Da corda arremessada, discernimos
Tênue batel, que vir pra nós parece.
A regê-lo um arrais distinguimos:
— “Alfim chegaste, espírito execrando!”
Em retumbante grita nós lhe ouvimos,
— “Flégias, Flégias, estás em vão bradando!” —
Disse-lhe o Mestre — “nos terás somente
Enquanto formos o paul passando.” —
Como quem reconhece, e pesar sente,
Um grande engano, que se lhe há tecido,
Flégias assim na sua ira ardente.
Tendo Virgílio à barca descendido,
Eu segui-o: somente aos meus pesados
Passos mostrou ter carga recebido.
Em sendo o Mestre e eu no lenho entrados,
O lago foi cortando a antiga proa
Com sulcos mais que de antes profundados,
Enquanto assim corremos, eis me soa
De lutulenta sombra voz que exclama:
— “Quem és que em vida vens para a lagoa?”
— “Sim, venho, mas não fico nesta lama.
E tu quem és que imundo te hás tornado?” —
— “Bem vês: um sou que lágrimas derrama.”
E eu então: — “Fica em lodo mergulhado.
Em dor, em pranto, espírito maldito!
Sei quem és, se bem stás desfigurado”. —
Tendeu à barca as mãos aquele aflito,
Mas por Virgílio, que o repele presto
— “Com teus iguais vai, cão, te unir!” — foi dito.
Abraçando-me então com ledo gesto
Me oscula e diz: — “Abençoado seja,
Quem tão altivo te gerou e honesto!
“Essa alma, que de orgulho inda esbraveja,
Avessa ao bem, de raiva possuída,
Deixou em si memória, que negreja.
Quantos reis, grandes na terrena vida,
Virão, quais cerdos, se atascar no lodo,
Fama de si deixando poluída!” —
— “Mestre, grato me fora sobremodo
Vê-lo no ceno mergulhar profundo,
Antes de eu ter daqui saído em todo”. —
— “Antes que a margem — respondeu jocundo —
Avistes, gozarás dessa alegria,
Verás penar o espírito iracundo”. —
E logo ao pecador, como à porfia,
Tanta aflição causou a imunda gente,
Que ainda louvo a Deus, que o permitia.
Gritavam todos: — “A Filipe Argenti!” —
E a florentina sombra, se volvendo
Contra si, se mordia insanamente:
Lá o deixei, não mais nele entendendo.
Súbito, ouvindo um lamentar amaro,
Os olhos fitos para além e atendo.
E o bom Mestre me disse: — “Ó filho caro,
Stá perto Dite, de Satã cidade,
Que há povo infindo para o bem avaro”. —
— “Lá do vale no fundo em quantidade
Mesquitas” — respondi — “rubras discerno
De flama, creio, pela intensidade”. —
E o Mestre a mim: — “As faz o fogo eterno
Vermelhas, que lá dentro está lavrando
Como tens visto neste baixo inferno”. —
Já nos profundos fossos penetrando
De que o triste alcáçar é circundado,
Me estavam ferro os muros semelhando.
Mas, após grande giro, hemos tocado
Na parte, onde o barqueiro com voz forte
— “Saí” — gritou — “à entrada haveis chegado!”
À porta vi daqueles grã coorte
Que o céu choveu; bramiam de despeito:
“Este quem é que, antecipando a morte,
“Tem dos mortos no reino sido aceito?” —
Meu sábio Mestre então lhes fez aceno
Para, em secreto, expor-lhe seu conceito.
Contendo um pouco às sanhas o veneno
Disseram: — “Vem tu só; vá-se o imprudente,
Que neste reino entrou, de audácia pleno;
“Só deixe a empresa em que embarcou demente;
Tente-o, se sabe; ficarás no entanto;
Pois és seu guia à região nocente”. —
Imagina, ó leitor, qual fosse o espanto
Meu escutando a horrífica ameaça:
Não deixar a mansão temi do pranto.
“Ó Mestre meu, que tanta vez a graça
Fizeste de alentar-me o peito aflito
No perigo iminente e atroz desgraça,
“Não me deixes” — disse eu — “neste conflito!
E, se avante passar é defendido,
Ambos voltemos do lugar maldito!” —
Quem tão longe me havia conduzido
— “Não temas” — diz — “não pode ser vedado
O passo, que por Deus foi permitido.
“Aqui me espera e o ânimo prostrado
Fortalece e alimenta de esperança:
Não hás de ser no inferno abandonado”. —
O doce pai se afasta e à porta avança.
Ficando assim na dúvida e incerteza,
No pró, no contra a mente se abalança.
Não pude o que propôs ouvir; na empresa
Curta há sido a detença: de repente
Esquivam-se os precitos com presteza.
De roldão cerra a porta a imiga gente
Do Mestre à face, que, ficando fora,
A mim se restitui mui lentamente.
De olhos baixos, faltava-lhe a de outrora
Afouteza, e dizia suspirando:
“Quem me tolhe da dor a estância agora?” —
E logo a minha alteração notando
“Não te aflijas; que os óbices te digo
Hei de vencer que a entrada estão vedando.
“Não é nova esta audácia do inimigo;
Em mais patente porta há já mostrado,
Que sem ferrolho está: viste-a comigo,
“E a lúgubre inscrição lhe hás contemplado.
Deixou atrás e desce a penedia,
Pelos círc’los passando não guiado,
Abrir quem pode esta cidade ímpia”. —
CANTO IX
[ Dante pergunta a Virgílio se havia já percorrido outra vez o Inferno. Virgílio responde que já percorreu todo o Inferno e narra como e quando. Na torre de Dite se apresentam, no entanto, as três Fúrias e depois Medusa, que ameaçam a Dante. Virgílio, porém, o defende. Chega um anjo do Céu que abre aos Poetas as portas da cidade rebelde. ]
DO medo a cor, que o gesto me alterara,
Ao ver tornar Virgílio em retirada,
Serenou turvação, que o seu mudara.
Como escutando, espreita; que a cerrada
Névoa os ares em torno enegrecia,
E a vista, incerta, achava-se atalhada.
— “Mas é mister vencer nesta porfia...” —
Lhe ouvi — “se não ... socorro é prometido...
Oh! quanto a vinda sua é já tardia!” —
Bem vi que das palavras o sentido,
Que a declarar apenas começava,
Fora por outros logo confundido.
Porém maior receio me assaltava,
Na reticência auspício triste vendo,
Que na expressão talvez não se encerrava.
— “A esta hórrida estância, descendendo
Do limbo, pode vir quem só padece,
A esperança”, — inquiri — “toda perdendo?”
O Mestre respondeu: — “Raro aparece
Ensejo, que um de nós a andar obriga
Pelo caminho, que aos abismos desce.
“Ali, porém, já fui, quando inimiga
Esconjurou-me Ericto, que os esp’ritos
Constrangia a fazer c’os corpos liga.
“Des’pouco eu me finara: por seus ritos
Ao círculo de Judas fui trazido
Para a sombra tirar de um dos precitos.
“É o lugar mais fundo e denegrido,
Mais remoto do céu, que os orbes gira.
Sei o caminho: esforça-te, ó querido!
“Este paul, que o bruto cheiro expira,
A cidade circunda do tormento,
Onde entrar não podemos já sem ira”.
Deslembro o que mais disse: o pensamento
Da torre altiva ao cimo chamejante,
Que os olhos me prendia, estava atento.
Lá o aspecto se erguia horripilante
De fúrias três; de sangue eram tingidas,
Feminis no meneio e no semblante.
De hidras verdes mostravam-se cingidas,
Cerastes, serpes cada uma tinha
Por coma, em torno à fronte entretecidas.
Virgílio, que conhece da rainha
Do eterno pranto essas ancilas cruas,
— “Nas Érinis atenta” diz-me asinha.
“Megera à esquerda está das outras duas,
Chora à direita Aleto e fica ao meio
Tisífone”. — E pôs termo às vozes suas.
Co’as unhas cada qual rasgava o seio,
Com seus punhos batiam-se, em tal brado,
Que ao Vate me acerquei, de pavor cheio.
Olhando-me dizia: — “Transformado
Em pedra seja por Medusa; o assalto
Do ímpio Teseu não foi assaz vingado.
— “Volta a face; de luz o rosto falto
Conserva; que, se a Górgona encarar-te,
Tu não mais tornarás da terra ao alto”. —
Disse o Mestre, e volveu-me à oposta parte;
E as mãos juntando às minhas que não bastam,
Os olhos amparar-me quis dessa arte.
Ó vós cujas idéias não se afastam
Das leis da sã razão, vede os preceitos
Que destes versos sobre o véu se engastam.
Eis sobre as águas túrbidas desfeitos
Troam sons de fracasso temeroso;
Tremendo, as margens sentem-lhe os efeitos.
O tufão assim freme impetuoso,
Que, de ardores contrários se excitando,
Sem pausa fere a selva, e furioso,
Quebrando ramas, flores arrancando,
Entre nuvens de pó soberbo assalta
Feras, pastores e lanoso bando.
Os olhos descobriu-me e disse: “Exalta
A vista agora até a espuma antiga,
Onde mais acre a cerração ressalta”.
Quais rãs, divisando a cobra imiga,
Todas da água no seio desaparecem,
E cada qual no lodo entra e se abriga,
Tais milhares de espíritos parecem,
Em derrota fugindo ante a figura
Que passa; nágua os pés não se umedecem.
Movendo a esquerda mão, a névoa escura,
Que lhe era em torno ao vulto, dissipava:
Só este afã lhe altera a face pura.
Ser ele conheci que o céu mandava;
A Virgílio voltei-me, e mudo e quieto
Ao aceno, que fez, eu me acurvava.
Quantos lumes reflete o iroso aspecto!
À porta chega: ao toque de uma vara
Abre-se a entrada do alcáçar infecto.
— “Ó turba vil, que o céu de si lançara!” —
Ao limiar falou da atroz cidade,
— “Donde vos vem da audácia a insânia rara?
“Por que recalcitrais à alta vontade,
Que sempre cumpre o seu excelso intento,
E à dor já vos cresceu a intensidade?
“Cuidais pôr ao destino impedimento?
Cérbero, o vosso, na memória tende:
Trilhados inda estão-lhe o colo e o mento”.
Então pelo caminho imundo estende,
Sem nos falar, os passos semelhante
A quem outros cuidados a alma prende,
Daqueles, que há presentes, bem distante.
Nós à cidade afoutos caminhamos:
Deu-nos esforço o seu falar pujante.
Já, removido todo o pejo, entramos.
Eu, que sentia de saber desejo
Quanto o forte contém que franqueamos.
Como fui dentro, a tudo pronto, vejo
Campanha em toda parte ilimitada,
Mas não espaço às punições sobejo.
Como em Arle, onde o Rône faz parada
Ou junto a Pola, de Quernaro perto,
De que à Itália a fronteira está banhada,
Stá de sepulcros desigual e incerto
O solo: outros assim a estância feia,
Mas de modo mais agro, tem coberto.
Entre eles chama horrífica serpeia
E os abrasa inda mais que frágua ardente
Que arte para amolgar o ferro ateia.
Alçada a tampa, é cada qual patente.
Dali surgia um lamentar profundo,
De miséreo gemido permanente.
— “Ó Mestre meu, quais foram lá no mundo” —
Eu disse — “aqueles, que no duro encerro
Denunciam tormento sem segundo?” —
“Aqui stão os hereges por seu erro,
Com seus sequazes dos diversos cultos:
São mais do que tu crês em cada enterro.
“Iguais com seus iguais estão sepultos,
Uns túmulos mais que outros são candentes”.
À destra então voltou: com tristes vultos
Passamos entre o muro e os padecentes.
CANTO X
[ Caminhando os Poetas entre as arcadas, onde estão penando as almas dos heresiarcas, Dante manifesta a Virgílio o desejo de ver a gente nelas sepultada e de falar a alguém. Nisto ouve uma voz chamá-lo. É Farinata degli Uberti. Enquanto o Poeta conversa com ele é interrompido por Cavalcante Cavalcanti, que lhe indaga por seu filho Guido. Continua Dante o começado discurso com Farinata, que lhe prediz obscuramente o exílio. ]
ENTRA Virgílio por vereda estreita,
Que entre o muro e os martírios vai seguindo:
Após os seus meu passo se endireita.
— “Virtude suma! Ó tu, que, dirigindo
Me estás, ao teu sabor na estância triste,
Me instrui, ao meu desejo deferindo.
“A gente ver se pode que ora existe
Naquelas sepulturas descobertas,
A que nem guarda, nem defesa assiste?” —
— “Serão” — me respondeu — “todas cobertas
No dia, em que, de Josafá tornando,
Os corpos tragam, de que estão desertas.
“Epicuro aqui jaz com todo o bando
Dos discípulos seus, que professaram
Que alma fenece, a vida em se acabando.
“O que as tuas palavras declararam
Satisfeito há de ser, como o que vejo
Dos votos que em teu peito se ocultaram”. —
— “Não te expus, meu bom Mestre, quanto almejo,
Porque de breve ser tenho o cuidado,
E a mais longo dizer não deste ensejo”. —
— “Ó Toscano, que, vivo hás penetrado
Do fogo na cidade e és tão modesto,
Detém-te um pouco, se te for de agrado.
“Por teu falar me está bem manifesto
Que nessa nobre pátria tens nascido,
A que fora eu talvez assaz molesto”. —
Ouço este som, de súbito saído
De um dos jazigos: tanto eu me torvara,
Que ao Mestre me achegava espavorido.
— “Que temes tu?” — Virgílio diz — “Repara:
É Farinata em seu sepulcro alçado,
Do busto em toda a altura, se depara”. —
Na sombra os olhos tinha eu já fitado:
Altiva levantava a fronte e o peito,
Como em desprezo do infernal estado.
Por entre as tumbas me levou direito
Ao vulto o Mestre com seu braço presto,
Dizendo-me: — “Sê claro em teu conceito!” —
Junto ao sepulcro apenas fui, com gesto
Severo um pouco olhou-me e desdenhoso
— “Teus maiores?” — falou — “Faz manifesto”.
Eu, já de obedecer-lhe desejoso,
Quanto sabia expus-lhe francamente.
O sobrolho arqueava um tanto iroso,
E tornou: — “Guerra crua fez tua gente
A mim, aos meus avós, ao partido;
Mas duas vezes bani-os justamente”. —
— “Mas todos os que expulsos tinham sido
Se hão, de uma e de outra vez repatriado:
Não têm essa arte os vossos aprendido”. —
Surgindo então de Farinata ao lado
Somente o rosto um vulto nos mostrava,
Sobre os joelhos, cheio, levantado.
Com ansiosos olhos me cercava
A ver se alguém viera ali comigo.
Mas, perdida a esperança, que o animava,
Pranteando inquiriu: — “Se ao reino imigo
Por prêmio baixas do teu alto engenho,
Onde é meu filho? Pois não vem contigo?
— “Por moto próprio aqui” — volvi — “não venho;
Perto me aguarda quem meus passos guia,
Vosso Guido talvez teve-o em desdenho”.
A pena sua e as vozes, que lhe ouvia,
Denunciado haviam-me o seu nome:
Pude assim responder quanto cumpria.
Súbito ergueu-se o espírito e gritou-me:
“Teve disseste: não mais vive agora?
O corpo seu a terra já consome?”
Como eu tivesse em responder demora
À pergunta, de costas recaía,
E novamente não mostrou-se fora.
Mas esse outro magnânimo, que havia
De antes falado não mudou de aspeito;
No colo e busto imóvel persistia.
— “Se aquela arte não dera ao meu proveito” —
Prosseguiu — “me produz esta certeza
Maior tormento no adurente leito.
“Porém vezes cinqüenta a face acesa
Não mostrará do inferno a soberana
Sem que tu saibas quanto essa arte pesa.
“Assim possas voltar à vida humana!
Contra os meus, diz, por que tanta maldade
Em cada lei, que desse povo emana” —
Eu respondi: — “O estrago, a mortandade,
Que do Árbia as águas de rubor tingira
A cúria nossa move à austeridade”. —
Inclinando a cabeça então, suspira
E diz: — “não fui lá só naquele dia,
Nem sem motivo aos outros eu seguira.
“Porém achei-me só, quando exigia
De Florença a ruína o geral brado:
A peito descoberto eu defendia-a”. —
— “Seja o descanso à vossa prole dado:
Mas, vos suplico, de penoso enleio
Fique o juízo meu descativado.
“Se bem percebo, do futuro ao seio
Subindo e ao tempo o curso antecipando,
Do presente ignorais todo o rodeio”. —
— “Os que têm vista má nos semelhando” —
Tornou-me — “as cousas mais distantes vemos,
De Deus última luz em nós raiando.
“Quando estão perto ou no presente as temos
Se apaga a lucidez, e a mente aprende
Por outrem só o que de vós sabemos.
“Ciência nossa do porvir depende;
Em sendo a porta do porvir cerrada,
Essa luz morre em nós, não mais se acende”.
Então minha alma, de remorso entrada,
“Dize” — replico — à sombra, a quem falava,
Que o filho inda entre os vivos tem morada.
Se presto lhe não disse o que exorava,
Da dúvida, que, há pouco, heis-me explicado
Pela influência dominado eu stava”. —
Se bem fosse do Mestre apelidado,
Rogando a sombra a me dizer prossigo
As almas, de quem stava acompanhando.
Respondeu: — “Muitos mil jazem comigo
Aqui dentro, o Segundo Frederico,
Com ele o cardeal, de outros não digo”. —
Dos olhos se apartou. A cismar fico,
Voltando ao sábio Mestre, na ameaça
Desse, que ouvira, vaticínio único.
Ele caminha, e, enquanto avante passa,
Me diz: “Por que és torvado?” — Eu tudo conto
Expondo o que me inquieta e me embaraça.
— “Do que ouviste a memória cada ponto
Conserva!” — o sábio ordena; e, logo, alçando
O dedo, segue: — “Agora escuta pronto.
“Ante o doce raiar daquela estando,
Que tudo aos belos olhos tem presente,
Se irão da vida os transes revelando”. —
Moveu-se logo à esquerda diligente;
Deixando o muro, ao centro caminhava
Por senda, que descia ao vale horrente,
Que hediondos vapores exalava.
CANTO XI
[ Os Poetas chegam à beira do sétimo círculo. Sufocados pelo mau cheiro que se levanta daquele báratro, param atrás do sepulcro do papa Anastácio. Virgílio explica a Dante a configuração dos círculos infernais. O primeiro, que é o sétimo, é o círculo dos violentos. Como a violência pode dar-se contra o próximo, contra si próprio e contra Deus, o círculo é dividido em três compartimentos, cada um dos quais contém uma espécie de violentos. O segundo círculo, que é o oitavo, é o dos fraudulentos e se compõe de dez círculos concêntricos. O terceiro, que é o nono, se divide em quatro compartimentos concêntricos. Fala-lhe também acerca dos incontinentes e dos usurários. Movem-se depois para o lugar de onde se desce para o precipício. ]
À BORDA de alta riba assim chegamos,
Que em círc’lo rotas penhas conformavam:
De lá mais crus tormentos divisamos.
Do fundo abismo exalações brotavam,
Tão acres, que a fugir nos obrigaram
Para trás das muralhas elevadas
De um sepulcro, em que os olhos decifraram:
“Sou do papa Anastácio a sepultura,
Que de Fotino os erros transviaram”.
“Lentamente desçamos desta altura:
Assim, o olfato ao mau odor afeito,
Não hemos de sentir-lhe a ação impura”.
A Virgílio tornei: “Proceda a jeito,
Ó Mestre, por que o tempo consumido
Na demora, não corra sem proveito”. —
— “Já stava o meio, ó filho, apercebido.
Nestas penhas três círc’los há menores,
Por degraus, como os outros, que hás descido.
“Plenos stão de malditos pecadores.
Por que, em vendo, os conheças logo, atende:
Direi seus crimes e da pena as dores.
“Todo mal, que no céu cólera acende,
Injustiça há por fim, que o dano alheio,
Usando fraude ou violência, tende.
“Próprio do homem por ser da fraude o meio
Mais descontenta a Deus; mores tormentos
Em lugar sofre de aflições mais cheio.
“Dos círc’los o primeiro é dos violentos;
Mas, força a três pessoas se fazendo,
Foi construído em três repartimentos.
“A Deus, a si, ao próximo ofendendo,
Nas pessoas, nos bens a força fere,
Como hás de convencer-te, me entendendo.
“Morte ou dor força ao próximo confere.
Com ruína, com fogo os bens lhe invade.
Quando pela extorsão não se apodere.
“Homicidas, os que usam feridade,
Ladrões, desvastadores, torturados
Stão no primeiro, em turmas, sem piedade.
“Homens há contra si cruéis, irados
Ou contra os próprios bens: pois no segundo
Recinto jazem sempre amargurados,
“Quem se privara do terreno mundo,
Os que seus cabedais malbarataram,
Quem chora onde pudera estar jucundo.
“Contra Deus violências homens preparam,
Se o negam, se o blasfemam, desdenhando
Natura e os dons, que nela se deparam.
“No recinto menor sinal nefando
Caors marca igualmente com Sodoma,
E os que pecaram contra Deus falando.
“A fraude em que o remorso tanto assoma,
Ou trai a confiança ou premedita
Danos a quem desprevenido toma.
“A fraude desta espécie se exercita
Contra os laços de amor, que faz natura:
Portanto no segundo círc’lo habita
“Adulação com simonia impura,
Hipócritas, falsários, feiticeiros,
Rufiães e outros dessa laia escura.
“Transtorna a outra afetos verdadeiros,
Que inspira a natureza e os que origina
A mútua fé nos ânimos inteiros.
“E, pois, no círc’lo extremo, que domina
Da terra o centro e onde Dite pesa,
Eterna pena aos tredos se destina”. —
“Tem, Mestre” — eu disse — “o cunho da clareza
O que expões, distinguindo exatamente
A geena do inferno e a gente presa.
“Diz-me: os que jazem na lagoa ingente,
Os que flagela o vento ou chuva imiga,
Os que se encontram em frêmito insolente,
“Por que Deus lá em Dite os não castiga,
Se a ira a Deus seus feitos acenderam?
Se não, por que a aflição tanto os fustiga?” —
“Deliras? Da tua mente se varreram
Princípios sãos” — tornou — “a que és afeito?
A que rumo as idéias se volveram?
“Olvidas, porventura, esse preceito,
De que houveste na Ética a ciência,
Das três disposições, que em mau conceito
“Estão do céu, — malícia, incontinência
E furor bestial? — como a segunda
Importa a Deus menor irreverência?
“Se atentas em verdade tão profunda,
Se lembras quais são esses que padecem
Acima da mansão, que o fogo inunda,
“Verás então ser justo não sofressem
Daqueles maus a par, menos pesada
Punição culpas suas merecessem”. —
“Sol, que me aclara a vista perturbada,
Às lições tuas dou tamanho apreço,
Que o duvidar, como o saber, me agrada.
“Tornando ao que disseste, expliques peço,
Por que motivo, Mestre, usura ofende
A divina bondade em tanto excesso”. —
“Filosofia” — disse — “quem a atende
Tem demonstrado, quase em toda parte,
Que a natureza a sua origem prende
“Do divino intelecto e da sua arte.
Da Física em princípio hás conhecido
Preceito, que hei mister recomendar-te:
Que é da vossa arte ir sempre que há podido
Após natura — à mestra obediente; —
Neta de Deus chamá-la é permitido.
“Da natureza e da arte, se tua mente
O Gênese em começo lembra, colhe
O seu sustento e haver a humana gente.
“Usura bem diversa estrada escolhe
Natura e a aluna sua menospreza,
Esperança e cuidado e mal recolhe.
Mas andemos; prossiga a nossa empresa.
Vão no horizonte os Peixes assomando;
Voltando sobre o coro o culto pesa
E, além, a rocha está passagem dando”. —
CANTO XII
[ O Minotauro está de guarda ao sétimo círculo. Vencida a ira dele, chegam os Poetas ao vale, em cujo primeiro compartimento vêem um rio de sangue fervendo, no qual são punidos os que praticaram violências contra a vida ou as coisas do próximo. Uma esquadra de Centauros anda em volta do paul vigiando os condenados, frechando-os se tentam sair do rio de sangue. Alguns desses Centauros pretendem deter os Poetas, porém Virgílio os domina, conseguindo que um deles os escolte e transporte na garupa a Dante. Na passagem o Centauro, que é Nesso, fala a respeito dos danados que sofrem a pena no rio de sangue. ]
DA descida era o passo tão fragoso
E tal por quem lá estava à guarda e atento,
Que se fazia à vista pavoroso.
Como a ruína, que daquém de Trento,
O Ádige feriu, por terremoto
Ou por faltar de chofre o fundamento;
Do viso ao val do monte, que foi roto,
Tão derrocada vê-se a penedia,
Que a descê-la o caminho é quase imoto.
A ribanceira assim nos parecia.
E à borda do penedo fracassado
De Creta o monstro infame se estendia,
Da falsa vaca torpemente nado.
Apenas viu-nos, se mordeu fremente,
Como quem pela raiva é devorado.
“Cuidas” — bradou-lhe o sábio incontinente —
“Ser de Atenas o príncipe, o que à morte
Lá sobre a terra te arrojou valente?
“Arreda, bruto! Que este é de outra sorte;
Da tua irmã não recebera ensino;
De vós outros vem ver a pena forte”.
Qual touro desprendido, quando o tino
Mortal golpe lhe rouba, que não pode
Correr, mas salta a vacilar mofino:
Assim o Minotauro. O Mestre acode
Dizendo-me: “Demanda presto a entrada
E desce, enquanto em vascas se sacode”. —
A quebrada descíamos formada
De pedras soltas; cada qual, movida,
Cedia, em sendo por meus pés calcada.
E eu cismava. Ele disse: — “Tens sorvida
A mente na ruína, que do horrendo
Monstro a ira defende já vencida.
“Deves saber que, de outra vez descendo
Até o extremo lá do baixo inferno,
Esta rocha não vi, como a estás vendo,
“Mas, pouco antes de vir se bem discerno,
Aquele que há tomado a grande presa,
A Dite, lá no círculo superno,
“Deste val tremeu tanto a profundeza,
Que sentisse pensei todo o universo
O amor, com que alguém diz ter certeza
“De que ao caos muita vez será converso.
Foi aqui, noutras partes, nesse instante,
Roto o velho penhasco em treva imerso.
“Mas olha o vale: o rio é não distante
De sangue, onde verás fervendo aquele,
Que violência exerceu no semelhante.
“Ó ira louca, ó ambição, que impele
Na curta vida nossa, ao inferno arrasta
E para sempre nos submerge nele!” —
Eis uma cava divisei mui vasta,
Que abrangia, arqueada, o plano inteiro,
Como dissera quem do mal me afasta.
No espaço, a que o penhasco é sobranceiro,
Centauros correm, setas agitando,
Como soíam no viver primeiro.
Descer nos vendo, pára o ardido bando.
Três de entre eles então nos demandaram,
Os arcos e arremessos preparando.
Os brados de um de longe nos soaram:
— “Vós, que desceis, dizei a pena vossa;
De lá falai, ou tiros se disparam!” —
Virgílio respondeu: — “Resposta nossa
Terá Quiron de perto, sem demora.
Sempre te dana a pressa que te apossa”. —
Tocou-me e disse: — “Quem nos fala agora
É Nesso, o que morreu por Dejanira;
Mas se vingou de quem fatal lhe fora.
“Esse do meio, que o seu peito mira,
Aio de Aquiles, é Quiron famoso;
Esse outro é Folo, sempre aceso em ira”. —
Aos mil em volta ao rio sanguinoso
As almas seteavam, que excediam,
Mais do que é dado, o líquido horroroso.
Àqueles monstros que ágeis se moviam,
Chegamo-nos. Quiron com seta ajeita
Os cabelos, que os lábios lhe encobriam.
Quando desta arte a larga boca afeita,
Disse à companha: — “Haveis já reparado
Que move aquele tudo, em que os pés deita?
“Nunca assim pés de morto hão caminhado”.
O Guia meu, que junto já lhe estava
Do peito, onde era um ser noutro enleado,
— “Vivo está, vem comigo” — lhe tornava —
“A visitar o val maldito, escuro
Para cumprir dever, que lho ordenava.
“Deixando de cantar o hosana puro
Alguém me há cometido o cargo novo.
Não é ladrão, nem eu esp’rito impuro:
Em nome do poder, por quem eu movo
Os passos meus em tão medonha estrada,
Envia algum, que escolhas no teu povo,
“Por nos mostrar a parte acomodada
Ao vau, e no seu dorso haver transporte
Quem não é sombra ao vôo aparelhada”.
Quiron volveu-se à destra e a Nesso forte
— “Torna atrás” — disse — “e serve-lhes de guia:
Que outro bando o caminho lhes não corte!” —
Já partimos na fida companhia,
As ondas costeando rubras, quentes,
Donde agudo estridor ao ar subia.
Té os cílios no sangue os padecentes
Eu vi. Disse o Centauro: — “São tiranos
Truculentos e em roubo preminentes.
“Chora-se aqui por feitos desumanos.
Alexandre aqui está, Dionísio antigo
Que gemer fez Sicília tantos anos.
“De negra coma, aqui sofre o castigo
Azzolino; e o que está, louro, ao seu lado
Obizzio d’Este, ao qual (verdade eu digo)
“Roubara a vida o pérfido enteado”. —
E o Vate, a quem voltei-me, assim dizia:
— “O segundo lugar me é reservado”. —
Pouco além parou Nesso: olhar queria
Uma turba, que, estando submergida,
Toda a cabeça para fora erguia,
Disse, indicando uma alma retraída:
“Perante Deus um coração ferira,
Que inda Londres venera estremecida”. —
A cabeça vi de outros, que subira
Do rio à superfície e o inteiro busto,
Suas feições no mundo eu distinguira:
Ia baixando o sangue até que a custo
Os pés cobria a quem passar quisesse:
O fosso ali vencemos já sem custo.
“Se desta parte o borbulhão parece
Do rio escassear, eu te asseguro”
— Disse Nesso — “que mais engrossa e desce
“Na parte oposta até juntar-se ao escuro
Pego em que, como hás visto, a tirania
As penas dá no seu tormento duro.
“A divina justiça lá crucia
Esse Átila, que açoite foi da terra,
Pirro e Sexto; e redobrar-se a agonia
“Dos dois Renatos, que tamanha guerra
Fizeram nas estradas, salteando,
— O Pazzo e o de Corneto”. — E a fala cerra.
Voltou depois do rio o vau passando.
CANTO XIII
[ Os dois Poetas entram no segundo compartimento, onde são punidos os violentos contra si mesmos e os dilapidadores dos próprios bens. Os primeiros são transformados em árvores, cujas negras folhas as Hárpias dilaceram; os outros são perseguidos por cães famintos que os despedaçam. Dante encontra Pedro des Vignes, de quem ouve os motivos pelos quais se suicidou e as leis divinas em relação aos suicidas. Vê depois o senense Lano e o paduano Jacob de Sant’Andréa. Ouve, enfim, de um suicida florentino, qual é a causa dos males da sua pátria. ]
NÃO stava ainda Nesso do outro lado,
Quando nós por um bosque penetramos,
Dos vestígios de passos não marcado.
Não fronde verde, mas escura, ramos
Não lisos, mas travados e nodosos,
Não pomos, puas com veneno achamos.
Por silvados mais densos, mais umbrosos,
Do Cecina a Corneto, a besta brava,
Não foge, agros deixando deleitosos.
Das Hárpias o bando aqui pousava.
Que expeliram de Strófade os Troianos,
Vaticinando o mal, que os aguardava.
Asas têm largas, colo e rosto humanos,
Garras nos pés, plumoso e ventre enorme,
Soam na selva os uivos seus insanos.
E disse o Mestre: “Convém já te informe
Que o recinto segundo vais entrando,
Onde verás spetáculo disforme,
“Até que ao areal chegues infando.
Atenta! E darás fé à narrativa,
Que fiz, ainda lá no mundo estando”.
Em toda parte ouvi grita aflitiva:
Como não via quem assim gemesse,
Parei e a torvação se fez mais viva.
Creio que o Mestre cria então que eu cresse
Que esses lamentos enviava aos ares
Uma turba, que aos olhos se escondesse;
Pois disse-me: “De um tronco se quebrares
Um só raminho, ficarás ciente
Desse erro em que se enleiam teus pensares”. —
O braço estendo então e prontamente
Vergôntea quebro. O tronco, assim ferido
“Por que razão me arrancas?” diz fremente.
De sangue negro o ramo já tingido,
“Por que me rompes?” — prosseguiu gemendo —
Assomos de piedade nunca hás tido?” —
“Fui homem, hoje o lenho, que estás vendo!
Mais compassiva a tua mão seria
Se alma aqui fosse de um dragão tremendo”.
Como acha verde, quando se incendia
Num extremo s’estorce, no outro estala,
Chiando e a umidade fora envia:
Daquela arvora assim brotava a fala,
E o sangue; a minha mão já desprendera
O ramo, e, entanto, o horror no peito cala.
“Se de antes ele acreditar pudera”
Lhe torna o sábio Mestre “alma agravada,
O que eu nos versos meus lhe descrevera,
“Por te ferir sua mão não fora alçada.
Não crera eu mesmo, e tanto que o induzira
Ao feito, que me pesa e desagrada.
“Diz-lhe quem foste e as dúvidas lhe tira.
O mal te compensando, a fama tua
Há de avivar no mundo, a que retira”. —
E o tronco: “Alívio tanto à dor, que atua,
Causais, que de bom grado eu já explico:
Ao triste dai que a mágoa exprima sua.
Fui quem do coração de Frederico
As chaves tive e usei com tanto jeito,
Fechando e desfechando que era rico
“Da fé com que a mim só rendeu seu peito
No glorioso cargo fui constante,
Força, alento exauri por seu proveito.
“A torpe meretriz, que, a todo instante
Ao régio paço olhos venais volvendo,
Morte comum, das cortes mal flagrante,
“Contra mim ódio em todos acendendo,
Por eles acendeu iras de Augusto,
Que honras ledas tornou-me em luto horrendo.
“Ressentindo-me então do mundo injusto,
Por fugir seus desdéns, buscando a morte,
Comigo iníquo fui eu, que era justo.
“Pelo tronco em que peno desta sorte,
Que jamais infiel hei sido, juro,
Ao Rei meu, que houve a glória por seu norte,
“De vós o que voltar à luz adjuro
Que a memória me salve ao nome honrado,
Que vulnerou da inveja o golpe duro”. —
O vate inda esperou. — “Pois se há calado”. —
Disse-me “fala, se tu mais desejas
E pede-lhe: do tempo és apressado”. —
Tornei: “Tu mesmo inquires quanto vejas
Mais convir-me; que eu sinto-me inibido
Por mágoas, que em minha alma são sobejas”.
Ele então: “— Se o desejo teu cumprido
For por este homem, nobremente usando,
Te apraza, encarcerada alma, ao pedido
“Nosso atender, e como nos mostrando
Se liga ao tronco o esp’rito e se é factível
Soltar-se um dia, o vínculo quebrando”. —
Soprou de rijo o lenho; e perceptível
Aquele som desta arte nos dizia:
— “Resposta breve dou quanto é possível.
“Quando os laços do corpo uma alma ímpia
Destrói por si, do seu furor no enleio
Ao círc’lo sete Minos logo a envia.
“Na selva tomba e aonde acaso veio,
E como o seu destino lhe consente,
Aí, qual grão germina de centeio,
“Vai crescendo até ser árvore ingente:
As Hárpias, que a fronde lhe devoram,
Causam-lhe dor, que rompe em voz plangente.
“Hemos de ir onde os corpos nossos moram,
Como as outras, mas sem que os revistamos,
Mor pena aos que em perdê-los prestes foram.
“Arrastados serão por nós: aos ramos
Pendentes ficarão nesta floresta
Nos troncos, em que, assim, vedes, penamos”. —
Ouvíamos ainda a sombra mesta,
De mais dizer cuidando houvesse o intento.
Eis sentimos rumor, que nos molesta.
Assim monteiro, à caça pouco atento,
Do javardo e dos cães ouve o estrupido
E das ramadas o estalar violento.
Súbito vejo à esquerda, espavorido,
Fugindo esp’ritos dois nus, lacerados,
Ramos rompendo ao bosque denegrido.
“Ó morte!” um clama — “acode aos desgraçados!”
O segundo, que tardo se julgava:
“Ninguém, ó Lano, os pés tanto apressados
“De Toppo nas refregas te observava!”
Porém, de todo já perdido o alento,
Numa sarça acolheu-se que ali stava.
Corria, enchendo a selva, em seguimento
De famintas cadelas negro bando,
Quais alões da cadeia ao todo isento
A sombra homiziada se enviando,
A fez pedaços a matilha brava,
E logo após levou-os ululando.
Então meu Guia pela mão me trava,
Conduz-me à sarça, que se em vão carpia
Pelas roturas, que o seu sangue lava.
“Ó Jacó Santo André!” triste dizia —
“Podia eu ser-te acaso amparo certo?
Em mim por crimes teus que culpa havia?” —
Disse-lhe o Mestre, quando foi mais perto:
“Quem és tu, que o teu sangue e mágoas exalas
Por golpes tantos, de que estás coberto?” —
Tornou-lhe: “Ó alma que dessa arte falas
E tu que o dano vês, que me separa,
Da fronde minha, agora amontoá-las
“Dignai-vos junto à rama, que as brotara.
Na cidade nasci que por Batista
Deixou prisco patrão, que da arte amara
“Sempre pelos efeitos a contrista.
E se do Arno na ponte não restasse
Um vestígio, que traz seu culto à vista
“Talvez ela à existência não tornasse,
E quem das cinzas, que Átila há deixado,
Levantou-a os esforços malograsse.
“Na minha própria casa hei-me enforcado”. —
CANTO XIV
[ O terceiro compartimento no qual agora chegam os Poetas é um campo de areia ardente, devastado por grandes chamas de fogo. Aí estão os violentos contra Deus, contra a natureza e contra a arte. Entre os primeiros está Capaneo, que desafia a Deus. Seguindo, Dante e Virgílio chegam a um regato sangüíneo. Deste e dos outros rios do Inferno Virgílio narra a origem misteriosa. ]
DE amor do pátrio ninho comovido,
Essas dispersas folhas reunindo,
À sarça as dei, que tinha a voz perdido.
Ao limite, dali, fomos seguindo,
Em que parte o recinto co’ terceiro,
Onde a justiça horrível stá punindo.
Para expressar-lhe o aspecto verdadeiro,
Eu digo que à charneca então chegamos,
De plantas nua em seu espaço inteiro.
Da dor a selva a cerca dos seus ramos,
Como o fosso a torneia sanguinoso:
Ali, rente co’a borda, os pés firmamos.
O plaino era tão árido e arenoso,
Como o que de Catão os pés outrora
Na jornada calcaram fadigoso.
Ó vingança de Deus, quem não te adora
Nos tremendos efeitos meditando,
Que eu próprio olhei, que a minha voz memora!
De almas nuas eu via infindo bando,
Por modos diferentes torturadas,
Miseráveis, mesquinhas pranteando.
Jaziam sobre o dorso umas deitadas,
Outras, dobrando os membros, se assentavam,
Muitas andavam sempre aceleradas.
Maior a turba destas se mostrava,
Menor a que, prostrada no tormento.
Maior dor nos lamentos denotava.
Largas flamas com tardo movimento
Choviam do areal em todo o espaço,
Qual neve em serra, quando é mudo o vento.
Na Índia sobre o exército, já lasso,
Fogos cair viu Alexandre outrora,
No chão ardendo livres de embaraço.
Que aos pés no solo os calquem sem demora
Suas falanges avisado ordena:
Matá-los um por um fácil lhes fora.
Assim baixava, para agravo à pena,
Lume eterno que à areia se prendia,
Como à isca a fagulha mais pequena.
Cada qual sem repouso se estorcia,
A um lado e a outro os braços revolvendo
A cada chama, que do ar chovia.
“Mestre” — falei — “que vais tudo vencendo,
Somente exceto a legião furente,
Que em Dite a entrada estava-nos tolhendo,
“Diz quem seja a grã sombra, que não sente,
Ao parecer, o incêndio, e não domado
Pela chuva, já rápido, insolente?” —
Reconhecendo o próprio condenado
Que da minha pergunta fora objeto,
“Morto sou qual fui vivo!” clama irado.
“Que Jove canse o armeiro seu dileto,
De quem tomou fremente o agudo raio
Para em mim saciar rancor abjeto;
“Que os seus cíclopes sintam já desmaio
De Mongibello na oficina negra,
Aos gritos — “Bom Vulcano, acode ou caio!” —
“Como fez na peleja lá de Flegra;
Que me fulmine de ódio e sanha cheio:
No gozo da vingança em vão se alegra”. —
Virgílio então, com voz, como não creio
Lhe ter ouvido, sonorosa e forte,
Bradou-lhe: “Capaneu, pois no teu seio
“Não mitiga a soberda a própria morte,
Sofre mor pena; igual não há castigo
Ao que a raiva te inflige desta sorte!” —
Para mim se voltou; com gesto amigo
Falou: — “Dos Reis que Tebas sitiaram
Foi um; de Deus se declarara imigo.
“Os crimes seus no inferno se agravaram;
Já disse-lhe, as blasfêmias, os furores
Digno prêmio em seu peito lhe deparam.
“Vem agora após mim; pelos fervores
Não caminhes da areia incandescente;
Da selva ao longo evitas-lhe os ardores”. —
Fomos andando, cada qual silente,
Até onde jorrar do bosque eu via
Rubro arroio, que lembro inda tremente.
Do Bulicame qual o que saía,
Das pecadoras em serviço usado:
Tal pela adusta areia este corria.
As margens e orlas são de cada lado
Feitas de pedra e assim também seu leito:
Caminho ali notei ao passo azado.
“De quanto aqui te conhecer hei feito,
Depois que atrás deixamos essa porta,
A cujo ingresso todos têm direito,
“Não se há mostrado à tua vista absorta
Maravilha que iguale a desta veia,
Em que a flama adurente fica morta”. —
O Mestre diz e assim desejo ateia
De rogar-lhe me preste esse alimento,
Que excitado, o apetite haver anseia.
“Do mar em meio jaz” — ouvi-lhe atento —
“Destruído país, Creta afamada.
Com seu rei foi do mal o mundo isento.
“Alça-se ali montanha outrora ornada
De fontes e verdor: chama-se Ida:
Erma está, como cousa desprezada.
“Foi ao filho pra berço preferida
De Réia, que abafava o seu vagido
Fazer mandando grita desmedida.
“Nas entranhas do monte um velho erguido
Está: voltando à Damieta as costas,
Como a espelho, olha Roma embevecido.
“De ouro faces e fronte são compostas,
De pura prata são braços e peito,
Enéias do busto as partes bem dispostas.
“De ferro estreme tudo o mais foi feito,
O pé direito exceto, que é de argila,
Mas o corpo sustém, sendo imperfeito.
“Salvo do ouro, do mais sempre destila
De lágrimas por fenda crebro fio,
Que fura a gruta e rápido desfila.
“Aos negros vales vem correndo em rio,
Forma Stige, Aqueronte e Flegetonte,
Desce depois neste canal esguio
“Até do inferno o fundo, aonde é fonte
Do Cocito. O que o rio acaso seja
Verás: mister não é que ora te conte”. —
— “Se desde o nosso mundo ele serpeja,
Dize, ó Mestre, a razão por que a torrente
Só neste abismo lôbrego se veja”. —
“É circular este lugar horrente,
E posto haja vencido extenso trato,
Descendo tu à esquerda, inteiramente
“Não hás feito inda ao círc’lo o giro exato.
Não revele o teu rosto maravilha.
Novas cousas em vendo e estranho fato”. —
Ainda eu perguntei: — “Por onde trilha
O Flegetonte e o Letes? De um te calas,
E do outro a veia é dessa origem filha”. —
Tornou: — “Muito me agrada quanto falas;
Da água rubra o fervor, porém, solvera
Uma dessas questões, que me assinalas.
“Do inferno fora o Letes ver espera:
Na linfa sua as almas vão lavar-se
Depois que a penitência o perdão gera”. —
Disse depois: “É tempo de deixar-se
A selva; os passos meus sempre acompanha,
Pela margem caminho há para andar-se.
Do fogo ali se extingue toda sanha”. —
CANTO XV
[ Prosseguindo os Poetas, encontram um grupo de violentos contra a natureza. Entre estes está Brunetto Latini, que reconhece o discípulo e lhe pede para aproximar-se dele, a fim de conversarem. Falam de Florença e das desventuras reservadas a Dante. Brunetto dá ao Poeta ligeiras notícias a respeito das almas que estão danadas com ele e foge para reunir-se a elas. ]
POR uma dessas margens empedradas
Imos: vapor do rio resguardava
Das chamas o álveo e as bordas elevadas.
Como do mar temendo a força brava
De Bruge a Cadsand, Flamengos fazem
Os diques, com que o mal se desagrava;
Ou como o dano atalha, que lhe trazem
Do Brenta as invasões de Pádua a gente,
Se em Quiarentana os gelos se desfazem,
Assim as bordas desse rio horrente,
Posto altura e grossura lhes não desse
Iguais, quem quer que fosse artista ingente.
A selva já distante de nós era
Tanto, que eu divisá-la não podia,
Quando os olhos por vê-la atrás volvera,
Eis encontramos multidão sombria,
Que a margem costeava, nos olhando,
Como sói caminhante, ao fim do dia,
Que vai, por lua nova, outro encarando:
Para nos ver os cílios contraindo,
Qual a agulha o artesano aparelhando.
Assim, de mira à turba nós servindo,
Conhecido fui de um que me travava
Da roupa — “Ó maravilha!” — repetindo.
Quando o seu braço para mim se alçava,
Atentei-lhe no rosto requeimado;
Posto que demudado, não vedava
Que de mim fosse nas feições lembrado.
À sua face inclinando a mão, lhe digo,
— “Messer Brunetto! vós aqui!” — torvado.
“Filho meu! complacente sê comigo!
Vir Brunetto Latini ora consente,
Deixando a turba, um pouco assim contigo!” —
Tornei: — “muito vos rogo; e que me assente
Convosco se quereis, prazendo ao guia
Dos passos meus, assentirei contente”. —
— “Se um momento um de nós” — me respondia —
Aqui parasse, imóvel anos cento,
Pelo fogo ferido jazeria.
“Caminha: que eu te irei no seguimento.
Depois hei de juntar-me à companhia
Dos que pranteiam no eternal tormento”. —
Eu da estrada a descer não me atrevia
Por ir com ele; mas a fronte inclino
Reverente; e, falando prosseguia.
— “Que fortuna” — me disse — “ou que destino
Antes da morte aqui te há conduzido?
De quem recebes na jornada ensino?”
— “Antes de haver da idade o tempo enchido
Sobre a terra na vida sossegada;
Num vale” — respondi — “fiquei perdido.
“Ontem costas lhe dei por madrugada;
Ele acudiu-me, quando atrás voltava,
E me conduz assim por esta estrada”. —
— “Se bem vaticinei, quando gozava,
Da vida bela, glorioso porto
Te há de o teu astro conduzir” — tornava.
“Se antes do tempo eu não stivesse morto.
Vendo que tanto o céu te era benigno,
Te dera nos trabalhos o conforto.
“Mas esse ingrato povo é tão maligno,
Que outrora de Fiesole viera
E tem de penha o coração ferino,
“Em ti, por seres bom, mal considera.
É justo: que entre acerbos sovereiros
Crescer doce figueira não se espera.
“Velha fama os diz cegos, sempre useiros
Na soberba, na inveja, na avareza.
Deles te esquiva; em vícios são vezeiros.
“Te guarda a sorte de honras tal grandeza,
Que hás de ser dos partidos cobiçado;
Mas das garras lhes fica longe a presa.
“Ceve em si própria o fiesolano gado
Os instintos brutais; não toque a planta,
Que inda haja em tal nateiro germinado,
“E em que a semente ressuscite santa
Dos romanos, que ali restaram, quando
Teceu-se o ninho de malícia tanta”. —
— “Se o céu” — tornei — “meus votos escutando,
Deferisse, da vida o lume agora
Ainda aos olhos vos raiara brando;
“Que a doce imagem vossa inda memora
Saudosa a mente e o paternal desvelo
Com que me heis ensinado de hora em hora
“Como homem faz-se eternamente belo.
Enquanto eu vivo for, agradecido
Ao mundo bem patente hei de fazê-lo.
“O vaticínio vosso, reunido
A outro, há de explicar-me sábia Dama,
Quando à sua presença houver subido.
“E como a consciência me não clama,
Sabei que, quando a sorte avessa esteja,
A todo o mal sou prestes, que ela trama.
“O que ouvi não cuideis novo me seja:
Volva-se a roda como a sorte a lança,
Lavre a terra o vilão como deseja”. —
Então meu douto Mestre, que se avança,
Girando à destra e me encarando, disse:
“Bem compreende quem tem boa lembrança!” —
Não me vedou, porém, que eu prosseguisse
Na prática; e a Brunetto os mais famosos
Pedi que dos seus sócios referisse.
— “Alguns convém saber, mais numerosos
Em silêncio deixar louvável sendo:
Míngua o tempo aos discursos copiosos.
“Sabe, em suma, que clérigos havendo
Todos sido e letrados mui famosos.
Se mancharam num só pecado horrendo.
“Vão na turba daqueles desditosos
Acúrio e Prisciano; alguns protervos
Se ver quiseres, por tal lepra ascosos.
“Olha o que, como quis servo dos servos,
Pra Bacchiglione foi do Arno mudado
E ali deixou seus deformados nervos.
“Não mais dizer, nem ir posso ao teu lado,
Pois do areal já vejo de repente
Vapor novo surgir afogueado.
“Não devo andar com bando diferente.
O meu Tesouro eu muito te encomendo:
Nele inda vivo, e rogo isto somente”. —
Voltou-se; e foi tão rápido correndo,
Como os que correm pelo pálio verde
No campo de Verona, parecendo
Mais ser quem vence do que ser quem perde.
CANTO XVI
[ Perto do limite do terceiro compartimento do sétimo círculo os Poetas encontram outro bando de almas de sodomitas, no qual se destacam três ilustres compatriotas de Dante. Reconhecendo-o, falam da decadência das virtudes políticas e civis de Florença. Chegam, depois à orla de outro precipício, onde a um sinal de Virgílio, sobe, voando pelos ares, uma figura estranhíssima. ]
EM lugar stava já donde se ouvia
Rumor, igual de abelhas ao zumbido,
De água, que noutro círculo caía:
Eis três sombras partir vi comovido,
Correndo, de uma turba que passava
Debaixo do martírio desmedido.
Vinham a nós, e cada qual gritava:
“Detém-te; por teus trajos se afigura
Seres alguém da nossa terra prava”. —
Ah! que chagas nos membros, na figura
O fogo lhes abria, novas e antigas!
Só recordando, eu sinto mágoa pura.
O mestre, que escutara — “Não prossigas!
Cumpre-te” — disse, o rosto me voltando, —
“Aguardando, lhes dar mostras amigas.
“Não estivesse o fogo dardejando,
Como o lugar requer, te caberia
Mais pressa do que estão manifestando”. —
Paramos. Renovando a vozeria
Um círc’lo junto a nós os três formaram,
Em que as mãos cada qual dos três unia.
Como atletas, que, nus, de óleo se untaram,
Mas, antes de lutar, dos adversários
No fraco atentam, no seu prol reparam:
Eles, se revolvendo em giros vários,
Olhavam-me em tal modo colocados,
Que os colos aos seus pés stavam contrários.
“Se a miséria, em que somos trateados,
Se o triste aspecto da tostada face
Te move a desdenhar súplices brados,
“Nossa fama o teu ânimo traspasse;
E pois, dize quem és que, ufano, o inferno
Calcas antes que a vida se finasse.
“Este, por quem os passos meus governo,
Escoriado e nu, que ora estás vendo,
Mais do que o crês no mundo foi superno.
“Da famosa Gualdrada o neto sendo,
Chamou-se Guido Guerra, e foi na vida
Por esforço e prudência reverendo.
A Tegghiaio Aldobrandi, que em seguida
Me vai, por sua voz, por seus bons feitos
Devera ser a pátria agradecida.
Eu que também da pena sofro efeitos
Jacopo Rusticucci fui: da esposa
O maior mal causaram-me os defeitos”. —
Se houvesse amparo à chuva pavorosa
(Virgílio o consentira), eu me lançara
Entre eles, da alma na expansão piedosa;
Porém naqueles fogos me abrasara,
Sobrepujou temor vivo desejo,
Que de abraçá-los súbito me entrara.
“Não desdém, mas piedade neste ensejo,
Que não se extinguira, me tem movido”
Lhes disse — “o padecer em que vos vejo,
“Tanto que o Senhor meu há proferido
Palavras, que a presença me indicaram
De almas quais sois neste lugar temido.
“Da vossa terra sou: sempre exaltaram
Meu apreço e o dos que vos conheceram
Ações que os nomes vossos tanto honraram.
“Por meu Guia veraz esperançado,
Deixo o fel por doçura permanente
Tendo primeiro o centro visitado”. —
“Que no teu corpo a vida longamente
Persista!” — a sombra disse. — “Dure a fama
Do nome teu com lume resplendente!
“Na pátria nossa inda revive a flama
Da honra, do valor, que ali brilhara,
Ou de todo a expeliu ódio que infama?
“Pois Guilherme Borsiere, que baixara,
Há pouco, e vai chorando nesta ardência,
Cruciou-nos contando o que notara”. —
“Íncolas novos, súbita opulência,
— Florença, orgulho e vícios te acenderam,
De que tu própria temes a influência!” —
Gritei alçando a fronte: e os três, que me eram
Atentos, à resposta se encararam,
Como se essas verdades lhes prouveram.
“Se tão pouco te custa” — me tornaram —
“Sempre aos outros expor teu pensamento,
Feliz tu! Vozes tais assaz te honraram.
“E, pois, voltando a luz do firmamento,
Se alfim saíres desta estância horrente,
Quando — “Lá fui!” — disseres, de contente,
“Nos olvidar não deixa a humana gente”. —
Então, rompendo o círculo, fugiram,
Como se asas tiveram, velozmente.
Em menos tempo aos olhos se esvaíram
Do que proferir amen se gasta.
Logo aos passos do Mestre os meus seguiram.
Dali distância curta nos afasta,
Eis da água os sons ouvimos, tão de perto,
Que a voz forçar para se ouvir não basta.
Como o rio que, no álveo próprio aberto,
Em Veso nasce e vai para o oriente,
Ao lado esquerdo do Apenino, e ao certo
Aquaqueta se chama, da eminente
Parte enquanto não desce, mas, tomando
Nome diverso em Forli de repente,
Rebomba e cai pela quebrada, quando
Acerca-se a S. Bento, o grão mosteiro
Que dar a mil pudera asilo brando:
Assim desde um penhasco sobranceiro
Da água rubra troava alto estampido,
Que fora de surdez risco certeiro.
De uma corda eu me achava então cingido
Com que outrora prender quis a pantera,
De pêlo em malhas várias repartido.
Que a tirasse Virgílio me dissera:
Eu descingi-me presto, lha entregando
Enrolada, como ele prescrevera.
Então ele à direita se voltando,
A distância da borda alcantilada
Lançou-a longe para o abismo infando.
— “Àquela ação não de antes praticada,”
— Pensei — “há de seguir-se estranho efeito,
Que do Mestre a atenção tem despertada”. —
Quanta cautela deve haver e jeito,
Tratando-se com quem vê não somente
Os atos, mas também o que há no peito!
— “Surgirá” — disse o Mestre — “brevemente
O que espero: o que tens no pensamento
Logo aos teus olhos ficará patente.”
Verdade, que pareça fingimento,
Evita proferir homem discreto:
Sofre desar, de culpa estando isento.
Nada posso omitir, leitor dileto:
Desta comédia pelos cantos juro
(Sejam assim de longo aplauso objeto!)
Que subir por aquele ar grosso, escuro
Nadando vi figura temerosa
Ao peito mais intrépido e seguro:
Tal quem desceu pela onda perigosa
A desprender de ocultos embaraços,
Lá no fundo, a fateixa vagarosa,
Subindo, encolhe as pernas, tende os braços.
CANTO XVII
[ Enquanto Virgílio fala com Gerion, para convencer essa horrível fera a levá-los ao fundo do abismo, Dante se aproxima das almas dos violentos contra a arte. Dante reconhece alguns deles. A cada um pende do peito uma bolsa na qual são desenhadas as armas da sua família. Volta depois o Poeta para o lugar onde está Virgílio, que assentado já sobre o dorso de Gerion, põe-no diante de si, e assim descem ao oitavo círculo. ]
“EIS a fera, que a horrenda cauda enresta,
Que arneses, montes, muros atravessa
E com seu bafo impuro o mundo empesta!”
Assim Virgílio a me falar começa.
Para acercar-se logo lhe acenava
Ao marmóreo anteparo que ali cessa.
Da fraude o vulto imundo aproximava!
A cabeça avançou e o torpe busto,
Porém pendente a cauda lhe ficava
A cara assomos tinha de homem justo,
Tanto era o parecer beni’no e brando!
No mais serpe, movia horror e susto.
Grandes, hirsutos braços dilatando,
Alçava peito, ilhais, dorso malhados,
Mil rodelas e nós se entrelaçando.
Mais cores nos estofos recamados
Tártaros, Turcos nunca misturaram,
Nem Aracne em tecidos variegados.
Como os batéis, que à praia se amarram,
No mar a popa têm, a proa em terra;
E, como em regiões, que se deparam
Sob o voraz Tudesco, a fazer guerra
Embosca-se o castor: assim se via
O monstro à orla, que as areias cerra.
No ar a extensa cauda revolvia;
E a venenosa ponta bipartida,
Do escorpião qual dardo, se erigia
“Té onde a fera atroz jaz estendida.
Convém seja o caminho desviado
Da senda” — disse o Vate — “prosseguida” —
Descendo, pois, pelo direito lado
Para o fogo fugir e a areia ardente
Passos dez pela borda hemos andado.
Chegados nós de Gerião em frente,
Um tanto além sentado um bando achamos
Na areia, perto desse abismo ingente.
— “Do recinto por teres, em que estamos” —
Virgílio disse — “a experiência inteira
A sorte vai saber dos que avistamos.
“Os discursos, porém, filho aligeira.
Entanto impetrarei da fera infanda
Que prestar-nos seus ombros fortes queira”. —
Só pela borda, como o Vate manda,
Vou do círculo sétimo seguindo,
Dos mestos pecadores em demanda.
A dor, que brota em lágrimas, sentindo,
Socorre-se das mãos a aflita gente
Contra o solo e o vapor, que está caindo.
Assim lebréus, durante a calma ardente
Dos dentes e unhas valem-se, mordidos
De tavões por enxame impertinente.
Quando encarei nos rostos doloridos
De alguns, que os fogos tanto cruciavam,
Que eram todos achei desconhecidos.
Bolsas pendentes dos seus colos stavam,
Pelos sinais distintas, pelas cores:
Contemplando-as, seus olhos se enlevavam.
E vi já me acercando aos pecadores
Bolsa, na qual em campo de ouro havia
Azul, que era leão nos seus lavores,
A vista, que já noutra se embebia,
Em sangüíneo rubor ganso eu notava,
Que a brancura do leite escurecia.
Grávida, azul jardava um, que ostentava,
Broslada sobre cândida escarcela,
— “Que buscas neste abismo?” perguntava.
“Retira-te! Se a vida gozas bela,
Sabe que à sestra mão Vitaliano,
Vizinho meu terá condigna sela.
“Entre estes Florentinos sou Paduano;
A todo instante aturdem-me os ouvidos,
Bradando: — O nobre venha, o soberano,
“Que os três bicos na bolsa traz sculpidos”. —
Depois, torcendo a boca, a língua tira,
Qual boi, que os beiços lambe, ressequidos.
Não querendo mover desgosto ou ira
Em quem mor brevidade me ordenara,
Os mesquinhos deixei: assaz ouvira.
Disse-me o Guia então, que cavalgara
O dorso do animal fero e possante:
“Sê forte, a tudo o ânimo prepara!
“Se desce em tal escada de ora avante;
Sobe-te ao colo; ao meio irei sentado:
Que não te ofenda a cauda penetrante.”
De quartã qual doente, que, chegado
Supondo o acesso, lívido estremece
Somente ao ver lugar fresco, assombrado
Tal quando ouvi, meu peito, desfalece.
Ante o Mestre dá-me o pejo alento:
Bom amo o servo esforça que esmorece.
Já sobre a espalda do animal cruento,
Quero ao vate gritar: “Senhor, me abraça!”
A voz, porém, não corresponde ao intento.
Ele, que a mente espavorida e lassa
Em circuito mais alto me animara,
Sustendo-me, nos braços seus me enlaça,
E disse a Gerião: “Vai, mais não pára.
Em circuitos largos sem ter pressa:
Na carga, que ora tens, nova repara!” —
Bem como esquife, que voar começa,
Manso e manso recua: assim moveu-se.
Quando ao largo sentiu-se, eis endereça
A cauda aonde o peito seu tendeu-se.
Meneando-a, a retesa como enguia;
Das patas agitado o ar fendeu-se.
Feton, quando as rédeas já perdia,
Ao ver do céu o incêndio, ainda aparente;
Ícaro, quando lhe cair sentia
Da cera cada pluma ao sol ardente,
Gritando o pai; — “Ai! filho! Erraste a strada!”
De pavor não se entraram mais veemente,
Do que eu nessa viagem desusada,
No ar quando me vi, quando enxergava
Só a cerviz da fera maculada:
Com tardo movimento ela nadava,
Que gira e baixa pelo vento eu sinto
Que em torno ao rosto e abaixo se agitava.
Já ouvia à direita bem distinto,
Troar da catadupa fragorosa:
Olhos inclino ao fundo do recinto.
A mente estremeceu mais temerosa
Ao chamejar de fogo, ao som de pranto:
Encolhi-me ante a cena pavorosa.
De que descia então, com mor espanto,
Pelos males, que via, fiquei certo,
A mim se avizinhar a cada canto.
Qual falcão que no ar pairava incerto,
Sem ver reclamo ou cobiçada presa
Perdida a esp’rança ao caçador esperto,
Descamba, fatigado e sem presteza,
Em voltas mil por onde se arrojara,
E longe pousa, ou de ira, ou de tristeza:
Tal Gerião, enfim, no fundo pára
Ao pé da penedia alcantilada,
Livre do peso já que carregara,
Sumiu-se como seta disparada.
CANTO XVIII
[ Encontram-se os Poetas no oitavo círculo, chamado Malebolge, o qual é dividido em dez compartimentos concêntricos. Em cada um deles é punida uma espécie de pecadores, condenados por malícia ou fraude. No primeiro compartimento são punidos com açoites pela mão de demônios os alcoviteiros; e entre eles Dante reconhece Venedico Caccianemico e Jasão. No segundo jazem em esterco os aduladores e as mulheres lisonjeiras, entre outros, Alessio Interminelli, de Lucca e Taís. ]
TEM o inferno, de rocha construído,
De férrea cor, de muro igual cercado
Um lugar: Malebolge o nome havido.
Lá no centro do plaino inficionado
Se escancara grão poço, amplo e profundo:
Direi a compostura em tempo asado.
Espaço em torno estende-se rotundo
Entre o poço e o penhasco pavoroso:
Reparte-se em dez cavas o seu fundo.
Qual de fossos dobrados, cauteloso,
Se apercebendo, o alcáçar se assegura
Dos assaltos de imigo poderoso:
De abismos tais o aspecto se afigura.
Como da levadiça ponte entrada,
Aos de fora, do mundo na cintura,
Assim, do val no fundo começada,
Cada cava uma rocha atravessava
Em arco, para o poço concentrada.
De nós o monstro aqui se descargava:
À sestra mão seguiu logo o poeta,
E eu de perto fiel o acompanhava.
Novo tormento à destra me inquieta,
Novos algozes vejo, novas dores,
De que a primeira cava era repleta.
Stão lá no fundo nus os pecadores:
Do meio contra nós muitos caminham,
Outros conosco, em passos já maiores.
Em Roma, assim, às turbas, que se apinham
Do jubileu no tempo, sobre a ponte
Se abriu aos que iam trânsito e aos que vinham:
De um lado andavam, os que tendo em fronte
O castelo, a S. Pedro se endereçam,
E do outro lado os que iam para o monte.
Daqui, dali nas bordas, os apressam
Cornígeros demônios, açoitando
Com grandes azorragues, que não cessam,
Como aos golpes primeiros cada bando
Se apressa! Como cada qual evita
Que se repita o estímulo execrando!
Nesse andar minha vista num se fita,
Da parte oposta vindo, e logo eu disse:
— “Hei conhecido esta figura aflita”. —
Atentei mais, por que melhor o visse;
Deteve-se comigo o doce Guia
E deu que atrás o passo eu dirigisse.
Aos olhos esquivar-se-me queria,
Os seus baixando; mas foi vão o intento.
—“Tu, que te curvas, já te hei visto um dia.
“Se as feições não mudou-te o passamento
Venedico tu és Caccianemico.
Por que trato padeces tão cruento?” —
— “De mau grado o que exiges significo;
Mas cedo ao claro som dessa loquela,
Que à memória me traz o mundo inico.
“Eu fui aquele, que Ghisola bela
Do Marquês entreguei ao vil desejo:
Ora a verdade a minha voz revela.
“Comigo de Bolonha muitos vejo;
Com tantos nesta cava choro e peno,
Que a menos lá no mundo dá-se ensejo.
“De dizer sipa entre o Savena e o Reno,
Se a prova queres, lembra-te somente
De que em nós da avareza influi veneno”. —
Mas um demônio o atalhou. Furente,
Disse tangendo: — “Ó rufião, avante!
Mulher não há que vendas impudente!” —
Ao Mestre me tornei; — pouco distante
Era um rochedo, a que nos acercamos;
Da riba se elevava pra diante.
Assaz ligeiramente nos alçamos;
Fomos pela fragura à mão direita
E o eterno recinto assim deixamos.
Chegados onde a curva estava feita
Para passagem dar aos fustigados,
O sábio Guia disse: — “A face espreita
“Agora desses outros malfadados,
Em que ainda atender não conseguiste,
Porque não stavam para nós voltados”. —
Da antiga ponte divisamos triste,
Longa fileira: contra nós andava.
Cruel açoite em flagelar persiste.
Virgílio, quando eu nada perguntava,
— “Repara bem” — me diz — “na sombra altiva,
A quem pranto de dor faces não lava.
“De Rei conserva a majestade viva!
É Jasão: conquistou por força e manha
O velocino em Colcos fera e esquiva.
“A Lenos foi, depois que horrenda sanha
Feminil aos varões cortara a vida,
Nenhum poupando aquela fúria estranha.
“Ali, de amor no enlevo embevecida,
Hipsífile enganou, que já iludira
Suas irmãs, de compaixão movida.
“Grávida e só deixou-a: atroz mentira
Mereceu-lhe dos tratos a amargura.
Vingada está Medéia, a quem traíra.
“Quem perjurou como ele, há pena dura.
Do val primeiro baste o que sabemos
E de quantos aqui sofrem tortura”. —
Numa estreita vereda já nos vemos,
Que co’a borda segunda se cruzava,
Sustentando outra ponte, a que tendemos.
Turba dali ouvimos, que chorava
De outra cava no encerro e que, assoprando,
Com suas próprias mãos se arrepelava.
Estava-lhe as paredes incrustando
A exalação que sobe e ali se prende.
Ferindo o olfato e a vista horrorizando.
E tanto pelo abismo a cava estende,
Que só divisa quando está no fundo
Quem lá do cimo, perscrutando, atende.
Subimo-nos: então no fosso imundo
Vi gente em tal cloaca mergulhada,
Que a sentina figura ser do mundo.
Enquanto olhava ali tão conspurcada
Cara notei, que distinguir não pude,
Se padre ou leigo fora a alma danada.
— “Dizei por que tua vista não se mude
De mim, a imundos tantos desatenta!” —
Gritou-me. — E eu: — “Se a mente não me ilude,
“Te vi sem cabeleira tão nojenta.
Alessio Interminei de Lucca hás sido:
Em ti por isso a vista é mais atenta”. —
Ferindo a face, disse-me o descrido:
— “Aqui lisonjas vis me submergiram;
Língua indefessa em bajular hei tido”. —
Logo depois que vozes tais se ouviram,
Meu Guia: — “Olhos dirige um pouco avante,
E as feições me declara se atingiram
“De mulher desgrenhada e petulante
Que de unhas asquerosas se lacera,
Mudando de postura a cada instante.
“É Taís, a meretriz, que respondera
Ao namorado seu, quando dizia:
— “Te devo gratidão?” — “Muita e sincera!” —
Mas vamos: temos visto em demasia”. —
CANTO XIX
[ No terceiro compartimento, onde os Poetas chegam, são punidos os simoníacos. Estão eles, de cabeça para dentro, metidos em furos feitos no fundo e nas encostas do compartimento. As plantas dos pés, que estão fora dos buracos, são queimadas por chamas. Dante quer saber quem era um danado que mais do que os outros agitava os pés. É o papa Nicolau III da Casa Orsini, o qual diz que estava à espera de ser rendido por outros papas simoníacos. O Poeta, indignado, rompe numa veemente invectiva contra a avareza e os escândalos dos papas romanos. Virgílio, depois, o leva novamente para a ponte. ]
Ó SIMÃO MAGO, ó míseros sequazes
Por quem de Deus os dons só prometidos
A virtude, em rapina contumazes,
Por ouro e prata estão prostituídos!
Por vós tange ora a tuba sonorosa:
Jazeis na tércia cava subvertidos.
À outra tumba chegamos temerosa,
Da rocha nos subindo àquela parte,
Que, a prumo ao centro, eleva-se alterosa.
Saber supremo! Que inefável arte
Mostras no céu, na terra e infernal mundo!
Oh! teu poder quão justo se reparte!
Por toda a cava, aos lados e no fundo
Furos na pedra lívida se abriam,
De igual largura e cada qual rotundo.
Semelhar na grandeza pareciam
Aos que em meu S. João belo e esplendente
Para batismo ministrar serviam.
Quebrei um, não há muito, mas somente
Para infante salvar, que ali morria:
Fique a verdade a todos bem patente.
De cada um orifício eu sair via
Os pés, até das pernas a grossura,
De um pecador: o resto se sumia.
Stavam ardendo as plantas na tortura,
E tanto as juntas rijo se estorciam,
Que romperiam a prisão mais dura.
Do calcanhar aos dedos percorriam
As chamas, como a superfície inteira.
Em corpo de óleo ungido morderiam.
— “Quem padece” — disse eu — “por tal maneira,
Que mais que os sócios estorcer-se vejo
Em mais rúbida flama e mais ligeira?
— “Se ao fundo eu te levar, por teu desejo,
Por declive, que jaz mais inclinado,
De ouvir-lhe o nome e os crimes dou-te ensejo”. —
— “Aceito o que te praz, muito a meu grado:
Senhor do meu querer, és quem conhece
Quanto hei mister e a mente há reservado”. —
Passando à quarta borda, ali se desce
Para a esquerda voltando, até chegar-se
Lá onde tanto furo se oferece.
De mim não quis o Mestre aligeirar-se
Senão quando daquele, que gemia
Pelos pés, conseguiu apropinquar-se.
— “Tu, és assim voltada” — eu lhe dizia —
“Como estaca plantada, ó alma opressa,
Responder-me possível te seria?” —
Eu stava aí, qual monge, que confessa
Assassino, que em cova já fincado
O chama, pois, em tanto, a pena cessa.
— “Já tens” — gritou: já tens aqui chegado?
Já, Bonifácio, como tens descido?
Em anos muitos tenho a conta errado.
“Tão depressa desse ouro te hás enchido,
Pelo qual bela esposa atraiçoando,
A tens por tantos crimes afligido?”
Eu fiquei como quem, não penetrando
No sentido do que outro respondera,
Enleado e corrido fica olhando.
Mas Virgílio: — “Depressa lhe assevera:
Eu não sou, eu não sou quem tu cogitas” —
Respondi como o Vate prescrevera.
Ouvindo, as plantas estorceu malditas;
Depois a suspirar, com voz de pranto
— “Por que” — disse — “a falar assim me excitas?
“Se conhecer quem sou anelas tanto,
Que assim baixaste ao vale tenebroso,
De Papa sabe que hei vestido o manto.
“Filho de Ursa, deveras, cobiçoso
Em bolsa tudo pus por meus Ursinhos,
Lá ouro, aqui o esp’rito criminoso.
“Sob a cabeça minha estão vizinhos,
Em simonia os que me antecederam,
Sobrepondo-se um no outro esses mesquinhos.
“Hei de ao fundo descer, como desceram,
Logo em chegando aquele, que eu cuidara
Seres tu, quando as vozes me romperam.
“Mas, ardendo-me os pés se me depara
Intervalo mais longo, assim voltado,
Do que em tormento igual se lhe prepara.
“Virás de mores culpas outro inçado,
Pastor sem lei, das partes do ocidente
Que há de ser sobre nós depositado.
“Jasão novo será: condescendente
Teve o outro seu Rei, diz a Escritura,
Da França este o senhor terá potente”.
Não sei se ousado fui e se foi dura
A resposta, que dei ao condenado.
— “Tesouros exigira porventura
“Nosso Senhor de Pedro, ao seu cuidado
E zelo quando as chaves cometia?
— Segue-me — apenas lhe há recomendado.
“Dinheiro não tomaram de Matia
Pedro e os outros, por ser o preferido
Ao lugar, que o traidor perdido havia.
“Pena, pois: mereceste ser punido;
E guarda a que extorquiste, vil moeda
Que te fez contra Carlos atrevido.
“Não fora a referência, que me veda,
Das santas chaves, que empunhaste outrora,
No tempo, em que fruíste a vida leda,
“Voz mais severa eu levantava agora
Contra a avidez, que o mundo assaz contrista,
Que os bons oprime, o vício exalta e adora.
“A vós vos figurava o Evangelista,
Quando a que é sobre as águas assentada
Prostituir-se aos Reis foi dele vista:
“Nascera de cabeças sete ornada,
E o valor nos dez cornos possuía,
Enquanto ao esposo seu virtude agrada.
“De ouro a vossa cobiça um Deus fazia:
Por um dos que os gentios adoraram
Abrange cento a vossa idolatria.
“Constantino! Ah! que males derivaram,
Não do batismo teu, mas da riqueza
Que deste a um Papa e a quem outras se juntaram!”
Sentindo destas notas a aspereza,
Ele tomado de remorso ou de ira,
Agitava os dois pés com mor braveza.
Virgílio, creio, com prazer me ouvira:
Aplaudir seu semblante revelava
Verdades que eu, sincero, proferira.
Jubiloso nos braços me levava,
E, depois que apertara-me ao seu peito,
Por onde descendera, se tornava.
Sempre cingido desse abraço estreito,
Do arco ao cimo transportou-me o Guia:
Caminho à quinta cava era direito.
Ali suavemente me descia
Em rochedo tão íngreme e empinado,
Que às cabras ínvio ser me parecia,
De lá foi-me outro val descortinado.
CANTO XX
[ No quarto compartimento são punidos os impostores que se dedicaram à arte divinatória. Eles têm o rosto e o pescoço voltados para as costas, pelo que são obrigados a caminhar ao reverso. Virgílio mostra a Dante alguns entre os mais famosos, entre os quais a tebana Manto, da qual se origina Mântua, cidade natal de Virgílio. ]
NOVA pena convém dizer em versos
E dar matéria ao meu vinteno canto,
Do cântico onde punem-se os perversos.
Eu era já disposto tanto, quanto
Fora preciso para ver o fundo
Da cava, que banhava amargo pranto.
De almas vi turba, pelo val rotundo,
Que taciturna vinha e lacrimosa
Ao passo usado em procissões no mundo.
Mirei mais baixo e cada desditosa
Notei que fora o mento retorcido
Do colo ao começar: cousa espantosa!
Para o dorso era o rosto seu volvido:
Só recuando caminhar podia;
Que em frente olhar estava-lhe tolhido.
Talvez por força já de par’lisia
De alguém o corpo ao todo se torcesse;
Não vi: crê-lo difícil me seria.
Que te seja, Leitor, a Deus prouvesse
Proveitosa a lição! Pensa, atilado,
Quanto em mim, vendo, a compaixão crescesse,
O parecer humano tão mudado,
Que o pranto, que dos olhos derivava
Banhava o tergo a cada condenado.
Do rochedo eu a um ângulo chorava
Com tanta dor, que o Mestre de repente
— “Insensato és também?” — me interrogava.
“Aqui piedade é morte em toda mente:
Quando Deus condenou, quem mais malvado
Do que esse, que ternura por maus sente?
“Alça a fronte, alça, atento ao condenado,
Que ante os Tebanos se abismou na terra.
Gritavam-lhe: — Como andas apressado,
“Anfiarau? Como assim foges da guerra? —
Ele tombava entanto, ao val descendo,
Onde Minos os réprobos aferra.
“Pelo futuro penetrar querendo,
Tem o dorso adiante em vez do peito,
E a recuar caminha, atrás só vendo.
“Eis Tirésias, o que mudara o aspeito,
Femíneas formas e feições tomara,
Sendo-lhe o que era varonil desfeito.
“Ao sexo seu tornou, quando encontrara,
Inda uma vez, travadas serpes duas
E outra vez com bordão as separara.
“Volta-lhe Arons ao ventre as costas nuas:
De Luni em monte, aos agros iminentes,
Onde o Carrara ergueu moradas suas,
“Teve em gruta marmórea permanente
Estância, donde contemplar podia
As estrelas, as ondas livremente.
“Essa mulher” — continuou meu Guia —
“Que o seio oculta em traça flutuante
E de velos a pele tem sombria,
“Foi Manto, que vagara incerta e errante
Até pousar na terra, em que hei nascido.
No que ora digo irei um pouco avante.
“Vendo o pai já da vida despedido
E a cidade de Baco em jugo triste,
O mundo largo tempo há percorrido.
“Junto ao Alpes na bela Itália existe,
Além Tirol, já perto da Alemanha,
Um lago, que chamar Benaco ouviste.
“Veia de fontes mil, que a plaga banha
Entre Garda, Camônica e Apenino,
De águas conduz ao lago cópia manha.
“Ilha há no meio, em que o Pastor trentino,
E com ele os de Bréscia e de Verona,
Possuem de benzer juro divino.
“Onde é mais baixa do Benaco a zona,
A Bérgamo fazendo e a Bréscia frente,
Pesqueira, forte em bastiões, se entona.
“É dali que das águas o excedente,
Que ter em si não pode o lago, brota
Em rio e cobre os prados largamente.
“Quando prossegue, outro apelido adota,
Chama-se Míncio, perde o nome antigo:
No Pó junto a Governol, há fim sua rota.
“No verão à saúde traz perigo;
Em vasto plaino o álveo dilatando,
Forma paul, das infeções amigo.
“Manto, a virgem selvage ali passando,
Terreno viu desabitado, inculto
Naquele pantanal, que o está cercando
“Esquiva a humano trato e estranho vulto,
Fez ali de suas artes oficina
E viveu té sofrer da morte o insulto.
“Povo, ao diante, para ali se inclina,
Em torno esparso, e abrigo, o julga forte:
De águas cercado com pauis confina.
“Onde aqui o elegeu colhera a morte,
A cidade erigiram, que chamaram
Mântua, do nome seu sem tirar sorte.
“Os habitantes lá mais avultaram,
Quando ainda os ardis de Pinamonte
De Casalodis a insânia não fraudaram.
“Ciente fica, pois: se de outra fonte
A pátria minha originar quiserem,
A mentira à verdade nunca afronte”. —
— “As cousas, que tuas vozes me referem,
Tão certas são” — disse eu — “que me parece
Carvão extinto o que outros me disserem.
“Mais dize, ó Mestre: acaso não merece
Dos que avançam nenhum reparo ou nota?
Na mente de o saber desejo cresce”. —
— “Aquele, a quem do mento ao dorso brota
Barba esquálida, um áugur se dizia,
Quando de homens a Grécia tal derrota
Teve, que infantes só no berço havia.
Em Áulide com Calcas indicara
Tempo, em que a frota desferrar devia.
“Eurípilo chamou-se: assim narrara
Num dos seus cantos, a tragédia minha,
Bem sabes, pois tua mente a arrecadara.
“Esse, que, tão delgado, se avizinha,
Miguel Escotto foi, que, certamente,
Perícia em fraudes da magia tinha.
“Olha Guido Bonati, encara Asdente
Que cuidar só devera da sovela:
Arrepende-se agora inutilmente.
“Das tristes ora a turba se revela,
Que, desdenhando a agulha, a horrível arte
De encantos infernais acharam bela.
“Mas no limite, que hemisférios parte,
É Caim com seu fardo, o mar tocando,
Lá de Sevilha além do baluarte.
“A lua, a face plena já mostrando
(Te lembras?) ontem viste na sombria
Selva, em que te ajudou seu fulgor brando”. —
Assim falando, a passo igual seguia.
CANTO XXI
[ No quinto compartimento são punidos os trapaceiros que negociaram os cargos públicos ou roubaram aos seus amos. Eles estão mergulhados em piche fervendo. Os dois Poetas presenciam a tortura de um trapaceiro luquense por obra de um demônio. Virgílio domina os demônios que queriam avançar contra eles. Virgílio e Dante, escoltados por um bando de demônios, tomam o caminho ao longo do aterro. ]
ASSIM, de ponte em ponte, discursando
Do que nesta comédia se não cura,
De outro arco acima nos subimos, quando
Detemo-nos por ver a cava escura,
Por ouvir de outros prantos vão sonido;
Com pasmo olhei a hórrida negrura.
No arsenal de Veneza, derretido
Como referve o pez na estação fria
Para reparo ao lenho combalido,
Incapaz de vogar: qual com mestria
Baixel novo constrói; qual alcatroa
O que teve em viagens avaria;
Qual pregos bate à popa qual à proa;
Qual remos faz, qual linho torce ou parte;
Qual mezena e artemão aperfeiçoa:
Assim, por fogo não, por divina arte
Betume espesso, ao fundo refervia,
As bordas enviscando em toda parte.
Mas no pez só na tona eu distinguia
Borbulhão, que a fervura levantava,
Que ora inchava, ora rápido abatia.
No fundo enquanto os olhos eu fitava,
Exclamando Virgílio: — Eia! Cuidado! —
Para si donde eu era me tirava.
Voltei-me então como homem, que apressado
É por saber o que fugir convenha,
De súbito pavor sendo atalhado,
Olha sem que por isso se detenha,
E logo atrás de nós eu vi correndo
Negro demônio sobre aquela penha.
Ah! que aspecto feroz! Ah! quanto horrendo
Nos meneios parece e temeroso,
Veloz nos pés e as asas estendendo!
No dorso agudo e enorme um criminoso,
Escarranchado, em peso, carregava:
Dos pés prendia o nervo ao desditoso.
— “Malebranche!” já perto ele bradava —
— “Eis um dos anciões de S. Zita!
Mergulhai-o, pois torna à gente prava,
“Que nessa terra em grande soma habita.
Venais todos lá são menos Bonturo.
O no, por ouro, lá se muda em ita“.
Ao pez o arroja, e pelo escolho duro
Se torna: após ladrão tanto apressado
Não vai mastim, que estava antes seguro:
O maldito afundou; surdiu curvado.
Sob a ponte os demônios lhe gritaram:
— “Não acharás aqui Vulto Sagrado,
“Nem banhos, quais no Serchio se deparam.
Se não queres no pez star imergido.
A te espetar as fisgas se preparam”. —
Com croques cem mordendo esse descrido
— “Bailar” — disseram — “deves bem coberto;
Se puderes furtar, furta escondido”. —
Tal ordem em cozinha o mestre esperto
Aos ajudantes seus que na caldeira
Mergulhem naco à tona descoberto.
— “Por que” — falou-me o Guia — “alguém não queira
Molestar-te em te vendo, busca abrigo:
Num recanto o acharás desta pedreira.
“Não temas que me ofenda o bando imigo;
Muito bem sei como o furor lhe afronte;
Já venci de outra vez igual perigo”. —
Até o extremo então passou da ponte;
Mas, quando a sexta borda já subia,
Mister lhe foi mostrar serena fronte.
Qual fremente matilha, que se envia
Ao pobre, quando pára esbaforido
E pede alívio à fome que o crucia:
De baixo arremeteu-lhe o bando infido,
Aceso em ira, os croques seus brandindo.
Mas gritou-lhes: — “Nenhum seja atrevido!
“Os croques suspendi: até mim vindo
Me preste algum de vós atenção toda.
Fere, se ousais porém antes me ouvindo”.
Clamaram todos: — “Ouça — o Malacoda!”
Enquanto os mais ficavam no seu posto,
— “Que queres?” — disse alguém que sai da roda;
E o Mestre: — “És, Malacoda, a crer disposto
Que as ameaças vossas superasse
Para aqui vir, se por celeste gosto
E supremo querer não caminhasse?
Deixa-me ir; pois a lei divina ordena.
Que eu nesta agra jornada outrem guiasse”.
De Malacoda o orgulho já serena;
Aos pés lhe cai o croque; aos ais voltado
Lhes disse: — “Este não pode sofrer pena”.
E o Mestre me falou: — “Tu, que abrigado
Estás entre os penedos cauteloso,
Volve a mim, do temor descativado”.
Corri para Virgílio pressuroso.
Eis os demônios todos investiram:
Roto o concerto, pois, cria ansioso.
De Caprona os soldados, que saíram
A partido assim vi que estremeciam,
Quando envoltos de imigos se sentiram.
Nos sevos gestos seus se me prendiam
Os olhos, e a Virgílio vinculado
Os braços o meu corpo todo haviam.
Os croques inclinados: — “No costado
Fisguemo-lo” — entre si dois prorromperam.
E os outros: — “Oh! pois não! seja espetado!”
Ao que o Mestre falava desprouveram
Palavra tais, e então bradou depressa:
“Sê quedo, Scarmiglione!” — Emudeceram.
Depois assim nos disse: — “Andar por essa
Rocha não podereis; jaz destruído
Todo arco sexto sem restar-lhe peça.
Se avante quereis ir, seja seguido
Desta borda o caminho: não distante
Está rochedo ao passo apercebido.
“Ontem, cinco horas mais do que este instante
Mil e duzentos com sessenta e seis
Anos houve: é então a rocha hiante.
“Dos sócios meus na companhia ireis;
Vão ver se alguém ao banho quer furtar-se.
Ide em paz: molestados não sereis.
“Calcabrina, Alichino vão juntar-se
Com Cagnazzo, a decúria comandando
Barbariccia! E não podem separar-se
“Droghinaz, Libicocco, deste bando!
Graffiacane, o dentudo Ciriatto,
Farfarel, Rubicante vão marchando!
“Na ronda cada qual se mostre exato!
Sejam a salvo os dois encaminhados
Da ponte ao arco até agora intato!”
“Que vejo, ó Mestre!” — eu disse — “Acompanhados!”
Se sabes ir só, vamos prontamente;
De guias tais dispensam-se os cuidados.
“Se tu és, como sóis, Mestre, prudente,
Não vês que os dentes seus estão rangendo,
Que nos encaram com furor crescente?”
“Não temas” — disse o Mestre, respondendo —
“Ranger os dentes deixa-os a seu gosto:
É contra os que ardem lá no pez horrendo”.
À sestra os dez então fizeram rosto;
Nos dentes cada qual mostra primeiro,
Por mofa a língua ao cabo já disposto;
E ele trompa fazia do traseiro.
CANTO XXII
[ Andando os dois Poetas pelo aterro à esquerda, vêem muitos trapaceiros, que, por aliviar-se, boiam acima do piche fervendo. Sobrevêem os diabos e um deles é lacerado. É este Ciampolo, de Navarra, que consegue, depois, livrar-se das garras dos diabos, o que dá motivo a uma briga entre os demônios. ]
MARCHAR vi cavaleiros à peleja,
Travar luta, enlear-se no combate
E até pedir à fuga que os proteja;
Em vossa terra esquadras dar rebate
Vi, Aretinos; vi as cavalgadas,
Torneios, justas no mavórtico embate,
De tubas ao clangor, às badaladas,
Com sinais de castelos, de tambores,
Com artes novas ou entre nós usadas:
Não vi mover peões, nem corredores,
Nem baixéis, que regula a terra ou estrela,
De igual clarim aos sons atroadores.
Com dez demônios (que companha bela!)
Partimo-nos, porém rezar com santo,
Urrar com lobos discrição revela.
Minha atenção no pez se engolfa, entanto,
Por saber quanto encerra a negra cava,
Ali quem pena, quem derrama pranto.
Como o delfim, que da tormenta brava
O nauta avisa, o dorso recurvando,
Presságio do mau tempo, que se agrava.
Um lenitivo à pena, assim, buscando,
Mostrava o tergo algum dos condenados,
Qual relâmpago, logo se esquivando.
Como à borda de charcos enlodados
A fronte deixa à rã ver da água fora,
Pernas e corpo tendo resguardados:
Assim no pez a gente pecadora.
Mas, Barbariccia próximo já sendo,
Na resina se esconde abrasadora.
Eu vi (e ainda agora estou tremendo!)
Em cima retardar-se um desditoso
Qual rã, que fica, as mais desparecendo.
Perto ali stava Grafiacane iroso:
Fisgou-o na enviscada cabeleira,
E alçou, qual lontra, ao ar o criminoso.
Sabia os nomes da caterva inteira;
Ouvindo-os, atentei nos escolhidos:
Distingui-los podia de carreira.
“Eia! depressa os teus ferrões compridos
No costado lhe crava, ó Rubicante!”
Os demônios gritaram-lhe incendidos.
“Ó Mestre” — disse — “inquire insinuante
Quem seja aquele mísero e mesquinho
Que em mãos caiu da turba petulante”.
Moveu-se o Mestre e, à cava já vizinho,
Perguntou-lhe em que terra ele nascera.
— “Em Navarra” — tornou-lhe — eu tive o ninho.
“De um fidalgo ao serviço me pusera
Minha mãe, quando o pai meu devastara
Fazenda e a própria vida com mão fera.
“D’El-rei Tebaldo eu na privança entrara:
Vendia os seus favores fraudulento;
Sofro a pena do mal, que praticara”.
Então os dentes lhe cravou cruento,
De javardo quais presas, Ciriatto:
Armam-lhe a boca, servem de instrumento:
Nas mãos de imigo seu caíra o rato:
Barbariccia, entre os braços o estreitando,
— “Alto!” — lhe diz — “A mim cabe seu trato”.
E o rosto para o Mestre meu voltando,
Falou: — “Pergunta, se ainda mais desejas
Antes que o tenha lacerado o bando”.
“Algum dos pecadores, com quem stejas”
Virgílo interrogou — “Latino há sido?”
Tornou: — “Vou contentar-te no que almejas.
“No pez deixei alguém por tal havido...
Ah! não temera, estando lá coberto,
Ser de unhas e farpões ora ferido”.
— “É demais!” — Libicocco diz, que perto
Estava; e um braço ao triste dilacera,
Do croque ao golpe, aquele algoz esperto.
Às pernas Draghignaz também quisera
Do mísero investir; o cabo iroso
Acesos olhos volve e os dois modera.
Cessa um pouco o rumor e pessuroso
Pergunta o Mestre àquela sombra aflita,
Que do golpe olha o efeito doloroso:
“Quem foi essa alma, como tu prescita,
Que, por vires à tona, hás lá deixado?”
Responde o pecador: — “Foi Frei Gomita
De galura, nas fraudes consumado
Que do seu amo a imigos poupou dano,
E, traidor, foi por eles premiado.
“Por ouro os deixou ir, como de plano
Confessa; e em tudo o mais provou ter foro
Nas tretas, ser nos dolos soberano.
“Miguel Zanche, o Juiz de Logodoro,
Com ele ostenta, em práticas freqüentes
De crimes, em Sardenha, o seu tesouro.
“Ai! vede como esse outro range os dentes!
Iria por diante; mas receio
Na pele a fúria dos ferrões pungentes”.
Atenta o cabo de olhos no meneio
Com que a ferir se apresta Farfarello.
“Vai daí!” — lhe gritou — “pássaro feio!”
— “Se Toscanos, Lombardos tens anelo
De ver e ouvir” — o triste prosseguia —
“Traça darei, com que satisfazê-lo.
Suspendam Malebranche essa porfia;
Não temam sócios meus dura vingança,
Que eu, sentado, um só não, muitos faria
“De lá surdir, segundo a nossa usança,
Ao sinal de assovio, que de ausente
Perigo ao vir à tona dá fiança”.
Cagnazzo alça o focinho, de repente,
E, abanando a cabeça, diz — “Cuidado!
Astúcia é por lançar-se ao pez fervente”.
Ele, que em cópia ardis tinha guardado,
Tornou: — “Sutil astúcia, na verdade,
Causar aos meus tormento redobrado!”
Dos outros contra o aviso, por vaidade,
Alichino lhe disse: — “Se abalares,
Não provarei de pés agilidade,
“Hei de, voando, te agarrar nos ares.
Vamos do cimo e à riba retiremos:
Maravilha, se a tantos enganares!“
Leitor, logração nova contemplemos.
Já todos volvem de outro lado a vista:
Quem mais avesso assim primeiro vemos.
O Navarro estudara-o como invista;
E arrancando, de súbito, ao betume
Se arroja e a liberdade então conquista.
Da afronta sentem todos o azedume,
Inda mais quem motivo dera ao feito,
Gritando: — “Preso estás!” — salta do cume,
Porém do medo se avantaja o efeito
Ao das asas: um baixa ao fundo presto,
No ar sustém-se o outro, alçando o peito.
Assim mergulha o pato na água lesto,
Quando avista o falcão: perdida a presa,
Se torna o caçador cansado e mesto.
Calcabrina, da raiva na braveza,
Após o sócio voa, por ter briga,
Se a alma como deseja, vence empresa.
Vendo que ao fundo o malfeitor se abriga,
As garras volta contra o companheiro:
Furor à luta sobre o lago o instiga.
As unhas o outro, gavião ligeiro,
Lhe crava e, entrelaçando-se espantosos,
Tombam ambos no pez, de corpo inteiro.
Separa o grão fervor os dois raivosos;
Em vão, porém, subir-se pretenderam,
Que as asas prendem borbulhões viçosos.
Os outros vendo o caso, se doeram:
Envia quatro o cabo diligente;
E de croques armados acorreram.
De um lado e de outro chegam velozmente.
Tendem farpões aos sócios enviscados,
Cozidos já naquela crusta ardente,
E desta arte os deixamos atalhados.
CANTO XXIII
[ Prosseguem os dois Poetas o seu caminho, descartando-se dos diabos. Vendo-os, porém, voltar novamente, Virgílio abraça-se com Dante e deixam-se resvalar pelo declive do precipício. Encontram os hipócritas vestidos de pesadas capas de chumbo dourado. Falam com dois frades, Catalano e Loderigo, bolonheses. Um dos frades, inquirido por Vigílio, indica-lhe o modo de subir ao sétimo compartimento. ]
EM silêncio, a companha má deixada,
Seguíamos, após um do outro andando,
Como frades menores em jornada.
Meu pensamento à rixa se voltando,
A fábula de Esopo relembrava,
Em que ao rato arma a rã laço nefando.
Se aqueles casos dois eu confrontava,
Como issa e mo, iguais me pareciam,
Quando o princípio e fim seus recordava.
E, como os pensamentos se associam,
Outros logo daquele me brotaram,
Que em dobrado temor a alma envolviam.
Pensava: — esses demônios que passaram,
Por causa nossa, tal vergonha e dano,
Do fato certamente se enojaram.
Se a maldade agravar rancor insano,
Eles no encalço nos virão ferozes,
Qual cão, que a lebre aboca enfim no plano.
Aguardando os horríficos algozes,
Arrepiam-se as carnes e o cabelo.
— “Ó Mestre meu, as garras temo atrozes!”
Exclamo: — “Ache depressa o teu desvelo
Para nós contra o bando amparo e abrigo.
Após os passos nossos cuido vê-lo”.
“Se espelho eu fora, a imagem tua, amigo,
Tanto não refletira claramente,
Quanto às idéias na tua alma sigo.
“Agora iguais me estão surgindo à mente,
Concordes tanto nas feições, em tudo,
Que um parecer entre ambos há somente.
“À destra inclina a encosta, ou eu me iludo:
Por lá baixando à mais vizinha cava,
Teremos contra assaltos seus escudo”.
Não acabava, quando a turba prava
Assoma: de asas pandas se enviando
Contra nós, não mui longe a divisava.
De súbito nos braços me tomando,
Qual mãe, que ao despertar se vê cercada
De furiosas flamas, e, apertando
Ao seio o filho, foge acelerada,
E ao pudor véus esquece angustiosa,
Só por salvar aquela prenda amada:
Lá do cimo da riba alta e fragosa
Resvala o Mestre pela penha dura,
Muralha de outra cava tenebrosa.
Água não corre mais veloz da altura
Por canal a impulsar de engenho a roda,
Quando, vizinha aos cubos, se apressura,
Do que a descer o Guia meu se açoda,
Como a filho estreitando-me ao seu peito,
Não como a companheiro a quem se engoda.
Da cava, apenas atingira o leito,
Quando ao cimo os demônios se mostraram:
Mas de iras suas malogrou-se o efeito.
Por lei da Providência terminaram
Funções, que exercem na caverna quinta,
Toda vez que o recinto seu deixaram.
Gente, que de brilhante cor se pinta
Vemos, que a tardo passo em torno andava;
Chorava e em forças parecia extinta.
Capa e capuz trazia, que ocultava
Seus olhos, dessa forma de vestidos
De Colônia entre os monges mais se usava.
De ouro por fora, dentro guarnecidos
De chumbo: comparando a peso tanto,
De palha os de Fred’rico eram tecidos.
Por toda a eternidade, ó duro duro manto!
Com tais almas, à sestra, caminhamos,
Atentos escutando o triste pranto.
Tanto as oprime o peso, que as passamos
No lento caminhar; e a cada instante
De nova companhia ao lado estamos.
“Mostra-me — eu disse ao Guia, suplicante —
Algum por nome ou feitos afamado;
Busca, sem te deter, Mestre prestante!” —
Tendo vozes toscanas escutado,
Um atrás nos gritou: — “Cessai da pressa,
Com que ides a correr pelo ar cerrado!
“Cousa talvez direi, que te interessa”.
Volta-se o Mestre e diz-me: — “Agora espera;
Para o passo igualar-lhes não te apressa”.
Cessando, vejo um par que se acelera;
Seus gestos dizem que acercar-se aspiram,
Malgrado a estrada e o peso, que os onera.
Aqueles dois, já próximos, remiram
Com vesgos olhos, sem falar, meu rosto;
Depois entre eles vozes tais se ouviram:
“O que respira ainda em vida é o posto?
Se mortos ambos são, por que motivo
Da plúmbea capa evadem-se ao desgosto?”
E disseram: — “Toscano, que, inda vivo,
Vens de hipócritas ver o grêmio triste,
Dizer quem sejas, não recusa esquivo”.
— “Nasci na grã cidade, à qual assiste
Com suas belas margens o Arno ameno,
E o corpo, em que hei crescido, lá persiste.
“Quem sois que da aflição tanto veneno
Na face amargo pranto denuncia?
Qual penar tendes de esplendor tão pleno?”
“Tanto chumbo se encobre” — um me dizia —
Destas capas sob o ouro, que oscilamos,
Qual balança, que ao peso hesitaria.
“De Bolonha e Godente, nos chamamos
Um Loderigo e o outro Catalano:
Juntos ambos Florença governamos,
“Por que ficasse a paz livre de dano.
Em vez de um regedor; do que hemos sido
O Gardingo dá prova e desengano”.
“Ó irmãos” — comecei — “o mal nascido...”
Atalhei-me: jazendo um condenado
Com puas três em cruz via estendido.
Em vendo-me estorceu-se angustiado.
Altos suspiros arrancou do peito.
Catalano acercou-se apressurado.
“Este” — disse — “que geme em duro leito,
Que a um homem dessem morte, aconselhara
Aos Fariseus, do povo por proveito.
“Através do caminho é nu, repara:
De quem passa, desta arte, ele conhece
O peso, quando por calcá-lo pára.
“Igual martírio o sogro seu padece,
Assim como cada um desse concilio,
Semente pra os Judeus de horrenda messe”.
Maravilhar-se então mostrou Virgílio,
Posto em cruz o prescito contemplando
Com tanto opróbrio lá no eterno exílio,
Voltou-se a Catalano assim falando:
“Dizei, se assim vos apraz e é permitido,
Se à direita há vereda, onde, passando,
Deste recinto vamo-nos temido,
Sem que os anjos perversos obriguemos
Caminho a nos mostrar não conhecido”.
Tornou: — “Mais perto do que julgas temos
Rochedo, que, do muro se estendendo,
Dá ponte a cada val, em que gememos.
“Este não cobre, outrora se rompendo;
Mas subir podereis pela ruína,
Que do declive ao fundo se está vendo”.
Ouvindo, o Guia um pouco a fronte inclina
E diz: — “Bem más explicações nos dava
Quem tanto os pecadores amofina”.
Logo o frade: “Em Bolonha me constava
Que o demônio, entre os vícios com que stenta,
De ser pai da mentira se ufanava”.
A passo largo o Mestre já se ausenta;
Ira ressumbra o rosto carregado.
Deixa a turba, que em capas se atormenta,
As pegadas seguindo-lhe apressado.
CANTO XXIV
[ Encaminham-se os Poetas pelo rochedo e chegam ao sétimo compartimento no qual estão os ladrões, os quais, picados por serpentes horríveis, inflamam-se e, depois, ressurgem das cinzas. Entre eles Dante reconhece Vanni Fucci, o qual por desafogar o despeito de ser colhido em tal vergonha e miséria, prediz-lhe a derrota dos Brancos. ]
NAQUELA parte do ano incipiente,
Em que as comas do sol se fortalecem
No Aquário, e a noite iguala o dia ausente,
Quando as geadas matinais parecem
Da alva irmã figurar a imagem pura,
Mas tais feições em breve se esvaecem.
Campino, que a indigência já tortura,
Ergue-se, e vendo o prado embranquecido.
No coração calar sente a amargura.
Torna ao tugúrio e carpe-se abatido,
Como quem toda a esp’rança já perdera;
Mas vendo em breve o campo estar despido
Do triste manto, o alento recupera.
Revigorado então, corre ao cajado
E as ovelhas ao pascigo acelera.
De temor me senti, dessa arte, entrado
Do mestre merencóreo ante o semblante;
Mas logo ao mal foi bálsamo aplicado.
À ruína chegamos: nesse instante
Virgílio volve àquele doce gesto,
Que eu da colina ao pé vira ofegante.
Reflete um pouco, o estado manifesto
Da rocha examinando: eis-me, estendendo
Os braços, resoluto ergueu-me presto.
Como aquele que uma obra entre mãos tendo.
Logo noutra tarefa põe o intento,
Num rochedo Virgílio me sustendo,
Já de outro acima me avisava atento.
“Mais alto agora sobe” — me dizia —
“Vê se a rocha está firme! Toma tento!”
De capa ali ninguém transitaria;
Pois nós, leves e eu sempre transportado,
Subíamos a custo a penedia.
Se mais alto o declive do outro lado
Não fora do que esse outro, em que ora estamos,
— Dele não sei — ficara eu lá prostrado.
Que Malebolge inclina-se notamos
À boca enorme do profundo poço;
As encostas, são tais — expr’imentamos —
Que uma é baixa, outra excelsa em cada fosso.
Vimos, enfim, do topo à roca extrema,
Dessa ruína ao último destroço.
Lá chegado, afã tanto o peito prema,
Que avante um passo dar eu mais não pude;
Sentei-me então na inanição suprema.
“Eia! toda a fraqueza em ti se mude!
Em ócio” — disse o Mestre — “ou sobre a pluma
Prêmios ninguém conquista da virtude.
“Aquele que a existência assim consuma,
Tal vestígio de si deixa na terra,
Como o fumo no ar e na água a espuma.
“Ergue-te, pois! Torpor de ti desterra!
Recobra o esforço que os perigos vence!
Impere alma no corpo em que se encerra!
“Que vais subir muito alto a mente pense;
Desse abismo não basta haver saído.
Será teu prol, se a minha voz convence”.
Alço-me então, mostrando-me impelido
De alento, que não tinha; e ao Mestre digo:
“Avante! Forte já me sinto e ardido!”
Pela rocha asperíssima prossigo
Mais estreita, inda menos acessível
Que a outra: os passos de Virgílio sigo.
Por provar-me às fadigas insensível
Falando andava. Eis ouço de outra cava
Ressoar voz bem pouco perceptível.
O que disse não sei, posto me achava
Da ponte sobre a parte culminante;
Mais parecia iroso quem falava.
Curvei-me para ver no fosso hiante,
Mas alcançar não pude o fundo escuro.
Ao Mestre disse então. “Se apraz-te, avante
Passando, desceremos deste muro;
Daqui ouço uma voz, mas não a entendo;
Fito os olhos, mas nada me afiguro”.
“Respondo aos teus desejos, acedendo;
Que o pedido discreto assim declaro
Se cumpre, não falando, mas fazendo”.
Fomos da ponte à parte, donde é claro
Que se vai ter à ribanceira oitava:
Ficou patente a cava ao meu reparo.
De serpes tal cardume se enroscava,
Horríficas na infinda variedade,
Que ao sangue, inda ao lembrar, terror me trava.
Não tenha a Líbia de criar vaidade,
De quersos, fares, cencris no seu seio
E anfisbenas, tamanha quantidade.
Nem do mar Roxo* em plagas, nem no meio
Da Etiópia, tropel tão pavoroso
De flagelos jamais a lume veio:
Por entre o enxame atroce e temeroso
Almas corriam nuas e transidas,
Heliotrópia não sperando ou pouso.
Atrás as mãos por serpes são tolhidas,
Que, transpassando os rins, cauda e cabeça,
Lhes tinham por diante em laços unidas.
Eis uma de repente se arremessa
Ao prescito, que perto nos demora:
Morde-lhe o colo aonde a espádua cessa.
Um O traçar ou I mais custa agora
Do que ser o mesquinho incendiado:
Em cinzas cai o pecador, que chora.
Stando em terra desta arte derribado,
Juntando-se a cinza e logo reformou-se,
Como de antes, o triste condenado.
Dos sábios na escritura já narrou-se
Que a Fênix morre e logo após renasce,
Quando aos anos quinhentos acercou-se.
Viva, já nunca em cibo ela se pasce,
Em lágrimas, porém, de incenso e amono;
De nardo e mirra em ninho extremo apraz-se.
Como aquele que cai sem saber como,
Do demônio ao poder, que à terra o tira,
Ou de outra opilação sentindo o assomo;
Levantando-se, em torno a si remira,
Da angústia inda aturdido, que o mordera,
E, em seu soçobro, pávido suspira:
Assim parece o pecador, que ardera.
Contra os pecados na final vingança,
Ó Justiça de Deus, quanto és severa!
Quem fora inquire o Mestre, e dele alcança
Estas vozes: — “Há pouco, da Toscana
Chovi no abismo, onde ninguém descansa.
“Vida brutal vivi, não vida humana.
Chamei-me Vanni Fucci, híbrida besta;
Pistóia, meu covil, de mim se ufana”.
Ao Mestre eu disse: — “Referir-nos resta
O crime, que deu causa à morte sua:
Sei que em sangue banhara a mão funesta”.
O pecador, que me ouve, não se amua:
Volta-me presto a cara, em que a tristeza
Com sinais de vergonha se insinua
E diz: — “Sinto da dor mais a aspereza,
Porque em miséria tanta me vês posto,
Do que quando da morte hei sido a presa.
“Ao que exiges respondo com desgosto:
Por ter roubado alfaias e ornamento
Da igreja, aqui estou, sendo meu gosto
“Que pelo crime houvesse outro tormento.
Se deste antro saíres algum dia,
Por que não sejas do meu mal contento,
“Ouve bem o que a voz minha anuncia:
De si Pistóia os Negros expulsando,
Povo, modos, Florença então cambia.
“Vapor de Val de Magra Marte alçando,
O traz em torvas nuvens envolvido;
E, enquanto a tempestade está raivando,
“No campo de Picen será ferido
Combate; a névoa logo se esvaece;
Dos Brancos cada qual será batido.
“Sabe-o, pois: certo, a nova te entristece”.
CANTO XXV
[ Vanni Fucci depois das negras predições desafia a Deus, pelo que o centauro Caco, todo coberto de serpentes, lhe corre atrás. Dante reconhece entre os danados alguns florentinos que, em Florença, desempenharam funções importantes, aproveitando-se dos dinheiros públicos e descreve suas transformações de homens em serpentes e vice-versa. ]
ASSIM dizia o roubador e, alçando
Ambas as mãos, que figuravam figas:
“Toma, ó Deus” exclamou “o que eu te mando”.
Serpes me foram desde então amigas:
Porque logo uma ao colo se enroscava,
Como a dizer: — “Não quero que prossigas!”
Tolhendo-lhe outra os braços, se enlaçava
Diante sobre o peito, e o movimento
Com rebatido vínculo atalhava.
Ah! Pistóia! ah! Pistóia! o incendimento
Teu decreto, extinguido nome impuro,
Pois dás da extirpe tua ao vício aumento!
Tão soberbo não vi no abismo escuro,
Contra Deus outro esp’rito; nem o ousado,
Que de Tebas caiu morto do muro.
Sem mais dizer fugira o condenado.
Eis rábido centauro vi correndo
A gritar: — “onde está o celerado?”
Nem tem Marema de répteis horrendo
Bando igual ao que o dorso carregava
Té onde a humana forma está-se vendo.
Na espádua, abaixo da cerviz pousava,
As asas estendendo, atroce drago,
Que fogo a quanto encontra arrevessava.
“É Caco” — o Mestre diz — “que a imane estrago
Afeito do Aventino se aprazia,
Sob as penhas, de sangue em fazer lago.
“Dos seus irmãos não segue a companhia,
Por haver depredado, fraudulento,
Armentio, que próximo pascia.
“Tiveram fim seus crimes: golpes cento
Sobre ele desfechou de Alcide a clava:
Aos dez perdera já a vida o alento”. —
Foi-se o centauro enquanto assim falava.
Abaixo eis três espíritos chegando,
Nos quais nenhum de nós inda atentava,
“Quem sois?” — romperam súbito bradando.
A Narração então suspende o Guia;
E só deles curamos, escutando.
Nenhum dessa companha eu conhecia;
Mas então, como às vezes acontece,
Um, chamando por outro, assim dizia:
“Onde é Cianfa, que assim desaparece?”
Dedo nos lábios fiz nesse momento
A Virgílio sinal, por que atendesse.
Em crer o que eu contar se fores lento,
Não há de ser, leitor, para estranhado;
Quase o que eu vi descrê meu pensamento.
Quando eu dos três a vista era engolfado,
Sobre seis pés se via uma serpente
Contra um deles e o tem todo enlaçado.
Abraçam-lhe os do meio rijamente
O ventre; aos braços aos de cima rendem,
Ambas as faces morde-lhe furente.
Os de baixo nas coxas já se estendem,
Interpondo-se a cauda, que, subindo
Por detrás, voltas dá que os rins lhe prendem.
Hera, de árvores os ramos recingindo.
Não os enleia tanto, como a fera
Alheios membros ao seu corpo unindo.
Fundiram-se depois, de quente cera
Com feitos; travando as suas cores,
Um nem outro parece o que antes era:
Como em papel, do fogo ante os ardores
Procede escura cor; inda não sendo
Negro, vão fenecendo os seus albores.
Os dois, a maravilha percebendo,
Gritavam-lhe: — “Ai! Agnel, quanto hás mudado!
Um já não és mas dois ser não podendo!”
Numa cabeça as duas se hão tornado;
Confundidos estavam dois semblantes
Num rosto, em que se haviam misturado.
São dois os braços, que eram quatro de antes,
Foram coxas e pernas, ventre e peito
Membros, que nunca hão tido semelhantes.
Perdeu-se assim todo o primeiro aspeito;
Seres dois e nenhum nessa figura
Se via; e o montro foi-se a passo estreito.
Quando o fervor canicular se apura,
Cruza o lagarto, como o raio, a estrada,
E uma mouta deixando, outra procura.
Tal menor serpe, lívida, inflamada.
Negrejando, qual bago de pimenta,
Aos outros dois se arroja acelerada.
E na parte, por onde se alimenta
Primeiro a vida nossa, um dos dois fere
E ante ele tomba em queda violenta.
Olha o ferido, mas nem voz profere;
E sobre os pés imóvel bocejava,
Como quem sono prenda ou febre onere.
Fitava olhos na serpe, e esta o encarava;
A chaga de um eu via, do outro a boca
Fumegar; e o seu fumo se encontrava.
Emudeça Lucano, quando toca
Em Sabelo infeliz mais em Nascídio.
Escute: mor portento ora se evoca.
De Cadmo e Aretusa cale Ovídio:
Se fonte a esta, àquela fez serpente,
Não o invejo: aqui há pior excídio,
Não converteu dois seres frente a frente,
Tanto que permutasse formas duas
Sua própria matéria de repente.
Desta sorte compõem-se as partes suas:
A cauda à serpe fende-se em forquilha,
Cerra o ferido em uma as plantas nuas.
Tal prisão coxas, pernas envencilha
Que em breve nem vestígio há de juntura,
Sinal, ou numa ou noutra, de partilha.
Fendida a cauda assume essa figura
Que perde o homem; numa é tão macia
A pele, quanto noutro fez-se dura.
Entrar os braços nas axilas via;
Tanto estendia os curtos pés a fera,
Quanto o outro os seus braços encolhia.
Os pés o drago extremos retorcera,
Na parte, que se esconde, se mudando,
Que em duas no mesquinho se fendera.
Enquanto o fumo os dois ia velando
De nova cor e a serpe o pêlo empresta,
Que em todo perde o pecador nefando,
Ergue-se um, cai o outro e no chão resta,
Os ímpios olhos sem torcer, que viram
Dos gestos seus a conversão funesta.
Ao que era em pé às frontes lhe subiram
Do rosto as sobras: cada face afeita
Uma orelha, de duas, que saíram.
Quanto de mais ficara então se ajeita,
O nariz conformando-lhe na cara
E de lábios lhe ornando a boca estreita,
A beiça o que jazia dilatara;
Qual caramujo, que as antenas cerra,
À cabeça as orelhas retirara.
A língua unida e no falar não perra
Partiu-se, enquanto a do outro, forquilhada,
Uniu-se; o fumo desde então se encerra.
Essa alma, que em réptil era mudada,
Pelo vale arremete sibilando,
Falando, a outra escarra e a segue irada.
Depois, seu novo dorso lhe voltando,
Disse à terceira sombra: “Corra o Buoso,
Como eu, por esta senda rastejando”.
Assim vi no antro sétimo espantoso
Mútuas transformações: tanta estranheza
Desculpe o canto rude e descuidoso.
Posto empanar dos olhos a clareza
E entrar o assombro no ânimo eu sentisse,
Não fugiram com tanta sutileza,
Nem tão prestes que eu bem não discernisse
Puccio Sciancato, que dos três somente
Fora o que transmudado se não visse,
Deu-te o outro, Gavili, dor pungente.
CANTO XXVI
[ Chegando os Poetas ao oitavo compartimento, distinguem infinitas chamas, dentro das quais são punidos os maus conselheiros. Numa chama bipartida estão Diômedes e Ulisses. Este último, a pedido de Dante, narra a sua última navegação, na qual perdeu a vida com os seus companheiros. ]
FOLGA, ó Florença! A fama tens tão grande,
Que asas bates por terra e mar, vaidosa!
Até no inferno o nome teu se expande!
Entre os ladrões, ó cousa vergonhosa!
Principais cinco achei, que em ti nasceram:
Serás por honra tal, vangloriosa?
Se os veros sonhos por manhã se geram,
Em breve hás de sentir o que os de Prato,
Quanto mais outros, por teu dano esperam.
Presto que venha, será tarde o fato;
Se o mal tem de ferir, fira apressado:
Mais velho me há de ser mais grave e ingrato.
Partimos: do rochedo alcantilado
Os degraus, em que havíamos descido,
Sobe o Mestre e por ele eu fui levado.
Em nosso ermo caminho e desabrido
Prosseguimos por entre agras fraguras,
Pelas mãos sendo o pé favorecido.
Inda nalma exacerbam-se amarguras,
Do que hei visto lembranças avivando;
E, quanto posso, o coração nas puras
Veredas da virtude vou guiando,
Por que o bem, por bom astro ou Deus doado,
Eu próprio não converta em mal nefando.
O rústico, no outeiro reclinado,
Na estação, em que o sol o mundo aclara,
Mais lhe mostrando o seu semblante amado,
Já quando a mosca o sucessor depara,
Pririlampos não vê tão numerosos
No vale, onde vindima, ou ceifa ou ara,
Quando, no fosso oitavo, os temerosos
Fogos, que avisto, dos que, ao cimo alçado,
Fito no fundo os olhos curiosos.
Como aquele que de ursos foi vingado,
Quando voou de Elia o carro ardente,
Ao céu por frisões ígneos transportado,
Seguiu c’a vista o lume, que somente
Dos ares na extensão aparecia,
Qual nuvens se elevando velozmente;
Assim naquele abismo se agitando
As flamas via; em cada qual estava
Uma alma, em seus fulgores se ocultando.
Para ver, lá da ponte, me inclinava:
Se amparado da rocha eu não stivesse,
Tombara ao fundo dessa hiante cava.
O Mestre, ao ver que a mente se embevece,
“Em cada fogo” — diz-me — “um condenado,
Como em hábito, envolto, arde e padece”.
“Sou, te ouvindo” — tornei — “certificado
Do que era, há pouco, em mim simples suspeita.
Pretendia inquirir, maravilhado,
Que significa o fogo, que endireita
A nós, e se partindo, iguala a pira,
Para imigos irmãos outrora feita”.
— “Estão lá dentro dessa flama dira
Diômedes e Ulisses: em castigo
Sócios são, como outrora hão sido em ira.
“Lá dentro geme o pérfido inimigo,
Inventor do cavalo, que foi porta,
Por onde a Roma veio o início antigo;
“Chora-se a fraude, que Deidamia morta,
Ainda exprobra a Aquiles, ressentida;
Pelo Paládio a pena se suporta”.
“Se à labareda, ó Mestre, é permitida
A fala” — eu disse — “te suplico e rogo
Com instância, mil vezes repetida,
“Aguardar me concedas esse fogo,
Que, bipartido para nós caminha.
Vês meu anelo: ah! dá-lhe o desafogo!”
“Merece toda a complacência minha
Teu rogo: eu de bom grado o atendo e aceito.
Mas cala-te; que hás de ser contente asinha.
“Falar me deixa; sei qual teu conceito,
Talvez que desses Gregos na alma esquiva
Produza o teu dizer ingrato efeito”.
Propínqua estando a nós a flama viva,
E, asado ao Mestre, parecendo o ensejo,
Nesta linguagem disse persuasiva:
“Ó vós, que nesse fogo eu juntos vejo,
Se por serviços meus, quando vivia,
Revelei de aprazer-vos o desejo,
“Nos sonoros versos que escrevia,
Detende-vos: benévolo um nos diga
Onde viu fenecer o extremo dia”.
A parte superior da flama antiga
A tremular começa murmurando,
Como a que o vento lhe assoprando instiga.
E a um lado e a outro o cimo meneando,
Como se língua fora, que falasse,
Estas vozes profere, e diz-nos: “Quando
“De Circe a encantos me esquivei fugace,
Em que um ano passei junto a Gaeta,
Antes que assim Enéias a chamasse,
“A saudade do filho, a mui dileta
Velhice de meu pai, de alta consorte
Santo amor, em que ardia sempre inquieta,
“Não dominaram esse anelo forte
Que me impulsava a ser do mundo esperto,
Das manhas das nações, da humana sorte.
“Lancei-me às vagas do alto mar aberto;
Sobre um só lenho me seguiu companha
De poucos, mas de afouto peito e certo.
“As ondas perlustrando, hei visto a Espanha,
Marrocos, logo a ínsula dos Sardos
E as outras que o cerúleo pego banha.
“Já da velhice nos sentidos tardos,
Alfim chegamos ao famoso estreito,
Onde Alcides aos nautas pôs resguardos,
“Que devem respeitar por seu proveito.
Deixei Septa, que jaz ao esquerdo lado,
E Sevilha, que ao lado está direito.
“Perigos mil vencendo e avesso fado”
Lhes disse — “irmãos, chegastes ao Ponente!
Da existência este resto, já minguado,
“Razão não seja, que vos tolha a mente
De além do sol, tentar nobre aventura,
E o mundo ver, que jaz órfão de gente.
“Da vossa raça refleti na altura!
Viver quais brutos veda-o vossa origem!
De glória vos impele ambição pura!
“Com tanto esforço os ânimos se erigem,
Falar me ouvindo assim, que ir por diante
De entusiasmo sôfregos, exigem.
“Já, com popa ao Nascente flamejante,
Asas os remos são na empresa ousada,
E o lenho sempre à esquerda voga avante.
“Já do outro polo a noite levantada,
Via os astros brilhar: o nosso, entanto,
Na planície imergia-se salgada:
“Cinco vezes a luz do etéreo manto
A lua difundira e após minguara,
Depois que arrosto do oceano o espanto,
“Quando imensa montanha se depara:
Envolta em cerração, longe aparece;
Na altiveza outra igual nunca avistara.
“O prazer nosso em pranto se esvaece:
Da nova terra eis súbito irrompendo
Contra o lenho um tufão medonho cresce.
“Vezes três em voragens o torcendo,
A quarta a popa levantou-lhe ao alto,
E a proa, ao querer de outrem, foi descendo”.
Cerrou-se o pego sobre nós de salto.
CANTO XXVII
[ Outro danado, entra a falar com Dante. É Guido de Montefeltro, o qual pede notícias da Romanha sua terra natal. Conta, depois, que foi condenado por causa de um mau conselho que, fiado na prévia absolvição, dera ao papa Bonifácio VIII. ]
A FLAMA já se erguia e estava quieta,
Não mais falando, e já se retirava
Com permissão do meu gentil Poeta,
Quando outra, que de perto caminhava,
Pelos confusos sons, que desprendia,
Olhar nos fez seu cimo, que oscilava.
Como o sículo touro, que mugia
A vez primeira, o pranto ressoando
Do inventor, que seu prêmio recebia;
Berrava pela voz do miserando,
Na brônzea forma, em dor tanto pungente,
Que parecia vivo estar penando:
Assim se convertia o som plangente
De flama no rumor, lhe falecendo
Caminho, em que irrompesse prontamente.
Mais se exalar pelo ápice em podendo
Dar-lhe impulso por ter já conseguido
Desse mesquinho a língua, se movendo,
“Tu, a quem me dirijo” — hemos ouvido —
“Que, inda há pouco, dizias em lombardo:
Podes ir, tens assaz já respondido.
“Posto em chegar um tanto eu fosse tardo,
De ouvir-me não despraza-te a demora;
Bem vês, me não despraz: entanto eu ardo.
“Se a este abismo tenebroso agora
Tombas saudoso dessa doce terra
Latina, onde hei pecado tanto outrora,
“Se os Romanhóis têm paz, dize-me, se guerra,
Pois eu fui lá dos montes, entre Urbino
E essa, origem do Tibre, altiva serra”.
Para escutar atento a fronte inclino.
Eis, tocando-me a um lado, diz meu Guia:
“Podes ora falar, que este é Latino”.
Eu, que já prestes a resposta havia,
Tornei ao pecador incontinente:
“Alma, que o fogo assim veste e crucia,
“Tua Romanha em guerra permanente
Sempre é no coração dos seus tiranos.
Porém nenhuma agora tem patente.
“Hoje é Ravena o que era, há longos anos,
De Polenta a águia forte ali se aninha;
Com largas asas cobre à Cérvia os planos.
“A terra, que no tardo assédio tinha
Pelo sangue francês sido inundada
Sob verde leão, sofre mesquinha.
“Dos Mastins de Verruchio a subjugada
Gente os dentes cruéis inda sentia:
Morte a Montagna deram desapiedada.
“Em Lamone, em Santerno inda regia
Do alvo ninho o leão, se convertendo
De um pra outro partido cada dia.
“A cidade que o Sávio banha, sendo
Entre o plaino e a montanha, em liberdade
Ou vive ou sob o jugo vai sofrendo.
“Ora nos diz quem foste na verdade;
Condescendente sê, como hemos sido:
No mundo haja o teu nome longa idade”.
O fogo rumoreja e comovido
De um lado a outro a ponta aguda agita;
Depois emite a voz neste sentido:
“Se esta resposta minha fosse dita
A quem do mundo à luz daqui voltasse,
Queda ficara a minha língua aflita.
“Mas como é certo que jamais tornasse
Quem no inferno caiu, se não me engano,
De falar não hei medo, que embarace,
“Homem de armas, depois fui Franciscano,
Crendo pelo cordão ser emendado;
Por crê-lo certo, me esquivara ao dano,
“Se o Papa (todo o mal seja-lhe dado!)
Não me volvesse à primitiva estrada.
Como e por que te fique declarado.
“Enquanto a humana forma era habitada
Por mim, não provei ser leão por feitos,
Mas raposa, por astúcia abalizada.
“Estratégia sutil, ardis perfeitos
Tantos soube, que os âmbitos da terra
Eram à fama de meu nome estreitos.
“Da existência na quadra, em que muito erra
Quem, de surgir no porto esperançado,
Nem colhe os cabos nem as velas ferra,
“Odiei quanto houvera mais amado
E humilhei-me confesso e arrependido...
E o perdão, ai de mim! fora alcançado...
“Dos novos Fariseus Príncipe infido,
Em Latrão guerra crua declara:
Não contra Mouro, nem Judeu descrido,
“Contra cristãos as iras ateara;
Nenhum traidor contra Acre combatera
Ou do Soldão na terra traficara.
“Sacras ordens em si não considera,
Nem cargo excelso, em mim o da humildade
Cordão, que os penitentes seus macera.
“Como foi de Sirati à soledade
Constantino a Silvestre pedir cura
Da lepra: assim também à enfermidade
“De seu febril orgulho este procura
Remédio em meu conselho. Escrupuloso
Calei-me: de ébrio vi nele a loucura.
“Fala — insistiu — não sejas temeroso!
Absolto és desde já, se Palestrino
A vencer me ensinares ardiloso.
“Eu abro e fecho o céu: poder divino
As duas chaves têm, a que há negado
O meu antecessor preço condi’no.
“Já destas razões graves abalado,
Pior partido no silêncio vendo,
Lhe tornei: — Padre Santo, se o pecado,
“Em que ora vou cair, stás-me absolvendo,
Darás ao sólio teu glória e conforto
Prometendo demais, pouco fazendo.
“Francisco me acudiu, quando fui morto;
Mas clamou anjo negro apressurado:
— Não mo tomes; assim me causas torto!
“Lugar foi-lhe entre os meus assinalado:
Dês que há dado o conselho fementido,
Ficou pelos cabelos agarrado.
“Perdão só tem quem geme arrependido;
Pecado à penitência não se amanha,
Não pode aquele andar a esta unido.
“Ai! qual foi meu pavor, quando, com sanha
Empolgando-me, disse: — Creste acaso
Que me falta de lógico arte e manha?
“A Minos me arrastou, que sem mais prazo,
Da cauda em voltas oito o dorso enreda,
Raivoso morde-a e diz: — É neste caso
“Que aos maus prisão se dá na labareda.
Assim onde me vês, fiquei perdido,
Vou chorando, em tais vestes, minha queda”.
Tendo, pois, desta sorte concluído,
Aquela flama se partiu gemendo
E agitando o seu vórtice estorcido.
Eu e Virgílio, então, seguido havendo
Pelo rochedo, ao arco nós subimos,
Que o nono fosso cobre, onde sofrendo
Os que cizânia semearam vimos.
CANTO XXVIII
[ No nono compartimento os Poetas encontram os semeadores de cismas e escândalos civis e religiosos. Dante vê Maomé, que o encarrega de uma embaixada para o herege rei Dolcino; fala também com outros danados. ]
DIZER o sangue e as chagas espantosas,
Que eu vi neste lugar, quem poderia,
Em livre prosa e em vezes numerosas?
Nenhuma língua, certo, bastaria;
Fraca a palavra, inábil nossa mente
Para horror tanto compreender seria.
Quando junta estivesse toda gente,
Que lá da Apúlia na infelice terra,
Perdera o sangue seu na luta ingente
Dos romanos por mãos; e em crua guerra
A que tantos de anéis deixou vencida,
Como refere Lívio, que não erra;
E a que fora por golpes abatida,
Quando a Roberto Guiscardo resistia;
E a que tem sua ossada inda espargida
De Ceperan no campo, onde traía
Cada Apulhês; e que no Tagliacozzo
O Velho Alard sem combater vencia:
Das feridas o aspecto lastimoso
Não fora, qual no fosso nono imundo
Apresentava o bando criminoso.
Qual tonel, que aduelas perde ao fundo,
Estava um pecador, que roto eu via
Das fauces ao lugar que é menos mundo.
As entranhas pendiam-lhe; trazia
Patentes os pulmões e o saco feio,
Onde o alimento de feição varia.
A contemplá-lo estava de horror cheio,
Eis me encara e me diz, abrindo o peito:
“Vê como eu tenho lacerado o seio!
“Mafoma sou, quase pedaços feito;
Antecede-me Ali, que se lamenta:
Do mento à testa o rosto lhe é desfeito.
“Todos, que a dor aqui tanto atormenta,
De escândalos, de cismas inventores,
Pendidos têm, qual vês, pena cruenta.
“Demônio deixo atrás que os pecadores
Aos fios passa de cruel espada.
Da multidão nenhum aos seus furores
“No giro escapa da afrontosa estrada.
Cerrar-se em todo cada golpe horrendo
Antes que torne a olhar-lhe a face irada.
“Mas quem és, que, na rocha te detendo,
Estás dessa arte a dilatar a pena,
Que Minos te aplicou, teus crimes vendo?”
— “Não é morto; sentença o não condena” —
Torna o Mestre — “não vem por seu castigo,
Mas, para ter experiência plena.
“Descendo ao mais profundo vai comigo,
Que morto sou, dos círculos temidos:
Tão certo é como falo ora contigo”.
Ouvindo mais de cento dos punidos,
De espanto a me encarar se demoraram,
Dos seus próprios tormentos esquecidos.
— “A Frei Dolcino diz, pois não findaram
Teus dias e hás de ao sol tornar em breve,
Se desejos de ver-me o não tomaram,
“Que se aperceba; pois, cercando-o, a neve
Dará triunfo à gente de Novara,
A quem vencê-lo assim há de ser leve”.
Para partir um pé Mafoma alçara
Ao tempo, em que palavras tais dizia:
Baixou-o e foi-se, apenas rematara.
De guela golpeada outro acorria;
Té as celhas nariz tendo truncado,
Uma orelha somente possuía.
Como os mais, contemplando-me pasmado,
Aos mais se antecipou e, escancarando
O canal, que de sangue era inundado,
“Ó tu” — falou-me — “que não stás penando,
Que outrora hei visto em região latina,
Se eu não erro, aparências aceitando,
“Recorda-te de Pier de Medicina
Se tornar-te for dado ao belo plano,
Que de Vercello a Marcabó se inclina.
“E aos dois nobres varões dize de Fano,
Misser Angiolello e Misser Guido,
Se o futuro antevendo, eu não me engano,
“Que do baixel, que os haja conduzido,
De Católica ao pé, ao mar lançados
Serão por ordem de um tirano infido.
“Por Gregos, por piratas perpetrados,
Entre Chipre e Maiorca ao infame feito
Não viu Netuno crimes igualados.
“O traidor, que de um olho tem defeito,
Dessa terra opressor, que um companheiro
Meu tivera em não vê-la mor proveito,
“Irão a seu convite prazenteiro
Para acordo; mas votos de Foscara
Não fará por temer vento ponteiro”.
“Revela-me” tornei-lhe — “e me declara,
Desse favor, que deprecaste, em troca,
Quem de ver essa terra se pesara”.
As mãos de um pecador alçando à boca,
Escancarou-a e disse-me gritando:
— “É este; a voz, porém, se lhe sufoca.
“Exulado, ele foi quem, dissipando
Hesitações de César, lhe afirmava
Que a ocasião perdia demorando”.
Oh! quão pávido Cúrio se mostrava,
Tendo cortada a língua na garganta,
Que outrora tanta audácia aconselhava!
Dos decepados braços alevanta
Outro os cotos ao ar caliginoso:
Banha-lhe o sangue a face, que me espanta.
Gritou: — “Memora Mosca desditoso!
Fui quem disse: — O seu fim tem cousa feita!
Fatal dito, à Toscana, ai! bem danoso!”
“E à tua raça, que à morte foi sujeita!”
Atalhei. Sobre a dor, dor se acendendo
Em desesp’rança se partiu desfeita.
Aquela multidão stava atendendo,
Cousa assombrosa eis vejo, que inda hesito
Em narrar, provas outras eu não tendo.
Da consciência já me alenta o grito,
Sócia fiel, que o homem torna forte,
Sob o arnês da verdade, sempre invicto.
Eu via, e cuido ver na mesma sorte
Apropinquar-se um corpo sem cabeça,
Por entre os outros da infeliz coorte,
Caminha, alçando-a pela coma espessa,
Da mão pendente a modo de lanterna:
Gemendo, os olhos seus nos endereça.
Servia ele a si próprio de luzerna,
Eram duas em um, era um em duas:
Como ser pode, sabe o que governa.
Chegado ao pé da ponte, das mãos suas
Um ao alto a cabeça levantava
Para lhe ouvirmos as palavras cruas.
“Vê meu duro castigo!” — assim falava —
“Tu, que os mortos visitas, sendo em vida:
Outro já viste igual ao que me agrava?
“Eu sou — faz minha história conhecida,
Voltando à luz — Bertran de Born, que há dado
Ao jovem Rei consulta, em mal tecida.
“Pai e filho inimigos hei tornado:
As iras de Absalão mais não movera.
Contra Davi Aquitofel malvado.
“Laços tais como eu, pérfido, rompera,
Meu cérebro assim levo desunido
Desse princípio, que no corpo impera:
Por lei sou, pois, de talião punido”.
CANTO XXIX
[ Chegando ao décimo compartimento, os Poetas ouvem os lamentações dos falsários, que aí são punidos com úlceras fétidas e enfermidades nauseantes. Em primeiro lugar estão os alquimistas, entre os quais Griffolino e Capocchio. ]
MEUS olhos tanto inebriado haviam
A turba enorme e o seu cruel tormento,
Que alívio em pranto procurar queriam.
“Por que assim” — diz Virgílio — “estás atento?
Por que a vista dos tristes mutilados
Prende-te ainda o duro sofrimento?
“Tal não fizeste em antros já passados.
Estão, se os resenhar é tenção tua,
Por milhas vinte e duas derramados.
“Já sob os nossos pés evolve a lua;
É-nos escasso o tempo concedido:
O que ainda hás de ver detença exclua”.
“Talvez se houveras” — torno — “conseguido
Ver o motivo, por que eu tanto olhava,
Mais demora tivesses permitido”.
Já se partia; e eu logo caminhava,
Enquanto assim falava-lhe em resposta,
Acrescentando: “Lá, naquela cava,
“Onde a vista cuidosa estava posta,
Da stirpe minha um spírito carpia
Por culpa, a que mor pena está disposta”.
“Não te confranjas mais” — responde o Guia —
“Nos males, que padece, cogitando.
De aí cuida; estar nesse antro merecia.
“Ao pé da ponte o vi, que, te indicando,
O dedo alçava em cominante gesto:
Geri del Bello estavam-no chamando.
“Eras absorto no semblante mesto
Daquele que senhor foi de Altaforte:
Quando atentaste, se ausentara presto”.
“Ó Mestre” — eu disse — “a violenta morte
Que ainda não punia justa vingança
De quem naquela afronta era consorte,
“Deu causa a usar, ao ver-me, essa esquivança
Talvez e ao seu silêncio: assim pensando
Maior piedade do seu mal me alcança”.
Ao rochedo chegamos praticando,
Donde outro vai divisa-se: o seu fundo
Todo se vira, a luz não lhe faltando.
Subidos do final claustro profundo
De Malebolge à ponte, onde os conversos
Já distinguia do recinto imundo.
Lamentos e ais feriram-me diversos;
De mágua tanta o peito assetearam,
Que os ouvidos tapei aos sons adversos.
Tão penetrante dor denunciaram,
Como se da Marena e da Sardenha
Enfermos no verão se incorporaram.
De outros à turba, que remédio venha
Nos hospitais buscar de Valdichiana.
Odor surdia, igual ao que já tenha
Corrupto corpo, e se gangrena o dana.
Baixando à sestra até a riva extrema
Mais claramente da caverna insana
Então vimos o fundo, onde a Suprema
Infalível Justiça, a raça ímpia
Dos falsários em pena infinda prema.
“De Egina quando o povo adoecia,
E o ar maligno aos animais a morte
Trazendo, os próprios vermes extinguia,
Deserta sendo a terra de tal sorte
Que às formigas (poetas o afirmavam)
Deveu a antiga gente o alento forte:
Cenas tais mais tristeza não causavam
Do que almas ver, que essa prisão sombria
Em rumas várias lânguidas juncavam.
Qual sobre a espalda de outro se estendia,
Qual sobre o ventre seu, qual se arrastando
Na dolorosa estrada se estorcia.
Silentes, passo a passo caminhando,
Vemos, ouvimos míseros prostrados,
Em vão para se erguerem se esforçando.
Sentados dois, um no outro recostados,
Quais torteiras que juntas se aquecessem,
Vi do alto aos pés de pústulas manchados
Os criados, que os amos seus apressem,
Ou que estejam velando de mau grado
Almofaça não vi que assim movessem,
Como cada um se agita acelerado,
Com implacáveis unhas se mordendo,
De raivoso prurido atormentado.
Iam da pele as crostas abatendo,
Como a faca do sargo arranca a escama
Ou de peixe, na casca mais horrendo.
“Ó tu” contra um dos dois Virgílio exclama,
Que os dedos teus convertes em tenazes
Por desmalhar do corpo a extrema trama,
“Diz-me se entre estas almas contumazes
Existe algum Latino; eternamente
Sejam-te as unhas de servir capazes!”
“Latinos somos” — torna diligente
Um dos dois padecentes lacrimoso,
“Mas tu quem és? Em declarar consente”.
— “Eu sou que” — diz Virgílio ao desditoso
“De círc’lo em círc’lo este homem vivo guia
Por lhe mostrar o abismo pavoroso”.
Já cessa o mútuo arrimo, que os unia:
A mim volveu-se cada qual tremendo;
Turba imitou-os, que em redor ouvia.
Acercou-se-me o Guia assim dizendo:
“Quanto quiseres tu agora dize”.
Eu logo comecei lhe obedecendo:
“Nunca a memória vossa finalize!
Na primeira mansão da humana raça!
Mas por sóis numerosos se abalize!
“Quem sois? E donde? De o dizer a graça
Fazei: a vossa pena, imunda é certo,
De responder-nos pejo vos não faça.
“De Arezzo fui” disse um “de Siena Alberto
Morte me deu nas chamas, truculento,
Por feito a que não fora o inferno aberto.
“Dissera, em gracejar só pondo o intento.
“Alçar-me aos ares posso velozmente”.
Essa arte, por ter curto o entendimento,
“Houve ele de saber desejo ardente.
Como o não fiz um Dédalo, à fogueira
Mandou-me quem seu pai foi certamente.
“Mas das cavas caí na derradeira
Por sentença de Minos rigorosa:
Foi meu crime a alquimia traiçoeira”.
E ao Vate eu disse: “Nunca tão vaidosa
Gente, pôde alguém ver como a de Siena?
Nem a de França há sido tão sestrosa!”
O segundo leproso então me acena
Dizendo: “Salvo Stricca, homem poupado,
Que todo o excesso em desprender condena!
“Salvo Nicoló, aquele que inventado
Do cravo tinha a rica especiaria,
O seu uso deixando enraizado!
“Salvo Caccia de Ascian e a companhia,
Com quem vinhas e bosques esbanjava
E o Abbagliato as chanças esgrimia!
“Para que saibas quem desta arte agrava
Contra os de Siena o teu severo asserto,
No meu triste semblante os olhos crava.
“De que ora vês Capocchio já estás certo,
Que alquimista, os metais falsificara,
Sabes como eu, se em recordar acerto,
Natura, hábil bugio, arremedara”.
CANTO XXX
[ No décimo compartimento são punidos outras espécies de falsários. Os falsificadores de moedas, tornados hidrópicos, são constantemente atormentados por furiosa sede; entre eles está mestre Adão de Brescia, o qual narra que, à instigação dos condes Guidi, falsificou o florim de Florença. Os que falaram falsamente são perseguidos por febre ardentíssima. O canto termina com uma altercação entre mestre Adão e o grego Sinon. Virgílio repreende Dante pois este pára, escutando as injúrias que os dois trocam entre si. ]
QUANDO Juno, de Semele ciosa,
Contra o sangue tebano se inflamava,
Como o provou por vezes impiedosa,
Tanta insânia Atamante perturbava,
Que a esposa ao ver, ao colo seu trazendo
Os filhos dois, que a ele encaminhava,
Gritou: “Redes tendamos! Já stou vendo
Leoa e leõzinhos da embosacada!”
Disse e, raivoso, os braços estendendo
De um, Learco, travava e de pancada
Rodou-o e o percutiu em penedia.
Ao mar lançou-se a mãe com outro abraçada
Quando a fortuna a cinzas reduzia
A pujança de Tróia, em tudo altiva,
E com seu reino o morto rei jazia,
Hécuba triste, mísera, cativa,
Depois de morta Polixena vira,
Do Polidoro seu em plaga esquiva,
Súbito quando o corpo descobrira
Uivou qual cão, de angústia possuída.
Tanto a pungente dor nalma a ferira!
Mas em Tebas ou Tróia destruída
Homens ou feras nunca revelaram
Raiva, em tantos extremos desmedida,
Como almas duas lívidas, que entraram
Nuas correndo, os dentes amostrando,
Quais cerdos, que à pocilga se esquivaram.
Uma alcançou Capocchio e, lhe cravando
No colo as presas, rábida, arrastava
Sobre o ventre na rocha o miserando.
Mas o de Arezzo, que tremendo estava
“É Gianni Schicchi” — disse — esse raivoso:
De outros a pena o seu furor agrava!”
“Possas livrar-te do outro esp’rito iroso!”
Falei — “Se não te causa assim fadiga,
Diz quem seja, antes de ir-se o furioso”.
“Aquele é” — respondeu — “uma alma antiga;
É Mirra infame, que paixão impia
Instigou ser do pai a sua amiga.
“Para o seu crime consumar fingia
De outra pessoa as formas e o semblante.
Igual ardil usara Schicchi um dia:
“Para em prêmio alcançar égua farfante:
Contrafez Buoso morto e ao testamento
Falso a norma legal deu, que é prestante”.
Aos dois raivosos estivera atento
Até que de ante os olhos se apartaram;
De outros volvi-me ao cru padecimento.
Num do alaúde as formas se notaram
Se as pernas lhe tivessem cerceado
Na parte, em que do tronco se separam.
Da grave hidropisia molestado,
Que tanto o humor vicia e tanto ofende,
Que o rosto estreita e faz o ventre inchado,
A boca ter cerrada em vão pretende,
Qual hético de sede ressequido.
A quem um lábio se alça e o outro pende.
“Ó vós, que ao negro abismo haveis descido
(Não sei por que razão) de pena isentos,
Olhai” — disse — “prestando atento ouvido,
“De mestre Adam miséria e sofrimentos
Tive abastança; agora, ai! desejando
De água uma gota, passo mil tormentos,
“Dos ribeiros, que ao Arno, murmurando
Do Casentino lá na verde encosta
Se vão, por moles álveos inclinando,
“Na mente a imagem sempre tenho posta.
Não em vão: mais me seca e me fustiga
Que o mal, de que esta face é descomposta.
“Quer Justiça, que austera me castiga,
Que o teatro, onde hei crimes cometido,
Mais me acendendo anelos, me persiga.
“Lá demora Romena, onde hei fingido
Em falso cunho a imagem do Batista;
Assim meu corpo o fogo há consumido.
“Se a sombra achasse aqui, se aqui já exista,
De Guido ou de Alexandre ou seu germano!
Fonte-Branda esquecera ante essa vista.
“Mas um já veio, se induzir-me a engano
Os raivosos, que giram, não quiseram.
Que importa? Para andar em vão me afano.
“Se os meus pés transportar-me inda puderam,
De um sec’lo ao cabo, espaço de uma linha,
Já postos a caminho se moveram,
“A fim de o ver na multidão mesquinha
Do val, que milhas onze em torno amplia,
Com largura, que de uma se avizinha.
“Star lhes devo em tão triste companhia:
Florins cunhei, aos três obedecendo,
Nos quais quilates três de liga havia”.
“Quem são” — lhe disse — os dois que ora estou vendo?
Quais no inverno mãos úmidas fumegam,
À destra tua próximos jazendo”.
“Já stavam quando vim: eles se entregam,
Dês que desci, a quietação completa;
E creio, assim a eternidade empregam.
“Uma acusou José, falsária abjeta,
Outro é Sinon, de Tróia o Grego tredo:
Lançam por febre essa fumaça infecta”.
Anojado um do par, que estava quedo,
Por ver em vozes tais afronta e ofensa,
À pança o punho lhe vibrou sem medo:
Soou, qual de zabumba a pele tensa.
O braço Mestre Adam lhe envia à face
E assim lhe dá condi’na recompensa.
“Inda que” — disse — os membros meus enlace
Moléstia, que me tolhe o movimento,
Presteza a destra tem, com que rechace”.
“Foste” — o outro tornava — “mais que lento
Quando forçado ao fogo caminhavas.
Só presto eras no ofício fraudulento”.
“É certo; mas verdade não falavas”
O hidrópico diz — “quando exigiram
Em Tróia essa verdade, que ocultavas”.
“Se os lábios meus perjúrio proferiram,
Tu falsaste moeda: eu fiz um crime,
Aos teus nunca em demônio iguais se viram”.
“Do cavalo a façanha inda te oprime”
— Responde o que a barriga tinha inchada —
Sobre o teu nome infâmia o mundo imprime”.
“Arda em sede tua língua já gretada!”
Grita o Grego — “Hajas de água saniosa
O ventre impando, a vista embaraçada!”
“Escancaras a boca venenosa”
O moedeiro diz — “por mal somente;
Se sede eu tenho e a pança volumosa
“Ardes tu e a cabeça tens fervente.
Por lamberes o espelho de Narciso
A um aceno correras de repente”.
Atento estava aos dois mais do preciso,
Eis Virgílio me fala: — “Oh! toma tento!
Quase que eu contra ti me encolerizo!”
Iroso assim falar neste momento
O Mestre ouvindo, voltei-me corrido:
Ainda sinto rubor em pensamento.
Como quem sonha danos ter sofrido,
Que em sonho espera que sonhando esteja
E anela que o que é já não tenha sido,
A mente, sem dizer, falar deseja.
Desculpas aspirando à falta sua;
Stá desculpada e cuida que o não seja.
“Menos rubor lavara a culpa tua”
Disse o Mestre — “se houvera mor graveza:
Fique-te a mente da tristeza nua.
“E quando queira o acaso que à torpeza
De iguais debates se ofereça ensejo.
De que eu steja ao teu lado faz certeza,
Que é ter querendo ouvi-los, vil desejo”.
CANTO XXXI
[ Dando as costas ao oitavo círculo, caminham os Poetas para o centro, onde se abre o poço pelo qual se desce ao nono. Em torno do poço estão os gigantes rebeldes, cujas figuras horrendas Dante descreve. Um deles, Anteu, a pedido de Virgílio, toma nos braços os dois poetas e suavemente os depõe sobre a orla do último reduto internal. ]
A LÍNGUA, que me havia vulnerado
E a vergonha nas faces me acendera,
O bálsamo aplicava ao mal causado:
Assim de Aquiles e seu pai fizera,
Dizem, outrora a lança portentosa:
Sarava o corpo, que cruel rompera.
Damos costas à estância desditosa,
Sem proferir palavra atravessando
Sobre a borda, que em torno jaz fragosa.
Noite não sendo e dia não reinando,
Pouco distante eu divisar podia,
Eis som de trompa escuto, retumbando
Tão alto, que o trovão transcenderia,
Donde irrompera contra a parte andava
E sôfrego a um só ponto olhos prendia.
A de Orlando tão forte não soava
Na derrota fatal, que a santa empresa
De Carlos Magno o desbarato dava.
Já assim por diante: eis a grandeza
De muitas e altas torres me aparece.
“Qual é” — digo — “essa vasta fortaleza?”
“Pois de tão longe e em trevas te apetece
Julgar” — Virgílio diz — “um erro agora
Imaginando estejas acontece.
“Verás ali chegado, sem demora,
Quanto a distância a vista nos engana:
O passo acelerar convém por ora”.
Da mão travou-me e em voz suave e lhana
O Mestre prosseguiu: “Antes que avante
Passes, dessa ilusão te desengana.
“O que torre imaginas é gigante.
Da cinta aos pés imergem-se no poço,
E alçam bustos em torno ao espaço hiante”.
Quando o sol gasta o nevoeiro grosso,
Pouco a pouco se mostra e é discernido
Quanto oculta o vapor ao olhar nosso:
Vendo assim por esse ar escurecido,
Da borda mais e mais me apropinquando,
Fugia o erro, o horror tinha crescido.
Como torres em roda se elevando,
Montereggion guarnecem de coroa:
Assim do poço a margem circundando,
Torreiam com metade da pessoa
Os horríveis gigantes, que ameaça
Do céu ainda Jove, quando troa.
Distingo a cara de um (e me transpassa
O medo), logo os braços, peitos e parte
Do ventre, que da borda a altura passa.
Bem fez a natureza, quando essa arte
De tais monstros criar há descurado,
De iguais agentes desarmando Marte.
Se ainda a selva e mar têm povoado
Do elefante e baleia, sutilmente
Quem pensa justa e sábia a tem julgado.
Mal seria aos humanos permanente,
Se perspicaz engenho encaminhasse
Maligno instinto em robustez ingente.
Larga e comprida, pareceu-me a face,
Qual de S. Pedro, em Roma, a brônzea pinha:
A proporção nas outras partes dá-se.
O corpo, que da borda acima vinha,
Tanto ao ar elevava a grã figura,
Que três Frisões, por lhe atingir a linha
Da cerviz, não fariam tanta altura,
Porquanto eu esmava em trinta grande palmos
Do colo ao pescoço a válida estatura.
Rafael mai amècch zabi almos
A pavorosa boca assim bradava;
Não podia entoar mais doces salmos.
Disse-lhe o Mestre: “Ó alma bruta e brava!
Tange a trompa, se queres lenitivo
À paixão, que te acende ardente lava.
“A roda busca do pescoço altivo
O loro, a que se prende alma confusa!
Vê que te cruza o vasto peito esquivo”.
Depois a mim: “De quanto fez se acusa,
É Nemrod; por tomar estulta empresa
O mundo uma linguagem só não usa.
“Deixêmo-lo: falar-lhe é vã despesa.
Como idioma de outros não compreende,
A quem o escuta o seu move estranheza”.
Vamos então caminho, que se estende
À sestra. Outro, de besta quase a tiro,
Está mais fero, o ar mais alto fende.
Que mão cativa o monstro, que admiro
Dizer não sei: o seu direito braço
Ao dorso preso vi, e ao peito diro
O outro, de grilhão no estreito laço,
Que com círculos cinco lhe cercava
Do enorme corpo o descoberto espaço.
“Esse réprobo” — diz Virgílio — “ousava
Medir forças com Jove soberano:
Eis o fruto do orgulho, que o danava!
“Era Efialto: executou seu plano,
Quando aos Deuses gigantes aterraram.
Jamais os braços mover pode o insano”.
“Os meus olhos, ó Mestre, assaz folgaram,
De Briaréu se vissem desmarcado
As formas” vozes minhas lhe tornaram.
“Anteu verás”, — me diz — muito afamado:
Stá solto, fala e nos demora perto,
Há de ao fundo levar-nos de bom grado.
“Remoto esse outro fica, e tem por certo
Que em grilhões e estatura àquele iguala:
Mais fero em vulto, em mal é mais esperto”.
Jamais um terremoto a torre abala
Em convulsões tão rápido, tão forte,
Como Efialto a mover-se. Eu já sem fala,
Assombrado, cuidei ter perto a morte;
E de pavor sem dúvida expirara,
Se ele preso não fosse, e de tal sorte.
Presto ao lugar seguimos, onde pára
Anteu: fora a cabeça, em cinco braças
À borda sobreleva, o que separa.
“Tu, que no val feliz, aonde as graças
E as palmas de Cipião colheu da glória,
Quando Aníbal vexavam só desgraças,
“Mil leões apresaste por memória;
Que, aos irmãos se ajudaras na alta guerra,
Se crê triunfo registrasse a história
“Dos fortes filhos da fecunda Terra!
Ao fundo transportar-nos sê servido,
Onde ao Cocito o frio as águas cerra:
“Te hemos a Tifo e a Tício preferido.
Dar pode este varão o que mais se ama:
Curvando-te compraz ao seu pedido.
“No mundo pode restaurar-te a fama,
Pois vive e ainda longa vida espera,
Salvo se a Graça antes do tempo o chama”.
Falara o Mestre. Anteu não considera:
Toma-o logo nas mãos, que lesto of’rece
E a que sentira Alcide a força fera.
Quando entre os dedos seus Virgílio vê-se,
Diz-me: “Faze-te prestes, que eu te abrace!”
S Ao Mestre o meu querer pronto obedece.
Quem Carisenda, em seu pendor olhasse,
Cuidara, ao passar nuvem, que iminente
Ruína ao lado oposto ameaçasse:
Tal Anteu parecia de repente
Do corpo ao menear; quando o inclinava,
Estrada eu preferia diferente.
Mas de leve no fundo nos pousava,
De Judas e de Lúcifer assento.
A postura deixando, que o dobrava,
Qual mastro empertigou-se num momento.
CANTO XXXII
[ Os dois Poetas se encontram no círculo, em cujo pavimento de duríssimo gelo estão presos os traidores. O círculo é dividido em quatro partes; na Caina, de Caim, que matou o irmão, estão os traidores do próprio sangue; na Antenora, de Antenor, troiano que ajudou os Gregos a conquistar Tróia, os traidores da pátria e do próprio partido; na Ptoloméia, de Ptolomeu, que traiu Pompeu, os traidores dos amigos; na Judeca, de Judas, traidor de Jesus, os traidores dos benfeitores e dos seus senhores. Dante fala com vários danados, enquanto atravessam o gelo procedendo para o centro. ]
SE usasse rimas ásperas, rouquenhas,
Próprias do poço lôbrego e tristonho,
Que do inferno sustém as outras penhas,
Melhor idéia do lugar medonho
Dera; mas tal vantagem me falece.
O meu conceito, pois, tímido exponho.
É árdua empresa, em que o ânimo esmorece
O centro descrever do mundo inteiro:
Para empenho infantil ser não parece.
Das Musas se ajudar poder fagueiro,
Como a Anfião em Tebas o mostraram,
Fiel serei dizendo e verdadeiro.
Ó malfadada turba, a quem tocaram
Deste abismo os castigos, bruto gado
Sendo, fados melhores te aguardaram.
Descidos nós ao poço negregado
Das plantas muito abaixo do gigante,
O alto muro mirava-lhe espantado,
Quando ouvi: “Tem cuidado, ó caminhante!
Não calques de irmãos teus desventurados
As frontes”. Eu, voltando-me, adiante
E sob os pés, de um lago vi gelados
Os planos tanto, que os dizer podia,
Não de água, de cristal, porém, formados.
Do Danúbio a corrente não seria
Tanto em Áustria no inverno enrijecida,
Nem do Tanais, na zona sempre fria.
Do lago sobre a face empedernida
Caísse ou Tambernich ou Pietrana:
Não fora ao peso enorme combalida.
Qual rã, que no paul coaxando, ufana
Um pouco emerge, enquanto a camponesa
Sonhando está que a respigar se afana:
Tais gemiam as sombra na frieza
Té a cintura lívidas, batendo,
Como a cegonha, os queixos com presteza.
Para o seio a cabeça lhes pendendo,
Do frio a boca indícios claros dava,
Nos olhos a tristeza está-se vendo.
Quando atentei no quanto em roda estava,
Duas vi aos meus pés, em tal abraço,
Que, travado, o cabelo se enleava.
“Quem sois que os peitos nesse estreito laço
Apertais?” — perguntei. Então, voltando
Os colos para trás, um curto espaço
Me encararam; porém dos olhos quando
Lhes brotavam as lágrimas, a neve
Cerrou-os entre os cílios as coalhando.
Nunca dois lenhos tanto unidos teve
Cavilha: eles, de irados, se investiram,
Quais capros, que a marrar o furor leve.
Terceiro, a quem, geladas lhe caíram
As orelhas, com rosto baixo fala:
“Por que teus olhos sôfregos nos miram?
“O par desejas conhecer, que cala?
Próprio lhes fora e ao genitor Alberto
O vale, onde o Bisênzio faz escala.
“De um só ventre nasceram; tu, por certo,
Não acharás mais di’nos em Caína,
De ter de gelo o vulto seu coberto,
“Nem esse, a quem de Artus destra assassina
De um bote o peito e a sombra transpassara;
Nem Focácia e o que a fronte agora inclina,
“A vista me tolhendo, e se chamara
Mascheroni Sassol, bem conhecido:
Se és Toscano, esse nome te bastara.
“Fique, por vozes escusar, sabido
Que Pazzi eu sou e que, em Carlin chegando,
Serei por menos criminoso havido”.
Mil outros via roxos tiritando:
Desde então de arrepios sou tomado
Ante gélidos vaus, este lembrando,
E o centro demandando, em que firmado
Do universo gravita todo o peso,
Trêmulo havia a treva eterna entrado,
Eis, sem querer, da sorte ou por desprezo,
Entre tantas cabeças caminhando,
A face de um calquei no gelo preso.
“Por que me pisas?” reclamou chorando,
“De Monte Aperti ao feito por vingança
Inda me estás desta arte molestando?
“Mestre, espera-me aqui” — disse — “Me lança
Em dúvida este mau: solvê-la quero.
Eu depois correrei, se houver tardança”.
Parou; e ao pecador falei, que fero,
Duras blasfêmias proferia agora:
“Quem és tu, que me increpas tão severo?”
“E tu mesmo quem és, que na Antenora”
Tornou — “dessa arte as faces me espezinhas?
Um vivo, certo, menos cru me fora”.
“Sou vivo e posso entre as memórias minhas
Do nome teu apregoar a fama”
Respondi — “se te aprazem louvaminhas”.
“Só quer o olvido quem te fala” — exclama
“Vai-te! De sobra já me estás molesto.
Aqui não cabe da lisonja a trama”.
Travei da nuca ao pecador infesto
E disse: — “Ou perderás todo o cabelo,
Ou quem tu foste me declara presto!”
“Mil vezes podes arrancar-me o pêlo,
De ver-me a face não terás o gosto
E de saber qual foi meu nome e apelo”.
As mãos lhe havia no cabelo posto;
Da guedelha uma parte arrepelara:
Ganindo ele abaixava sempre o rosto,
Quando outro brada: “Ó, Boca, isso não pára?
Pois os queixos bater não te é bastante?
Já lates! Que demônio em ti dispara?”
“Não mais, ímpio traidor” — no mesmo instante
Respondo — “exijo; o que de ti stou vendo
Contarei por te ser mais infamante”.
“Vai! Se saíres deste abismo horrendo,
Quanto queiras refere, do apressado,
Que de língua assim foi, não te esquecendo.
“Ouro chora, que a França lhe há doado.
Eu vi — podes dizer — Boso Duera
De outros muitos no gelo acompanhado.
“Se perguntarem quem aqui mais era,
Olha e terás ao lado Beccaria,
A quem Florença degolar fizera.
“Gian del Soldanier, há pouco eu via
Além com Ganellon e Tribaldello.
Que abriu Faenza, enquanto se dormia”.
Deixâmo-lo; mas súbito de gelo
Postos em furna vi dois condenados:
Cabeça de uma a de outra era cabelo.
Como a pão se agarrando os esfaimados,
Por cima um no outro os dentes aferrava
Onde a cerviz e o crânio estão ligados.
Qual Tideu, que a dentadas lacerava
De Menalipo a fronte enraivecido,
Ele o cérebro e os ossos mastigava.
“Tu, que, de ódio tão sevo possuído,
Te encarniças feroce no inimigo,
“Dize — exclamo — por que foi produzido.
“Se eu souber que a justiça está contigo
E houver da culpa e réu conhecimento,
No mundo a compensar-te ora me obrigo,
Se não perder a língua o movimento”.
CANTO XXXIII
[ O conde Ugolino della Gherardesca conta a Dante a sua trágica morte na torre dos Gualandi. Na Ptoloméia o Poeta encontra o frade Alberico de Manfredi, o qual lhe explica que a alma dos traidores cai no Inferno logo depois de consumada a traição e que um diabo toma conta do corpo até chegar o tempo do seu fim no mundo. ]
DO fero cevo os lábios desprendendo,
Na coma o pecador os enxugava
Desse crânio, a que estava atrás roendo.
“Queres de infanda mágoa” — começava —
Renove a dor, que, só pensando a mente,
Antes que falte, o coração me agrava.
“Mas se a voz minha deve ser semente,
Que ao traidor, que eu devoro a infâmia brote.
Falar, chorar, verás conjuntamente.
“Não sei quem sejas, não sei como note
Tua presença aqui, por Florentino
Te ouvindo a língua, é força que te adote.
“Saber deves que fui Conde Ugolino,
Que Arcebispo Rogério aquele há sido:
Direi qual nos juntou cruel destino.
“Contar não hei mister como iludido
Por minha confiança, em cárcer posto.
Fui morto por maldade deste infido.
“Não conheces, porém, que atroz desgosto
O meu fim precedera: atenção presta,
Quanto ofendido fui verás exposto.
“Por vezes da prisão por breve fresta,
Torre da fome — após o meu tormento,
Que há de a outros ainda ser funesta
“Brilhava a lua em pleno crescimento,
Quando o véu do futuro horrível sonho
Rasgou, do exício meu pressentimento.
“Este, como senhor, então suponho
Ao monte, que ver Lucca a Pisa obstava
Lobo e pequenos seus correr medonho.
“Magros cães, destros, feros açulava
Dos Galandis, Sismondis e Lanfrancos
A companha, que à frente cavalgava.
“Em breve o pai e os filhos, lassos, mancos,
Já dos famintos galgos mal feridos,
Dar pareciam últimos arrancos.
“Desperto ao primo alvor; dos meus queridos
Filhos que eram comigo, choro soa:
Pedem pão, stando ainda adormecidos.
“És cruel, se a tua alma não magoa
O prenúncio da dor, que me aguardava:
Se não choras, que pena há que te doa?
“Despertaram; e a hora já chegava
Em que alimento escasso nos traziam:
O sonho a cada qual nos aterrava.
“Da horrível torre à porta então se ouviam
Martelos cravejar: eu mudo e quedo
Nos filhos encarei, que esmoreciam.
“Não chorava; era o peito qual penedo.
Choravam eles, e Anselmuccio disse:
Assim nos olhas, pai? Do que hás tu medo?”
“Nem lágrimas, nem voz dei, que se ouvisse,
No dia e noite, que seguiu-se lenta,
Até que ao mundo novo sol surgisse.
“Quando a luz inda escassa se apresenta
No doloroso carcer, meu semblante
Nos quatro rostos seus se representa.
“Mordi-me as mãos de angústia delirante.
Eles, cuidando ser a fome o efeito,
De súbito e com gesto suplicante,
“Disseram: “Menos mal nos será feito
Nutrindo-te de nós, pai; nos vestiste
Desta carne: ora sirva em teu proveito”.
“Contendo-me, evitei lance mais triste.
Em silêncio dois dias se passaram. ..
Ah! por que, terra esquiva, não te abriste?
“Do quarto dia os lumes clarearam:
Gaddo caiu-me aos pés desfalecido:
“Pai me acode!” os seus lábios murmuraram.
“Morreu; e, qual me vês, eu vi, perdido
O sizo, os três, ao quinto e ao sexto dia,
Um por um se extinguir exinanido.
“Apalpando os busquei — cego os não via
Dois dias, os seus nomes repetindo:
Da fome mais que a dor, pôde a agonia”.
Calou-se e os torvos olhos retorquindo,
Como de antes cravou no crânio os dentes
E os ossos, qual mastim, foi destruindo.
Ah! Pisa, opróbrio aos povos residentes
Na bela terra, onde o si ressona!
Pois te não vêm punir vizinhas gentes.
Presto a Capraia mova-se e a Gorgona
Do Arno à foz, entupindo-lhe a saída
Teu povo assim pereça, que se entona.
E se foi a Ugolino atribuída
De entregar teus castelos à maldade,
Por que à prole em tal cruz tirar a vida?
Tebas moderna! Pela tenra idade
Ugoccione e Briga tá insontes eram
E os irmãos, em que usaste a feridade.
Seguindo além, os olhos se of’receram
Outros, que em gelo têm duro tormento:
Destes os rostos para trás penderam.
Lhes causa o pranto ao pranto impedimento;
E a dor, que desafogo em vão procura,
Lhes cresce, recalcada, o sofrimento.
As lágrimas coalhando em neve dura
Formam nos olhos seus vítrea viseira,
E todo o espaço interior se obtura.
Conquanto quase a faculdade inteira
De sentir no meu rosto se embotasse
Dês que era nessa perenal geleira,
Cuidei que um sopro me tocara a face.
“Do que este sopro” — inquiro — “se origina?
Se aqui não há vapor, donde ele nasce?”
E o Mestre: “Irás onde a resposta di’na
Os teus olhos darão; e ali chegando
O que virem do sopro a causa ensina”.
Dos tristes padecentes um gritando,
Nos disse: “Almas cruéis, almas danadas
(Pois que no extremo abismo estais penando)
“Tirai-me aos olhos gélidas camadas,
Por desafogo dar-me ao peito aflito,
Antes de eu ter as lágrimas coalhadas”.
“Se o lenitivo queres, que tens dito,
Teu nome diz: se não me desobrigo,
Desça eu do gelo ao pelágio maldito”.
Respondeu logo: “Eu sou frei Alberigo,
Pelos pomos famoso do mau horto:
Aqui recebo tâmara por figo”.
“Oh!” — disse — “porventura tu stás morto?”
“Não sei como é meu corpo lá no mundo”,
Tornou “e se vivendo tem conforto.
“Este condão possui sem ter segundo
Ptoloméia: aqui star alma é freqüente
Antes que a mande Atropos ao profundo.
“E por que mais de grado e prontamente
Estas vidradas lágrimas romovas,
Sabe que apenas de traição a mente
“Inquina-se, como eu, por funções novas
Passa o corpo a demônio, que o governa
Té completar da vida últimas provas:
“Rui a alma, entanto, à lôbrega cisterna,
Talvez na terra folgue o corpo ledo,
Cuja sombra após mim trêmula inverna.
“Se és recém-vindo, sabe que esse tredo
É Branca d’Ória: há prolongados anos
Jaz enleado no infernal enredo”.
“Este é” tornei “mais um dos teus enganos:
Desfruta alegre Branca d’Ória a vida
E come e bebe e dorme e veste panos”.
“Dos Malebranche em cava denegrida,
Não era“ disse ainda “em pez viscoso
Alma de Miguel Zanche submergida,
“E um demônio esse infame criminoso
Deixou no corpo; o mesmo um seu parente,
Que de traição foi sócio proveitoso.
“Das mãos auxílio presta ora clemente,
Me abrindo os olhos!” Tal não fiz; que errara
Com tal vilão me havendo cortesmente.
Ah! Genoveses! raça impura e avara,
Que nos costumes tem mancha tamanha!
Quem da face da terra vos lançara!
Junto ao pior esp’rito da Romanha
De entre vós um traidor vi tanto imundo,
Que a alma sua em Cocito já se banha,
Enquanto o corpo vida finge ao mundo.
CANTO XXXIV
[ Na Judeca estão os traidores dos seus senhores e benfeitores. No meio está Lúcifer, que com três bocas dilacera três entre os mais horrendos pecadores: de um lado Judas, do outro Bruto e Cássio, que mataram a Júlio César. Virgílio, ao qual Dante se agarra, desce pelas costas peludas de Lúcifer até o centro da terra. Dai seguindo o murmúrio de um regato, saem e avistam as estrelas no outro hemisfério. ]
VEXILIA regis prodeunt inferni
Contra nós; pra diante os olhos tende
Disse o Mestre, se a vista já discerne”.
Como quando no ar névoa se estende,
Ou ao nosso hemisfério a noite desce,
Um moinho distante a atenção prende.
Um edifício igual verme parece.
Tanto era o vento, que eu busquei guarida
Atrás do Mestre, que outra não se of’rece.
À parte era chegado, onde imergida
Cada alma em gelo está (tremo escrevendo),
Bem como aresta no cristal contida.
Erguidas umas stão, outras jazendo
Qual sobre a fronte ou sobre os pés firmada
Qual com seus pés o rosto arco fazendo.
Quando distância tal foi superada,
Que aprouve ao Mestre me tornar patente
A criatura bela ao ser formada,
Se afastando de mim, disse: “Detém-te!
Eis Satanás! Eis o lugar horrendo
Em que deves te armar de esforço ingente!
Quanto assombrei-me aquele aspecto vendo
Não inquiras leitor: não te expressara
Com verbo humano o que encarei tremendo.
Não morto, porém vivo não ficara.
Qual me achava te pinte a fantasia,
Se morte ou vida em mim se não depara!
Do aflito reino o imperador eu via:
Do gelo acima o seio levantava.
A um gigante igualar eu poderia,
Se um gigante a um seu braço eu comparava!
Do todo vede a proporção qual fora,
Quando tão vasta a parte se ostentava!
Quem foi tão belo, quanto é feio agora,
Contra o seu criador a fronte alçando
Vera causa é do mal, que o mundo chora.
Qual meu espanto há sido em contemplando
Três faces na estranhíssima figura!
Rubra cor na da frente está mostrando;
Das outras cada qual, da pádua escura
Surdindo, às mais ajunta-se e se ajeita
Sobre o crânio da infanda criatura.
Entre amarela e branca era a direita;
A cor a esquerda tem que enluta a gente
Do Nilo às margens a viver afeita.
Via asas duas sob cada frente,
Tão vastas, quanto em ave tal convinham:
Velas iguais não abre nau potente.
Plumas, como em morcego, elas não tinham;
De contínuo agitadas produziam
Os três gélidos ventos, que mantinham
Os frios, que o Cocito enrijeciam.
Chorava por seis olhos, por três mentos
Pranto e sangüínea espuma se espargiam.
Qual moinho, com dentes truculentos
Cada boca um prexito lacerava:
Padecem três a um tempo assim tormentos.
Mas ao da frente a pena se agravava,
Porque das garras o furor constante
Do dorso a pele ao pecador rasgava.
“O que esperneia em dor mais cruciante”
O Mestre disse: “É Juda Iscariote:
Prende a cabeça a boca devorante.
“Dos dois, que estão pendendo, coube em dote
A negra face Bruto: sem gemido
Se estorce da dentuça a cada bote.
“O outro é Cássio, de membros bem fornido.
Mas a partir a noite insta, assomando:
Aqui já tudo havemos conhecido”.
Do Mestre o colo enlaço por seu mando.
Ele em lugar e tempo apropriado,
De Lúcifer as asas se alargando,
Ao peito hirsuto havia-se agarrado;
Depois de velo em velo descendia
Entre os ilhais e o lago congelado.
Chegado àquela parte, em que se unia
Da coxa o extremo dos quadris à altura,
Com grande ofego e mor abalo o Guia
Pôr a fronte onde os pés firmou procura,
Como quem sobe às crinas agarrado:
Assim tornar cuidei do inferno à agrura.
“Segura-te! Por tais degraus alado”
Lasso Virgílio já disse anelante,
“Deste império do mal serás tirado”.
De uma rocha então sai por fresta hiante;
Sobre a borda me assenta cauteloso;
Depois a mim se acerca vigilante.
Olhos alcei julgando curioso
Ver Lúcifer, qual de antes o deixara;
De pernas para o ar vi-o em seu pouso!
De que enleio a minha alma se tomara,
Deixo ao vulgo pensar pouco instruído,
Que o ponto não compreende, em que eu passara.
“Eia! Vamos!” o Mestre diz querido,
“Longa jornada e mau caminho temos;
E a meia terça o sol já tem corrido”.
De paço em salas nós de andar não temos;
Mas de antro natural em solo duro
Os passos nossos dirigir devemos.
“Antes que eu deixe em todo o abismo escuro
Erro, em que estou, meu Mestre, desvanece”
Disse erguendo-me um pouco mais seguro.
“Onde o gelo? Por que nos aparece
Assim Lúcifer posto? E já tão presto,
Cessando a noite, o sol nos esclarece?”
“Tu cuidas ser, do que ouço é manifesto
Lá no centro, onde ao pêlo me prendera
Do que atravessa o mundo, verme infesto.
“Ali stiveste, enquanto descendera
Ao voltar-me do ponto além tens sido,
Que o peso atrai na terreal esfera.
“Foste àquele hemisfério transferido,
Que se opõe ao que a terra está lançado,
Em cujo excelso cume há padecido;
“Quem nasceu, quem viveu sem ter pecado
Sobre uma esfera estreita os pés agora,
Da Judeca ao reverso, tens firmado.
“É noite lá; nós temos luz nesta hora;
E o que nos velos seus nos deu a escada
Na postura se firma, em que antes fora.
“Caiu aqui da altura sublimada,
E a terra, que se alçava entumescente,
Do mar fez véu e veio de enfiada
“Para o nosso hemisfério de repente.
Também fugiu de medo, a que se avista;
Vácuo deixando aqui, fez monte ingente”.
Lá no profundo há um lugar, que dista
Tanto de Belzebú, quanto se estende
Seu sepulcro: ali não penetra a vista.
Revela-o som de arroio, que descende
Por brecha do rochedo, que escavara,
Em torno serpeando, e pouco pende.
Para voltar do mundo à face clara
Nessa vereda escusa penetramos:
De nós nenhum de repousar cuidara.
Virgílio e eu, logo após, nos elevamos,
Té que do ledo céu as cousas belas
Por circular aberta divisamos:
Saindo a ver tornamos as estrelas.
PURGATÓRIO
CANTO I
[ Saindo do Inferno, Dante respira novamente o ar puro e vê fulgentíssimas estrelas. Encontra-se na ilha do Purgatório. O guardião da ilha, Catão Uticense, pergunta aos dois Poetas qual é o motivo da sua jornada. Ele os instrui, depois, relativamente ao que devem fazer, antes de iniciar a subida do monte. ]
DO engenho meu a barca as velas solta
Para correr agora em mar jucundo,
E ao despiedoso pego a popa volta.
Aquele reino cantarei segundo,
Onde pela alma a dita é merecida
De ir ao céu livre do pecado imundo.
Ressurja ora a poesia amortecida,
Ó Santas Musas, a quem sou votado;
Unir ao canto meu seja servida
Calíope o som alto e sublimado,
Que às Pegas esperar não permitira
Lhes fosse o atrevimento perdoado.
Suave cor de oriental safira,
Que se esparzia no sereno aspeito
Do ar até onde o céu primeiro gira,
Recreia a vista; e eu ledo me deleito
Em surdindo da estância tenebrosa,
Que tanto os olhos contristara e o peito.
A bela estrela, a amor auspiciosa
Sorrir alegre faz todo o Oriente,
Vela os Peixes, que a seguem, luminosa.
Ao outro pólo endereçando a mente,
Volto-me à destra, e os astros quatro vejo,
Que vira só a primitiva gente.
Folgar o céu parece ao seu lampejo.
Do Norte, ó região, viúva hás sido,
De os contemplar te não foi dado ensejo.
Depois de os remirar, já dirigido
Olhos havia para o pólo oposto,
Donde a Carroça havia-se partido,
Eis noto um velho, perto de mim posto,
Que reverência tanta merecia,
Que mais do pai não deve o filho ao rosto.
Nas longas barbas nívea cor saía,
Sendo na coma sua semelhante,
Que em dupla trança ao peito lhe caía.
A luz dos santos astros rutilante
De fulgor tanto lhe aclarava o gesto,
Que o vi, como se o sol lhe fosse adiante.
— “Quem sois que em contra o rio escuro e mesto
Do eterno cárcere heis fugido os laços?” —
Movendo as nobres plumas, disse presto.
“Quem vos guiou alumiando os passos
Para a profunda noite haver deixado,
Que enluta sempre os infernais espaços?
“As leis do abismo acaso se hão quebrado?
O céu dá, seus decretos revogando,
Que dos maus seja o meu domínio entrado?” —
Travou de mim Virgílio, me exortando
Por voz, aceno e mãos: como queria
Os joelhos curvei, olhos baixando.
— “De motu meu não vim” — lhe respondia —
De Dama aos rogos, que do céu descera
Socorro este homem, sirvo-lhe de guia.
Pois que é desejo teu que a nossa vera
Condição definida mais te seja,
Prestar me cumpro explicação sincera.
“Aura da vida este home’inda bafeja,
Mas tanto, de imprudente, se arriscara,
Que é maravilha vivo ainda esteja.
“Disse como a salvá-lo me apressara:
Por onde os passos dirigir pudesse
Essa vereda só se deparara.
“Mostrei-lhe a gente, que por má padece;
Mostrar-lhe intento os que ora estão purgando
Pecados no lugar, que te obedece.
“Longo seria como o vou guiando
Dizer-te: é força do alto a que me impele,
Para te ver e ouvir o encaminhando,
Digna-te, pois, bení’no ser com ele:
A liberdade anela, que é tão cara:
Sabe-o bem quem por ela a vida expele.
“Por ela a morte não te há sido amara
Em Útica, onde a veste foi deixada,
Que em Juízo há de ser de luz tão clara.
“Por nós eterna lei não é violada:
Ele inda vive; Minos não me empece;
No círc’lo estou, onde acha-se encerrada
“Tua Márcia, que em casto olhar parece
Rogar-te ainda que por tua a tenhas:
Lembrando-a em favor nosso te enternece.
“Ir deixa aos reinos teus, não nos retenhas;
Hei de a Márcia dizê-lo agradecido,
Se lá de ti falar-se não desdenhas.” —
— “Márcia, a meus olhos tão jucunda há sido
Que — tornou-lhe Catão — eu de bom grado
No mundo quanto quis lhe hei concedido.
“Estando além do rio detestado,
Mover-me ora não pode: este preceito
Me foi, deixando o Limbo, decretado.
“Se por dama celeste hás sido eleito,
Como disseste, é vã lisonja agora;
O que requeres em seu nome aceito.
“Vai, pois: cingindo este homem sem demora
De liso junco, lava-lhe o semblante;
Toda a impureza seja posta fora.
“Cumpre que, quando ele estiver perante
O anjo, que do céu vier primeiro,
Névoa nenhuma os olhos lhe quebrante.
“Lá onde baixa o ponto derradeiro
Do mar batido, esta ilha tem viçoso
Juncal que alastra todo o seu nateiro.
“Não pode vegetal rijo ou frondoso
Ter vida ali; porque não dobraria
Ao embate das ondas caprichoso.
“Aqui tornar inútil vos seria.
Vereis ao sol, que surge, o melhor passo
Para subir do monte à penedia.” —
Sumiu-se. Ergui-me, então, sem mais espaço,
E em silêncio; olhos fitos no semblante
De Virgílio, amparei-me com seu braço.
— “Comigo, ó filho” — diz-me — “segue avante.
Atrás voltemos; pois daqui se inclina
O plano para o mar, que jaz distante.” —
Fugia ante a alva a sombra matutina;
Já nos ficava aos olhos descoberta,
Posto remota, a oscilação marina.
Pela planície andávamos deserta,
Como quem trilha a estrada, que perdera,
E teme não achar vereda certa.
Chegando à parte, onde não pudera
Do rocio triunfar o sol nascente,
Porque à sombra o frescor pouco modera,
Sobre a relva meu Mestre brandamente
As mãos ambas abriu: o movimento
Lhe noto e, o compreendo, diligente,
As lacrimosas faces lhe apresento.
Virgílio as cores restaurou-me ao gesto,
Que desbotara o inferno nevoento.
Vimos à erma praia a passo lesto:
Nunca sobre águas suas navegara
Homem que o mundo torne a ver molesto.
Cingido fui, como Catão mandara.
Portento! A humilde planta renascida,
Qual antes vi no solo, onde a arrancara,
Sem diferença, de súbito crescida.
CANTO II
[ Estão os Poetas ainda na praia, incertos em relação ao caminho, quando chega uma barca, guiada por um Anjo, da qual saem almas destinadas ao Purgatório. Uma delas, o músico Casella, amigo de Dante, a convite do Poeta, começa a cantar uma sua canção. Os dois Poetas e as almas ficam a ouvir o canto harmonioso. Sobrevém. porém, o severo Catão, que as repreende, e as almas fogem para o monte. ]
RESPLENDECIA o sol já no horizonte
Que tem meridiano, onde iminente
O zênite fica de Solima ao monte.
Na parte oposta a noite diligente
Do Ganges co’as Balanças se elevava,
Que lhe caem da mão, quando é excedente.
Já nesse tempo a idade transformava
A branca e rósea cor da bela Aurora
Noutra, que a de áureos pomos simulava.
Do mar ao longo inda éramos nessa hora,
Como quem, na jornada embevecido,
Se apressa em mente, os pés, porém, demora:
Eis, qual sobre manhã, enrubescido,
Das névoas através, Marte chameja
No ponente das ondas refletido,
Uma luz (praza a Deus de novo a veja!)
Tão veloz pelo mar vi deslizando,
Que não há vôo de ave, que igual seja.
Maior mostrou-se e mais fulgente, quando,
Depois de ter-me ao Guia meu voltado,
De novo olhei o seu brilho contemplando.
Nívea forma também, a cada lado,
Lhe divisei; abaixo aparecia
De igual cor outro vulto assinalado.
Té asas discernir permanecia
O sábio Mestre meu silencioso.
Mas então, como o nauta conhecia,
Bradou: “Curva os joelhos respeitoso,
Junta as mãos: eis de Deus um mensageiro!
De ora avante hás de ver outros ditoso.
“Vê que, aos humanos meios sobranceiro,
Para vir de tão longe velas, remos
Possui das asas no volver ligeiro.
“Como ele as alça para o céu já vemos,
Eternas plumas suas agitando;
Não mudam como dos mortais sabemos.” —
Em tanto, mais e mais se apropinquando,
Mais clara sobressai a ave divina:
Olhos abaixo à luz me deslumbrando.
O anjo logo à riba a nave inclina,
Tão rápida, tão leve, que parece
Voar somente na amplidão marina.
Na popa erguido o nauta resplendece:
Feliz quanto é lhe está na fronte escrito;
Das almas turba ao mando lhe obedece.
In exitu Israel de Egypto
A uma voz cantavam juntamente
E o mais, que foi no santo salmo dito.
Sinal da Cruz lhes fez devotamente:
Todos então à riba se lançaram
E tornou, como veio, incontinente.
Em volta remirando, os que ficaram
Pareciam de espanto apoderados,
Como quem a estranheza se acercaram.
O sol frechava os lumes seus dourados,
Lá do meio do céu tendo expelido
O Capricórnio a tiros reiterados,
Quando as almas, que haviam descendido,
Perguntam-nos: — “Sabeis, para indicar-nos,
Por onde o monte pode ser subido?”
Tornou Virgílio: — “Vos apraz julgar-nos
Do lugar sabedores; mas viandantes,
Como sois vós, deveis considerar-nos.
Chegáramos aqui, de vós, pouco antes,
Por estrada tão árdua e temerosa,
Que esta subida a par, jogo é de infantes.” —
Notando aquela turba, curiosa,
Que eu, pelo respirar, era homem vivo,
Enfiou ante a vista portentosa.
E como, a quem da paz ramo expressivo
Presenta, o povo acerca-se cuidoso
Em tropel de notícias por motivo:
O bando assim das almas venturoso
Em meu rosto atentava alvoroçado,
Quase esquecido de ir a ser formoso.
Uma, tendo-se às mais adiantado
A me abraçar correu com tanto afeito,
Que fui de impulso igual arrebatado.
Sombras vãs, verdadeiras só no aspeito!
Três vezes quis nos braços estreitá-la,
Só as três vezes estreitei ao peito.
Ante o espanto, que o gesto me assinala,
Sorriu-se; e, como já se retirasse,
Avançando, eu tentei acompanhá-la.
Suavemente disse que eu parasse,
Pedi-lhe, com certeza a conhecendo,
Que um pouco a praticar se demorasse:
— “Como te amei” — me respondeu — “vivendo
No mortal corpo, assim eu te amo agora.
Por que vais? Dize: ao teu desejo atendo.” —
“Caro Casella” — disse-lhe — “hei de embora
Tornar, ao fim desta jornada, à vida.
Por que de vir hás delongado a hora?” —
“Se a passagem negou-me requerida
Anjo, que as almas, quando apraz-lhe, guia,
Ofensa não me fez imerecida;
“Pois a justo querer obedecia.
Na barca em paz, três meses há somente,
A todos dá a entrada apetecida.
“Eu, que na plaga então era presente,
Onde no mar o Tibre as águas deita
Por ele aceito fui benignamente,
“A essa foz seus vôos endireita;
Pois sempre ali a grei stá reunida,
Às penas do Aqueronte não sujeita.” —
— “Se não é por lei nova proibida
Memória e usança do amoroso canto,
Que as mágoas todas me adoçou da vida,
“Praza-te amigo, confortar um tanto
Minha alma, que molesta, que amofina
Star envolta no corpóreo manto.” —
— “Amor que em minha mente raciocina” —
Entoou ele então com tal doçura,
Que o som donoso inda alma me domina.
Ao Mestre, a mim, a todos a brandura
Do saudoso cantar tanto elevava,
Que de ai a mente nossa então não cura.
Na toada, absorvida, se engolfava,
Eis de repente o velho venerando:
— “Que fazeis, descuidosos?” — nos bradava.
“Pois estais na indolência assim ficando?
Ide ao monte, a despir essa impureza,
Que a vista vos está de Deus vedando!” —
Quais pombos, que dos agros na largueza,
Em desejado pascigo embebidos,
Como olvidada a natural braveza,
Súbito arrancaram, de temor pungidos,
Se algum mal iminente lhes parece,
De cuidados maiores possuídos:
Tal a recente grei o canto esquece,
E, como homem, que vai sem ter roteiro,
Corre à costa, que aos olhos se oferece:
Não foi nosso partir menos ligeiro.
CANTO III
[ Os dois Poetas se aprestam a subir o monte. Enquanto estão procurando o lugar onde a subida seja mais fácil, vêem um grupo de almas que lhes vêm ao encontro. Perguntam a elas onde seja a subida. Uma das almas se dá a conhecer a Dante. É Manfredo, rei de Nápoles e da Sicília. Ele narra como morreu, pedindo a Deus, na hora extrema. Estão juntas com ele, as almas dos que foram inimigos da Santa Igreja. ]
ENQUANTO aquela fuga repentina
Pela planície as sombras impelia
Ao monte, que a razão a amar ensina,
Ao sócio meu fiel eu me cingia:
Como sem ele houvera prosseguido?
Quem para alçar-me esforço me daria?
De remorsos parece possuído.
Ó consciência pura e sublimada,
Leve falta pesar te dá subido!
Quando atalhava a pressa, que é vedada
A quem dos atos no decoro atente,
Eu, que sentira a mente angustiada,
Tornando ao meu intento afoutamente
Os olhos à eminência levantava,
Que para o céu mais alto eleva a frente.
Nas espaldas o sol nos dardejava
Rubra luz, que o meu corpo interrompia,
Pois aos seus raios óbice formava.
Escuro ante mim só aparecia
O solo: eu, de abandono receoso,
Voltei-me ao lado onde era o sábio Guia.
Virgílio então me encara. — “Suspeitoso
Te mostras?” — diz — “Cuidavas, porventura,
Que eu não mais te acompanhe cuidadoso?
“Surge Vésper lá onde a sepultura
Guarda o corpo em que sombra já fizera
Tomando-o a Brindes, Nápole o assegura.
“Se ante mim não a vês, não te devera
Dar pasmo como lá no firmamento
Se a luz a luz não tolhe e não movera.
“Para calma sentir, frio ou tormento
Dispôs-nos corpo a suma Potestade.
Como o fez? Não nos deu conhecimento.
“Fátuo é quem julga à humana faculdade
Franco o infindo caminho e sempiterno,
Por onde segue o Ente Uno em Trindade.
“Homem, vos baste o quia: se ao superno
Saber alevantar-vos fosse dado,
Da Virgem ao seio não baixara o Eterno.
“Já viste porfiar sem resultado
Os que, cevar podendo seu desejo,
Em perpétua aflição o têm tornado.
“De Aristóteles falo neste ensejo,
De Platão, de outros mais.” — Baixando a fronte,
Calou; mostrava torvação e pejo.
Chegamos nós em tanto ao pé do monte
Onde era a rocha de tal modo erguida,
Que de subir capaz ninguém se conte.
A vereda mais erma e desabrida,
Que de Léria a Túrbia se encaminha,
Dá, confrontada, cômoda subida.
E o Mestre, assim falando, os pés detinha:
“Quem sabe onde a este monte o passo ascende?
Como aqui sem ter asas se caminha?”
Enquanto, baixo o rosto, o Mestre entende
Na jornada, em sua mente interrogando,
E pela altura a vista se me estende,
Divisei turba a nós endireitando
Da mão destra; o seu passo era tão lento,
Que não me parecia estar andando.
— “Aos que vêm” — disse ao Mestre — “mira atento;
Por eles pode ser conselho dado,
Se o não te of’rece o próprio pensamento...” —
Olhou-me, e com semblante asserenado
— “À turba vagarosa” — tornou — “vamos,
E a esperança te esforce, ó filho amado!” —
Passos mil para a grei nos caminhamos
E de tiro de pedra inda à distância,
Por mão destra arrojada, nos chamamos
Quando aqueles espíritos estância
Junto aos penhascos vi fazer, cerrados,
Qual transviado da incerteza em ânsia.
“Vós, eleitos ao bem, no bem finados” —
Disse Virgílio — “pela paz ditosa,
Em que sois todos, creio, esperançados,
“Dizei-me onde a montanha alta e fragosa
Subir permite, um pouco se inclinando:
Do tempo a perda ao sábio é desgostosa.” —
Como as ovelhas o redil deixando
A uma, duas, três e a cerviz tendo
Baixa as outras vão tímidas ficando;
Todas como a primeira, se movendo,
Conchegam-se-lhe ao dorso, se ela pára,
O porque, simples, quietas não sabendo:
Assim a demandar-nos se apressara
A venturosa grei, que no meneio
Traz a moléstia e o pudor na cara.
Tomada foi, porém, de tanto enleio,
Por minha sombra em vendo a luz cortada
A destra, em direção da rocha ao seio,
Que a vanguarda parou, como torvada:
Pelos mais sem detença foi seguida,
Mas sem lhes star a causa revelada.
— “A explicação previno apetecida:
Que um vivo corpo vedes confesso
E a luz do sol por este interrompida.
“Não haja em vós de maravilha excesso;
Do céu pela virtude socorrido,
Da montanha atingir quer o cabeço.” —
Disse Virgílio. — E foi-lhe respondido:
— “Voltai-vos; caminhai de nós diante.” —
E o lugar indicavam referido.
— “Sem que um momento deixes ir avante,
Quem quer que sejas, olha-me e declara”, —
Disse um deles, — “se hás visto o meu semblante.” —
Volvi-me, olhos fitando em quem falara.
Formoso e louro, tinha heróico aspeito;
Um golpe o seu sobrolho separara.
Tornei-lhe — “não” — tomado de respeito.
— “Olha!” — falou a sombra me indicando
Larga ferida no alto do seu peito.
“Vês Manfredo — sorriu-se me falando —
Que neto foi da Imperatriz Constança.
A minha bela filha diz, voltando,
(Mãe daqueles por quem tanta honra alcança
Aragão com Sicília) o que hás sabido,
Qual a verdade seja lhe afiança.
“Depois que foi o corpo meu ferido
De golpes dois mortais, a Deus piedoso
Alma entreguei, chorando arrependido.
“Fui de horrendos pecados criminoso,
Mas a Bondade Infinda acolhe e abraça
Quem perdão lhe suplica pesaroso.
“Se o Bispo que enviou Clemente à caça
Do meu cadáver, respeitado houvesse
Esse preceito da Divina Graça,
“Do corpo meu os ossos me parece,
Que em frente à ponte, ao pé de Benevento,
Em guarda o grave acervo inda tivesse.
“Agora os banha a chuva e açouta o vento,
Do reino meu distantes, junto ao Verde,
Onde os lançou sem luz, sem saimento.
“Mas anátema tanto alma não perde
Que, quando verde a esp’rança lhe floresce,
Do eterno amor do Criador deserde.
“Por certo, em contumácia o que fenece
Contra a Igreja, ainda quando se arrependa
Na hora extrema sua, aqui padece
“Tempo, que trinta vezes compreenda
Da impenitência o espaço, se ao decreto
Preces não trazem benfazeja emenda.
“Vês, pois, que podes me tornar quieto:
Revelando à piedade de Constança
Que interdito me hás visto ainda exceto
Pelas preces de lá muito se alcança.” —
CANTO IV
[ Seguindo os conselhos recebidos, os Poetas, através de um caminho apertado e difícil, sobem ao primeiro salto. Virgílio explica a Dante que, encontrando-se em hemisfério antípoda àquela terra, o Sol gira em direção contrária. Vendo muitas almas recolhidas à sombra de um rochedo, e aproximando-se a elas, Dante reconhece o seu amigo Belacqua. Ai estão os espíritos preguiçosos dos que esperaram para arrepender-se o termo da vida. ]
QUANDO ou pelo prazer ou por desgosto
Das faculdades uma é possuída,
Concentrando-se, o espírito indisposto
Se mostra à ação, de outra qualquer nascida;
Verdade, que refuta a crença errada
— Quem em nós uma alma está noutra acendida.
E, pois, se vendo, ouvindo, alma engolfada,
Lia-se à cousa, que a atenção cativa,
Sem sentir vai-lhe o tempo à desfilada.
Pois faculdade só no ouvir ativa
Difere dessa, em que alma se domina:
Uma presa, outra a vínculos se esquiva.
Experiência ao claro isto me ensina.
Aquela sombra atônito escutando,
Já com cinqüenta graus o sol se empina,
Sem que eu me apercebido houvesse, quando
Ao ponto fomos, onde a turba, unida,
— “Haveis o que anelais!” — disse, bradando.
Estando a vinha já madurecida,
Pelo aldeão de espinhos com braçada
Da sebe a estreita aberta é defendida.
Mais larga é que a vereda alcantilada
Por onde fui subindo após meu Guia,
Quando a grei nos deixou abençoada.
A Noli e a San-Leo por árdua via
Com pés se vai, Bismântua assim se alcança;
Ter asas de ave aqui mister seria;
Ou asas de um desejo, que não cansa,
Para o vate seguir que, desvelado,
Me servia de luz, me dava esp’rança.
Por carreiro entre penhas escavado,
Sempre de agudas pontas empecido,
Pelas mãos cada passo era ajudado.
Chegados da alta escarpa ao topo erguido
Da eminência no dorso descoberto,
— “Por onde ir”— disse então —“Mestre querido?”
— “Eia!” — tornou — “não dês um passo incerto!
Vai subindo após mim pela montanha;
Guia acharemos no caminho esperto.” —
Não mede a vista elevação tamanha:
Linha que o centro corte de um quadrante,
Por certo a ingrimidez não lhe acompanha.
Sem forças já, falei-lhe titubante:
— “Volve a face, pai meu: olha piedoso
Que só me deixas, indo por diante” —
— “Para ali, filho” — diz — “te alça animoso!” —
E o seu braço indicava uma planura,
Que torneia o declive temeroso.
Dessas vozes esforça-me a doçura
Tanto, que a rastos lhe seguia o passo
Até meus pés tocarem nessa altura.
Sentamo-nos a par, então, de espaço
Ao nascente voltados, qual viageiro
A estrada olhando, que calcara lasso;
Abaixo os olhos dirigi primeiro,
Ao sol voltei depois; notei pasmado
Da esquerda o lume vir desse luzeiro.
Disse Virgílio ao ver quanto enleado
Stava, o carro da luz considerando
Que era entre nós e o Aquilão entrado:
— “Se um e outro hemisfério alumiando,
Castor e Pólux junto a si tivera
O vasto espelho, que ora está brilhando,
“Da Ursa ainda mais propínqua à esfera,
A roda do Zodíaco observaras,
Se a costumada estrela não perdera.
“Meditando, a verdade logo acharas,
Se colocados de Sião o monte,
E este outro na terra imaginaras,
“Ambos guardando idêntico horizonte
E hemisférios diversos, onde passa
Estrada, em que tão mal correu Fetonte,
“E se a razão em ti não for escassa,
Verás que, enquanto a um vai por um lado,
Ao outro pelo oposto o sol perpassa.” —
— “Tanto ao claro jamais, ó Mestre amado,
Como ora, o meu esp’rito compreendera,
Quando estava por dúvida nublado.
“Que o círc’lo médio da mais alta esfera,
Que sempre Equador chama-se em certa arte
Entre o inverno e o sol se considera,
“Deve (se pude a mente penetrar-te)
Para o norte volver-se, e, no entretanto,
Viam-no Hebreus de Áustro pela parte.
“Agora, se te apraz, dize-me quanto
Hemos de andar; que os olhos, da eminência
Não atingindo o fim, se enchem de espanto.” —
— “Da montanha” — responde — “é a excelência
Fadiga no começo causar grave;
Quem mais sobe acha menos resistência.
“Ao tempo, em que te parecer suave
Tanto, que a subas ágil e ligeiro,
Como descendo da água o curso a nave,
“No termo te acharás deste carreiro:
Após afã desfrutarás repouso:
Quanto digo hás de ver que é verdadeiro” —
Mal acabando o Mestre carinhoso,
Perto soa uma voz: — “Talvez te seja,
Antes de lá chegar, preciso um pouso.” —
Volveu-se cada qual para que veja
Quem falara; alta penha deparamos;
Então só vemos que à mão sestra esteja.
Multidão, cercando-nos, achamos
Que à sombra demorava quietamente;
Por desídia detidos os julgamos.
Mostra-se um mais que os outros negligente:
Sentado abraça as pernas, tendo o rosto
Recostado aos joelhos, qual dormente.
Disse então: — “Vê senhor, quanto disposto
É à inércia o que ali stá parecendo:
Como irmão da preguiça fica posto.” —
Ele um pouco voltou-se olhos movendo
Para o meu lado, sem mudar postura,
— “Pois vai tu, que és valente!” — me dizendo.
Reconheci quem era. Inda me dura
Da agra ascensão em parte o grande ofêgo;
Mas endereço os passos à figura.
A fronte mal ergueu, quando me achego.
— “Como conduz o sol carro à esquerda
Tens reparado?” — disse com sossego.
Por meneio tão lento e voz tão lerda
Fui algum tanto a riso provocado.
— “Belacqua” — disse eu — “mas a tua perda
Não choro. Por que estás aqui sentado?
Esperas guia? Acaso, como outrora,
Da preguiça te sentes cativado?” —
Tornou-me: — “Irmão, subir que importa agora?
De Deus o anjo, que defende a entrada,
Me deixaria dos martírios fora.
“Tanto a porta me tem de ser vedada,
Quanto no mundo me durara a vida:
Pesei-me só a morte ao ver chegada.
“Mas antes ser me pode permitida
Pela oração de quem da Graça goza;
Que vai outra, do céu desatendida?” —
Mas o Vate seguia na penosa
Jornada. — “Vem!” — dizia — “Resplandece
O sol no meio-dia; e tenebrosa
Sobre Marrocos ora a Noite desce.” —
CANTO V
[ Prosseguindo os dois Poetas a sua viagem, encontram uma multidão de almas que se aproximam deles, depois de ter percebido que Dante é vivo. São espíritos de pessoas que saíram da vida por morte violenta, mas no fim se arrependeram e perdoaram a seus inimigos. ]
OS passos do meu Guia acompanhando,
Dessas almas um pouco era distante,
Quando uma, atrás de nós, o dedo alçando,
— “Vede! A luz” — exclamou — “não é brilhante
À sestra do que vai mais demorado;
Pelo meneio a um vivo é semelhante.”
Olhos volvi daquela voz ao brado,
E as vi notar, de maravilha cheias,
Como eu, andando, a sombra tinha ao lado.
— “Por que tanto, ó meu filho, assim te enleias?”
Disse o Mestre. — “Por que deténs o passo?
Acaso o murmurar daqui receias?
“Segue-me: a vozes vãs ouvido escasso!
Qual torre, inabalável sê, dos ventos
À fúria opondo válido embaraço;
“Quem firmeza não tem nos pensamentos,
Do fim se aparta, a que alma se endereça
E, assim, malogra, instável, seus intentos.
— “Sigo-te!” — ao Mestre meu tornei depressa.
Cumpria assim falar; meu voto incende
O rubor, que ao perdão a falta apressa.
Entanto por atalho a costa ascende
Adiante de nós turba cantando
Devota Miserere, e ao cimo tende.
Ao ver que estava o corpo meu vedando
Dos luminosos raios a passagem
O canto suspendeu, rouco “oh!” soltando
E dois dos seus em forma de mensagem
Correndo contra nós assim falaram:
“Quem sois, que assim fazeis esta viagem?”
Disse Virgílio: — “Aos que vos enviaram
Tornai que ao corpo do homem que estais vendo
Vitais alentos inda não deixaram.
“Se os passos, como cuido, estão detendo,
Por ver-lhe a sombra, a causa é conhecida;
Terão proveito, as honras lhe fazendo.” —
Mais prontos que os vapores à descida
Da noite, o ar sereno aluminando,
Ou névoa, ao pôr do sol, do céu varrida,
Partem, à grei de novo se ajuntando;
Como esquadrão, que corre à desfilada,
Voltam todos, a nós se arremessando.
“Ao nosso encontro vem turba avultada;
Pretensões todos têm” — disse-me o Guia
— “Andando, os ouve; não convém parada.”
— “Ó alma, que do céu vais à alegria
No próprio corpo, em que feliz nasceste,
Demora o passo um pouco” — a grei dizia,
“De entre nós vê se alguém reconheceste
Para ao mundo levares a notícia;
Por que deter-te ainda não quiseste?
“Morte a todos causou cruel nequícia;
Pecamos sempre até que à final hora
Do céu a luz se nos mostrou propícia.
“Assim, contritos, perdoando, fora
Fomos da vida, a paz com Deus já feita;
De o ver desejo nos acende agora.”
— “A feição vossa” — eu disse — “é tão desfeita,
Que nenhum reconheço; mas, se acaso
Ser útil posso no que a vós respeita,
“Pela paz, a servir-vos já me emprazo,
Que busco, deste sábio acompanhado,
De mundo em mundo, no mais breve prazo.”
“Cada qual” — me tornou — “está confiado
Em ti, mister não há teu juramento,
Se não faltar poder ao teu bom grado.
“Aos outros me antecipo: ao rogo atento,
Tu se fores à terra que demora
Entre a Romanha e a que é de Carlo assento,
“Aos meus em Fano compassivo exora
Que com preces sufraguem-me piedosos
Para o mal expurgar que fiz outrora.
“Nasci lá, sofri golpes espantosos,
Que a existência cortaram-me tão cara,
De Antenórios nos planos pantanosos,
“Onde o funesto fim nunca esperara.
Assim o quis do Marquês d’Este a ira,
Que o exício meu injusto aparelhara.
“Ah! se, fugindo, me acolhesse a Mira
Quando alcançou-me de Oriais perto,
Eu fora inda hoje aonde se respira.
“Mas, correndo ao paul, sem rumo certo,
Caí, no ceno e juncos enleado:
De sangue um lago fez meu peito aberto.”
“Se for” — outro então disse — “executado
Desejo que te impele ao alto monte,
Sê por mim de piedade impressionado.
“De Montefeltro fui e fui Buonconte;
De mim Joana, e ninguém mais, não cura;
Entre todos por isso abaixo a fronte.”
— “Que força — que má ventura
Tão longe te arrastou de Campaldino,
Que se ignora onde tens a sepultura?”
— “Oh!” — replicou-me — “Ao pé de Casentino
Um rio passa que se chama Arquiano,
Nascido lá sobre o Ermo, no Apenino.
“De dor lá onde o perde o nome, insano,
Cheguei: ao pé fugia, e, traspassado,
O colo meu ensangüentava o plano.
“Da vista e fala ao ser desamparado,
No suspiro final bradei — Maria! —
E o corpo meu tombou, da alma deixado.
“Direi verdade: aos vivos o anuncia.
De Deus anjo tomando-me, o do inferno
— “Servo do Céu, mo tomas?” lhe bramia.
“Dele me usurpas o princípio eterno
Por uma tênue lágrima fingida;
Mas do seu corpo cabe-me o governo.
“Bem sabes que nos ares recolhida
Vaporosa umidade em chuva desce,
Quando é do frio às regiões subida
“Como quem com maldade o engenho tece,
Névoas e vento acumulava, usando
Da pujança infernal que lhe obedece.
“Depois, o dia terminado estando,
Do Pratomagno à serra, o vale envolve
Em treva, ao céu a abóbada enlutando.
“Túmido o ar, em catadupas volve,
E a água que na terra não se entranha,
Espumosa em torrentes se revolve.
“Veloz os álveos aos arroios ganha,
E para o régio rio se arrojando,
Os óbices abate, que se assanha.
“Junto à foz meu cadáver encontrando
Levanta-o Arquiano impetuoso
Ao Arno o impele, os braços desligando
“Da cruz que fiz no transe doloroso.
Por fundo e margens rola-o, sepultado
Na areia o deixa, que arrastara iroso.” —
— “Ah! quando à luz do mundo hajas tornado,
Quando repouses da jornada extensa” —
Foi por terceiro espírito impetrado:
“De Pia recordando-te, em mim pensa;
Siena fizera o que desfez Marema.
Sabe-o quem me esposara e em recompensa
No dedo pôs-me anel com rica gema.” —
CANTO VI
[ Dante promete às almas que a eles se recomendaram que não se esquecerá delas quando voltar ao mundo dos vivos. Os dois Poetas encontram o poeta Sordello, o qual, ao ouvir o nome da sua pátria, Mântua, abraça o mantuano Virgílio. Esse espisódio move Dante a uma violenta invectiva contra as divisões e as guerras internas que devastam a Itália. ]
QUANDO o jogo da zara é terminado,
Na amargura, o que perde, só ficando,
Os bons lances ensaia contristado.
A turba o vencedor acompanhando,
Qual vai diante qual por trás o prende,
Ao lado qual se está recomendando:
A este e àquele sem deter-se atende;
O que lhe alcança a mão parte se apressa;
De importunos desta arte se defende.
Cerca-me assim a multidão espessa,
Ora a uns ora a outros me volvendo,
De cada qual me livro por promessa.
O Aretino aqui stava: golpe horrendo,
De Ghin Tacco por mau, cortou-lhe a vida,
E o que na fuga se afogou, horrendo.
Aqui rogou-me em súplica sentida,
Frederico Novello e esse Pisano
Por quem Mazucco ação fez tão subida.
Vi o Conde Orso e aquele que o seu dano
Mortal, pelo ódio e inveja, recebera,
Como dizia, não por feito insano.
Aludo a Pedro Brosse. A que ora impera,
Do Brabante, se apressa a ter cautela,
Se não, da grei maldita a estância a espera.
Quando enfim, pude me esquivar àquela
Turba, que preces sôfrega pedia
Para a entrada apressar na mansão bela,
— “Em texto expresso” — eu disse — “ó douto Guia,
Do teu livro afirmaste que a vontade
Do céu por orações não se movia.
“Mas pede-as essa grei com ansiedade:
Seria acaso vã sua esperança?
Ou compreender não pude essa verdade?” —
— “Seu sentido a tua mente” — disse — “alcança;
Por vã essa esperança não falece;
Quanto é certa a razão nô-lo afiança:
“A Justiça do céu não desfalece,
Porque flama de amor num só momento
O devedor redime, que padece.
“Lá onde expus aquele pensamento
Não podia oração solver pecado,
Pois distante de Deus estava o intento.
“Porém neste problema sublimado
À mente por que há suma ciência
Te será puro lume revelado.
“Por quem? Por Beatriz. A continência
Feliz ridente lhe verás, ao viso
Quando houveres subido da eminência.” —
Tornei: — “Andar mais presto ora é preciso;
Como de antes, não sinto mor fadiga,
E da montanha a sombra já diviso.” —
— “Como podemos, é mister prossiga
O passo, enquanto o dia não se finda;
Mas te engana o desejo que te instiga.
“Antes do cimo aguardarás a vinda
Desse astro oculto agora pela encosta;
Não refranges os raios seus ainda.
“Aquela sombra vê, de parte posta,
Que, em soledade, atenta nos esguarda:
A vereda dirá melhor disposta.” —
Chegamo-nos. Ó nobre alma lombarda,
Como estavas altiva e desdenhosa.
Dos olhos no meneio grave e tarda!
Ela em nós encarou silenciosa,
Mas deixava-nos vir, nos observando,
Qual leão no repouso, majestosa.
Virgílio apropinquou-se, lhe rogando
Nos mostrasse a mais cômoda subida:
Respondeu-lhe, somente perguntando
Qual fora a pátria nossa e a nossa vida.
A falar o meu Guia começava:
“Em Mântua...” quando a sombra, comovida,
A ele se enviou donde se achava,
“Sordello sou” — dizendo — “em Mântua amada
Nasci também.” — E amplexo os estreitava.
Ah! serva Itália, da aflição morada!
Nau sem piloto em pego tormentoso!
Rainha outrora em lupanar tornada!
Esse espírito nobre e deleitoso
Nome escutando só da doce terra,
Logo o patrício acolhe carinhoso:
Os vivos raivam no teu solo em guerra;
Se encarniça um no outro ferozmente
Os que um só muro, uma só cava encerra.
Busca, ó mísera Itália, diligente
No mantimo teu, busca em teu seio:
Onde acha paz a tua infausta gente?
Justiniano em vão te ajeitar veio
A brida; a sela fica abandonada:
Maior vergonha te há causado o freio.
Ah! Cúria! Aos teus deveres dedicada
Deixar-te cumpre a César todo o mundo,
Como a lei quer por Cristo decretada!
Vê como, aos maus instintos se entregando
Ira-se a fera por faltar-lhe espora,
Depois que inábil mão stá governando.
Alberto de Germânia! Atente agora
Que é tornada indômita e bravia:
Cavalgado a deveras ter outrora!
Do céu justo castigo deveria
Os teus ferir — tão novo e tão sabido,
Que espante o sucessor da monarquia!
Tu e o teu genitor heis consentido,
Distantes, por cobiça, em terra estranha,
Que do Império o jardim steja esquecido.
Vê, descuidoso, na aflição tamanha,
Capelletti e Montecchi entristecidos.
Monaldi e Filippeschi, alvo de sanha.
Vem, cruel, ver fiéis teus suprimidos:
De tanto opróbrio seu toma vingança.
Vê como em Santaflor estão regidos!
Vem ver tua Roma! De carpir não cansa!
Viúva e só a todo o instante clama:
Vem, César! Vem! Não mates minha esp’rança!
Vem ver como a si próprio o povo se ama!
E se por nós piedade não te move,
Mova-te o zelo pela tua fama!
Se me é dado dizer, Supremo Jove,
Dos homens por amor sacrificado,
Mal tanto a nos olhar não te comove?
Ou tens ao nosso mal aparelhado,
Lá dos conselhos teus no abismo imenso,
Algum bem, ao saber nosso vedado?
As cidades de Itália um tropel denso
De tiranos subjuga e, qual Marcelo
Se aclama o faccioso, à pátria infenso.
Hás de, Florença minha, haver por belo
Este episódio a ti não referente,
Mercê do povo teu, de outros modelo.
Muitos, justiça tendo em peito e mente,
Por desfechar seu arco ensejo aguardam:
Teu povo a tem nos lábios permanente.
Muitos de encargos públicos se guardam;
Mas teu povo solícito se of’rece,
Gritando: — ”Pronto estou! em darmos tardam!” —
Exulta! A causa o mundo bem conhece:
Tens prudência, tens paz, possuis riqueza.
Falo a verdade, e o efeito transparece.
Atenas, Sparta, que a tão suma alteza
Por leis e instituições se sublimaram,
Sem governo viveram na incerteza,
Se, Florença, contigo se comparam,
Que em novembro tens visto revogadas
Leis sutis, que em outubro se forjaram.
Quantas vezes hão sido transformadas,
Em breve tempo, lei, moeda, usança?
Quantas índoles e forma renovadas?
Se vês ao claro e tens viva a lembrança,
Ao enfermo hás de achar que és semelhante,
Que, no leito jazendo, não descansa;
Em vão se agita, a dor vai por diante.
CANTO VII
[ Sordello, ao saber que aquele que abraçou é Virgílio, lhe faz novas e ainda maiores demonstrações de afeto. O Sol está próximo ao ocaso e ao Purgatório não se pode subir à noite. Guiados por Sordello, os dois Poetas param num vale, onde residem os espíritos de personagens que no mundo desfrutaram de grande consideração e que somente no fim da vida elevaram o seu pensamento a Deus. ]
DE doce afeto as mútuas mostras sendo
Por três ou quatro vezes reiterado
— “Quem sois?” — se retraiu Sordel dizendo.
— “Tinha Otávio os meus ossos sepultado
Já quando a este monte se elevaram
Almas que ao bem havia Deus chamado.
Virgílio sou: do céu não me afastaram
Pecados; me faltava a fé somente.” —
Do meu Guia estas vozes lhe tornaram.
Como quem ante si vê de repente
Maravilha: ora crê, ora duvida,
E diz: — É certo ou minha vista mente? —
Assim essa alma. Dobra a frente erguida
Humildemente, ao Vate se avizinha
E lhe abraça os joelhos comovida.
— “Ó glória dos Latinos!” — disse asinha —
Que ergueste a língua nossa a tanta altura!
Honra eterna da amada pátria minha!
“De ver-te o que me dá graça e ventura?
Dize, se di’no de te ouvir hei sido,
De qual círculo vens da estância escura.”
— “Tenho aqui” — Virgílio diz — “subido,
Do triste reino os círc’los visitando,
Sou do céu por virtude conduzido.
“Não por fazer, mas de fazer deixando,
Ver o sol, que desejas, me é vedado:
Conheci-o já tarde — ai miserando!
“Lá embaixo um lugar foi destinado
Não a martírio, à treva onde há somente
Suspiros, não gemer de angustiado.
“Ali stou eu, no meio da inocente
Grei, que a morte cruel mordeu, enquanto
Da culpa humana inda era dependente.
“Com aqueles stou eu, em quem seu manto
Três celestes virtudes não lançaram,
Lhes dando à vista o mais suave encanto.
“Mas sabes se veredas se deparam
Que ao Purgatório a entrada facilitem?
Os indícios nos diz, se te constaram.” —
Tornou: — “Lugar não há, que almas habitem
Aqui; na direção vou, que me agrada;
Guiarei quanto os passos me permitem.
“Mas vê: declina o dia; na jornada,
Que fazeis, caminhar a noite veda:
Busquemos sítio a cômoda pousada.
“À destra e à parte multidão stá queda:
Iremos até lá, se acaso o queres,
Talvez te seja a sua vida leda.” —
E o Mestre: — “Como? Pelo que proferes,
Impossível será subir sem dia?
Ou a alguém, que o proíba, te referes?” —
Com seu dedo Sordel linha fazia
No chão e disse: — “Além ninguém passara
Se, ausente o sol, a noite principia.
“Mas óbice qualquer não deparara
Quem caminhar, subindo, pretendesse:
Para tolhê-lo a noite já bastara.
“Bem pudera baixar, se lhe aprouvesse,
Pelo declive em volta da montanha:
Enquanto o sol sob o horizonte desce.” —
Torna Virgílio, então, que ouvindo estranha:
— “Ao lugar, que nos dizes, pois, nos guia,
Onde a demora o júbilo acompanha.” —
Pouco longe dali notei que havia
Depressão na montanha, semelhante
À que na terra um vale formaria.
— “Iremos” — disse a sombra — “um pouco avante
Té onde a encosta encurva, se escavando:
De lá voltar vereis a luz brilhante.” —
Entre a escarpa e o plano se inclinando
Trilha ao vale conduz obliquamente,
O pendor mais que ao meio, se adoçando.
Prata, alvaiade, grão, ouro fulgente,
Índico lenho límpido e lustroso,
Pura esmeralda, ao lapidar, luzente,
Por flores e ervas desse val formoso
Se achariam na cor escurecidos
Como cede o mais fraco ao mais forçoso.
Aos donosos males espargidos
Mil suaves aromas se ajuntavam,
Em peregrino muito reunidos.
Sobre a relva entre as flores entoavam
Salve Regina, as almas, que da vista
Externa no recinto se ocultavam.
“Do sol enquanto a luz inda persista” —
O Mantuano disse, que nos guia,
“Ir não queiras à grei que de nós dista.
“Gestos e vultos seus conheceria
Qualquer de vós daqui mais claramente
Do que, de perto os vendo, o poderia.
“O que parece, aos outros, eminente.
Da quebra em seus deveres pesaroso
E a geral melodia ouve silente,
“É Rodolfo que fora poderoso.
Conta o mal que já tem a Itália morta:
Quem lhe dará porvir esperançoso?
“O que com seu semblante ora o conforta
Governava esse reino onde a água brota,
Que o Molta ao Álbia, o Álbia ao mar transporta.
“É Otocar: na infância melhor nota
Teve que o filho, Venceslau barbudo,
Na luxúria e preguiça a vida esgota.
“Morrendo, o que não tem nariz agudo
E fala a esse outro de benino aspeito,
Deixou dos lizes deslustrado o escudo.
“Atentai: como bate ele no peito!
Vede aquele que ao ar suspiros lança
Da mão fazendo à sua face um leito.
“Sogro e pai do flagelo são da França;
Cientes do viver seu vergonhoso,
Dor stão sentindo, que ora não descansa.
“Esse membrudo, que o cantar piedoso
Segue do que nariz tem desmarcado,
Das virtudes no culto foi zeloso.
“Se o mancebo, ora atrás dele assentado,
Ao trono sucedera-lhe, subira
Valor de um Rei por outro fora herdado.
“Dos maus herdeiros qual pôs nisso a mira?
Jaime Fred’rico havendo o reino tido,
Nenhum a melhor parte possuíra.
“Rara vez tem nas ramas ressurgido
Primor alto da estirpe; assim o ordena
Aquele, a quem ser deve o bem pedido.
“Ao narigudo aplicação tem plena
Meu dito e a Pedro, que ao seu lado canta:
Apúlia com Provença, geme e pena.
“Tanto ao seu fruto excede em preço a planta,
Quanto, mais que Beatriz e Margarida,
Constança ações do esposo seu decanta.
“Ali vedes o Rei de simples vida
Sentado à parte, Henrique de Inglaterra:
Teve este em ramos seus melhor saída.
“Mais abaixo notai sentado em terra
Marquês Guilherme e para o alto olhando,
Por quem, sofrendo Alexandria guerra,
Montferrat, Canavese estão chorando.” —
CANTO VIII
[ No começo da noite dois anjos descem do Céu para expelir a serpe maligna que quer entrar no vale. Entre as sombras que se aproximam dos Poetas, Dante reconhece Nino Visconti, de Pisa. Conrado Malaspina pede a Dante notícias de Lunigiana, sua pátria; Dante responde elogiando a sua família. ]
ERA o tempo, em que mais saudade sente
Do navegante o coração no dia
Do adeus a amigos, que relembra ausente;
E ao novel peregrino amor crucia,
Distante a voz do campanário ouvindo,
Que ao dia a morte, flébil, denuncia.
Não mais ouvia os olhos dirigindo
Perto um espírito vi que levantado,
Acenava, que ouvissem-no pedindo.
E, havendo as duas mãos juntas alçado,
Parecia, olhos fitos no Oriente,
A Deus dizer: És todo o meu cuidado!
Te lucis entoou devotamente
Com tão suave, tão piedoso canto,
Que me enlevava em êxtase a mente.
Com igual devoção e igual encanto,
Nas supernas esferas engolfados,
Repetiram os outros o hino santo.
Leitor, tem da alma os olhos afiados
Para os véus da verdade penetrares:
Fácil é, tão sutis são, tão delgados.
A nobre turba, após os seus cantares,
Calou-se; então notei que, como à espera,
Pálida e humilde a vista erguia aos ares.
E vi sair descendo, da alta esfera
Anjos dois, empunhando flamejantes
Gládios a que truncada a ponta era.
Verdes quais folhas novas vicejantes
As vestes suas são, as agitando
As plumas das suas asas viridantes.
Um acima de nós se colocando,
Baixara o outro sobre o lado oposto,
Desta arte as almas de permeio estando.
A flava coma via-lhes: seu rosto
Contemplar impossível me seria:
Confunde a vista o lúcido composto.
“Do sólio ambos descendem de Maria”
Sordelo diz — “a do vale por amparo,
Onde a serpente vai chegar ímpia.”
Por onde ela viesse estando ignaro
Em torno olhei e, do terror tomado,
Busquei refúgio ao pé do amigo caro.
Sordel prossegue: — “É de falar chegado
Àqueles grandes spíritos o instante:
Ledos serão de ver-vos ao seu lado.” —
Para baixar ao val me foi bastante
Três passos dar: um spírito fitava
Perscrutadora vista em meu semblante.
Já de sombras o ar se carregava;
Mas aos seus e aos meus olhos embaraço
Não era para ver-se o que ali stava.
A mim vem, eu para ele aperto o passo:
— “Nino exímio juiz quanto me agrada
Ver-te liberto do infernal regaço!”
De afeto após a mostra reiterada,
Inquiriu: — “Por longínquas águas quando
Chegaste ao pé da altura alcantilada?”
— “Oh!” — lhe tornei — “esta manhã, passando
Pela triste mansão: ainda a vida
Primeiro gozo e a outra vou buscando.” —
Mal fora esta resposta proferida,
Nino e Sordel, de pasmo, recuaram;
Como se fora maravilha ouvida.
Ao Vate este volveu-se; e se escutaram
Vozes de Nino a outro: — “Vem, Conrado, —
De Deus ver o que as leis determinaram!”
— “Por essa gratidão” — a mim voltado
Disse — “que ao Ente deves invisível,
Cuja ação compreender nos é vedado.
“Te imploro que, em passando o mar temível,
Digas à filha minha que suplique
Por mim: Deus à inocência é tão sensível!
“Não creio que em prol meu a mãe se aplique
Depois que os brancos véus trocou demente:
Dor terá infeliz! — que mortifique.
“Se conhece, por ela, facilmente
Quanto em mulher de amor fogo perdura
Se o caminho falece e o olhar freqüente.
“Não lhe fará tão bela sepultura
A víbora com que Milão se ostenta,
Como a fizera o galo de Galura.” —
Assim dizia Nino. Ainda o alenta
O justo zelo, que traduz no rosto,
Que brando ardendo, o ânimo aviventa.
Ávido os olhos tinha eu no céu posto,
À parte em que os luzeiros são mais lentos,
Qual roda onde o seu eixo está disposto.
E o Mestre: — “Os olhos ao que tens atentos?” —
Respondi-lhe: — “Aos três astros luminosos,
Que o pólo acendem, célicos portentos.” —
— “As quatro estrelas” — me tornou — “formosas,
Que por manhã já vimos, se ocultaram.
Aí mesmo estas surgem fulgurosas.” —
Sordel, quando estas vozes me voaram,
O tira a si dizendo: — “eis o inimigo!” —
Os olhos o seu dedo acompanharam.
Do val na parte exposta ver consigo
Uma serpe, que a rastos coleava:
Talvez o pomo deu, de Eva perigo.
Entre as ervas e flores avançava,
A um lado e a outro a fronte volteando;
Lambendo o dorso, a língua dilatava.
Não pude ver como ao réptil nefando
Os celestes açores se enviaram;
Mas atônito os vi ambos pairando.
O sussurro que as asas no ar formaram,
Em sentido, fugiu presto a serpente:
Os anjos logo aos postos seus tornaram.
A sombra, que viera incontinênti
Do juizo ao chamado enquanto o assalto
Durou, me estava olhando atentamente
— “Tenha o fanal, que te conduz ao alto
No teu desejo válido alimento!
De luz para subir não sejas falto!
“Mas se houveste” — me diz — “conhecimento
De Valdimagra ou terra que confina,
Declara: eu de poder lá tive aumento.
“Chamado fui Conrado Malaspina;
Não o antigo, porém seu descendente:
Amor, que tive aos meus aqui se afina.” —
— “Lá não fui” — respondi-lhe reverente —
“Mas da Europa em que parte a excelsa fama
Dos feitos vossos não tem eco ingente?
“A glória que o solar vosso proclama,
Honra o domínio, honra os seus senhores
Quem nunca os viu louvores seus aclama.
“Juro, e tão certo eu veja os esplendores
Do céu, que a vossa raça guarda intatos
Da opulência e bravura altos primores.
“Por sua índole egrégia, por seus atos,
Enquanto ao mundo um chefe mau transvia,
Só ela segue o bem e o prova em fatos.” —
— “Vai!” — disse — “Antes que o belo astro do dia
Sete vezes penetre nesse espaço,
Que o Áries cobre na celeste via,
“Tão boa opinião com fundo traço
Melhor será na tua fronte impressa
Do que de outro por voz a cada passo,
Se do Sumo Querer ordem não cessa.” —
CANTO IX
[ Ao despontar do novo dia Dante adormece e, no sono é transportado por Luzia até a Porta do Purgatório. Aproximam-se da entrada e aqui um anjo abre-lhes a porta, depois de ter gravado na testa de Dante sete PP. ]
JÁ clareava de Titão antigo
A concubina as fímbrias do oriente,
Deixando os braços do seu doce amigo;
Era-lhe a fronte de astros refulgente,
Figura do animal frio formando,
Que vibra a cauda contra a humana gente.
No lugar, em que estávamos, se alçando
Dos passos seus havia a Noite andado,
E o terceiro ia as asas inclinando,
Quando eu, tendo o que Adam nos há legado,
De sono sobre a relva fui vencido,
Lá onde junto aos quatro era sentado.
Ante-manhã, na hora, em que gemido
Triste a andorinha a soluçar começa,
Talvez na antiga dor pondo o sentido;
Já não stando da carne mais opressa
A mente e livre do pensar terreno,
Quase divina por visões pareça,
Pairar sonhei que via no ar sereno
De áureas plumas uma águia, que mostrava
Querer baixar, das asas pelo aceno.
Estar eu na montanha imaginava,
Onde os seus Ganimede abandonara
Alado à corte excelsa, que o esperava.
E eu pensava: talvez esta ave rara,
Caçar aqui soindo, a nédia preia
Fazer noutros lugares desdenhara;
A traçar giros vários avistei-a:
Eis, terrível, qual raio, a mim se envia,
E lá do fogo à região me alteia.
Esta águia, então julguei, comigo ardia
Tanto, que foi o sonho meu quebrado
Pelo fingido incêndio, que eu sentia.
Como, acordando, Aquiles espantado
Ficou por não saber onde se achava
No lugar aos seus olhos devassado,
Quando a mãe que a Quíron o arrebatava,
O transportou a Sciro adormecido,
Donde astúcia depois lho retirava:
Assim fiquei ao ser desvanecido
Das pálpebras o sono, semelhante
A quem desmaia em cor de horror transido.
Junto a mim eu só vi naquele instante
Virgílio; o sol duas horas já media;
Ao mar tinha eu voltado inda o semblante.
— “Não teme!” — estas palavras proferia —
“Sê tranqüilo, o bom porto não mais dista,
Alarga o coração, não entibia;
“O Purgatório já daqui se avista.
Onde a rocha é fendida está a entrada,
A rocha o cinge e tolhe o aspeto à vista.
“Ao romper da alva ao dia antecipada,
Quando no vale em sono eras jazendo
Sobre a ervinha de flores esmaltada,
“Eis mostrou-se uma Dama nos dizendo:
Sou Luzia; pois dorme, vou trazê-lo,
Leve assim a jornada lhe fazendo —
“Ficando as nobres almas com Sordelo,
Tomou-te; e como já raiasse o dia
Subiu: seguiu seus passos, com desvelo
“Depôs-te; e por seus olhos me dizia
Que próxima ali stava a entrada aberta.
Ela se foi e o sono te fugia.” —
Como quem stando em dúvida, se acerta,
Converte o seu temor em confiança,
Logo em sendo a verdade descoberta:
Assim me achei mudado. Ele que alcança
Que esforçado já stou, vai por diante
Pela altura; o meu passo após avança.
Vês, leitor, que assunto altissonante
Se faz; e não estranhes se mais arte
Mor lustre lhe acrescenta de ora avante.
Acercamo-nos, pois, da rocha à parte,
Onde eu antes rotura divisava
Como em muralha fenda que reparte;
Ora uma porta e degraus três notava
Para entrar, cada qual de cor dif’rente,
E um porteiro que tácito ficava.
E, de mais perto olhando, claramente
No mais alto degrau o vi sentado:
Ofuscava-me a face refulgente.
Na destra um gládio eu tinha empunhado,
que tão vivos lampejos refletia,
Que em vão fitava os olhos deslumbrado.
— “Parai e respondei-me” — principia —
“Que intentais? Quem vos guia na jornada?
Efeitos não temeis dessa ousadia?” —
— “Dama do céu, de tudo isso inteirada”
— Falou Virgílio — “disse-nos: — Avante!
Não longe fica a porta desejada.” —
— “Seja ela aos vossos passos luz brilhante”
— Logo beni’no o anjo nos tornava —
“Aos degraus nossos vinde por diante.” —
Chegamos: o degrau primeiro estava
De alvo mármor tão terso, tão polido,
Que a minha imagem nele se espelhava.
Era escuro o segundo e não brunido,
Tosca pedra o formava e calcinada;
Ao longo a via e de través fendido.
De pórfiro o terceiro e carregada
Tinha a cor de vermelho flamejante,
Qual sangue, que da veia flui rasgada.
Neste firmava o anjo rutilante
Os pés, ao limiar sentado estando,
Que ser me pareceu de um só diamante.
Tirado por Virgílio vou-me alçando
Jubiloso. Ele disse — “Humildemente
Requer, que te abra a porta deprecando.” —
Aos sacros pés dobrei devoto a frente;
Misericórdia, vezes três batendo
Nos peitos, para abrir pedi fervente.
Da espada a ponta sete PP me havendo
Na testa aberto, disse o anjo: — “Lava
Lá dentro estes sinais te arrependendo.” —
Chaves duas tomou quando acabava,
De sob as vestes, onde a cor, atento
De terra seca eu cinzas observava.
Uma era de ouro, a outra era de argento.
Primeiro a branca, após a flava aplica
À porta: foi completo o meu contento.
— “Se emperrada das duas uma fica
E não dá volta” — disse — “à fechadura,
Isto entrada defesa significa.
“Se mais preço um tem, noutra se apura
Mais arte para abrir e mais engenho,
Das molas cede-lhe a prisão mais dura.
“Mandou Pedro de quem as chaves tenho
Que em abri-la antes erre que em cerrá-la
Aos que a exoram com ardente empenho.” —
Tocando a santa entrada, ainda nos fala:
— “Penetrai; mas, de agora, vos previno,
Quem olha para trás pra fora abala.” —
Os portões já se movem do divino
Recinto, e os espigões, rangendo, giram
Nos gonzos de metal sonoro e fino:
Quando, vãos de Metelo os esforços, viram
Roubado o erário, com estrondo tanto
As portas de Tarpéia não se abriram.
Aos rumores atento, doce canto —
Te Deum laudamus escutar julgava,
De conceitos unido ao meigo encanto.
Ouvindo, em mim a sensação calava,
Que a voz bem modulada nos motiva,
Quando com ternos sons de órgão se trava;
Que uma voz emudece, outra se esquiva.
CANTO X
[ Os dois Poetas sobem ao primeiro compartimento do Purgatório, cuja escarpa é de mármore, no qual estão esculpidos vários espisódios de humildade. Eles os observam e no entanto vêem em sua direção várias almas curvadas sob o peso de grandes pedras. São as almas dos que no mundo foram soberbos. ]
PASSADO estando o limiar da porta,
Das paixões pelo excesso desusada,
Que reta faz supor a estrada torta,
Pelo estrondo senti que era cerrada.
Se atrás volvesse os olhos, qual seria
A desculpa da falta perpetrada?
Subíamos por fenda que se abria
Na rocha, a um lado e ao outro serpeando,
Qual onda, que ora acerca, ora desvia.
“Aqui ser destro cumpre, acompanhando” —
Disse o Mestre — “o caminho árduo, fragoso,
Que as sinuosas voltas vai formando.” —
A passo íamos, pois, tão vagaroso,
Que a lua o crescente reclinado
Era já no seu leito de repouso,
Quando aquela estreiteza hemos deixado
Espaços livres alcançando e abertos,
Onde o monte pra trás era inclinado;
Eu inanido e ambos nós incertos
Da vereda, em planura enfim paramos,
Mais solitária que áridos desertos.
Do precipício a borda calculamos
Distar da oposta, em que o rochedo alteia,
Comprimento que em homens três achamos.
Na extensão, que ante mim se patenteia,
Da direita ou da esquerda igual largura
Nessa cornija aos olhos se franqueia.
Não déramos um passo na planura,
Quando notei que a escarpa sobranceira,
Que ascender não permite a sua altura,
Era alvo mármor, tendo a face inteira
Talhada com primor, que a Policleto
Tomara e à natureza a dianteira.
O anjo, que da paz trouxe o decreto,
Tantos séc’los com lágrimas pedido,
Que o céu abriu, donde o homem stava exceto,
Ao vivo ali mostrava-se insculpido,
No gesto e no meneio tão suave,
Que em pedra não parece estar fingido.
Quem não jurara que profere o Ave,
Pois juntamente figurada estava
Quem do supremo amor volvera a chave?
Seu semblante estas vozes expressava
Ecce ancilla tão propriamente,
Como na cera imagem, que se grava.
— “Num ponto só não prendas tanto a mente” —
Virgílio me falou, tendo-me ao lado,
Aonde o coração bater se sente.
Para mais longe olhei: maravilhado
Após Maria então vi que disposta,
Da parte, em que era o Mestre colocado,
Fora outra história em mármore composta.
Ao sábio adiantei-me: de mais perto
Aos meus olhos melhor ficara exposta.
O carro com seus bois na rocha aberto
E a Arca santa que conduz, mirava:
Lembra aos profanos o castigo certo.
Em coros sete o povo ali cantava:
Do olhar em mim o ouvido dissentia,
Pois se um dizia sim, outro negava;
De igual modo na pedra percebia
Ao ar o fumo se elevar do incenso:
Da vista o asserto o olfato desmentia.
Da Arca adiante, com fervor imenso,
Dançando humilde via-se o salmista,
Mais e menos que um Rei no zelo intenso.
Mícol, do régio paço, em frente, a vista
No Rei fitava, o ato lhe estranhando,
Que lhe move desgosto e que a contrista.
Desse lugar depois eu me afastando,
De perto contemplar fui outra história,
Que além um pouco, estava branquejando.
Aqui brilhava a preminente glória
Desse famoso Imperador romano,
Por quem Gregório obteve alta vitória.
Ao natural tirado era Trajano:
Do freio do corcel mulher tratava;
Dizia o pranto sua dor, seu dano.
De cavalheiros tropa se apinhava,
E nas bandeiras a águia de ouro alçada
Acima dele aos ventos tremulava.
A infeliz, dos guerreiros rodeada,
Parecia dizer: — “Senhor, vingança!
Morto é meu filho e eu gemo atribulada.”
E Trajano tornar: — “Toma esperança
Até que eu volte.” — E a mísera pungida
Da dor que, em mãe, a tudo se abalança:
— “Senhor, se não voltares?” — “Deferida
Serás de herdeiro meu.” — “Bem que outro faça
Que val’, se a obrigação tens esquecida?” —
E ele: — “Ânimo esforça na desgraça.
Meu dever cumprirei sem mais espera,
Justiça o exige, compaixão me enlaça.” —
Quem novas cousas nunca vê, fizera
Visível sobre a pedra esta linguagem:
Arte não sobe a tão sublime esfera.
Enquanto me enleava em cada imagem,
Em que há dado aos extremos da humildade
De operário a perícia mor vantagem,
— “Eis almas lentamente em quantidade
Acercam-se; a mais alta” — disse o Guia —
“Nos pode encaminhar sua bondade.” —
A vista, que em portentos se embebia,
De olhar outros já sôfrega, volvendo,
Atentei no que o Mestre me advertia.
Mas, leitor, que esmoreças não pretendo,
Nem que os bons pensamentos te faleçam,
Como os pecados pune Deus sabendo.
Nem os martírios nímios te pareçam;
Pensa bem no porvir; pois, em chegando,
O grão Juízo, em caso extremo, cessam.
E eu disse: — “O que ora a nós vem caminhando
Não creio sombras ser: o que é portanto?
Não sei, a percepção turbada estando.” —
— “Do seu tormento, que te movo espanto
É condição à terra irem curvados:
Também a vista duvidou-me um tanto.
“Olhos fita; imagina levantados
Os que vêm dessas pedras oprimidos:
Já vês quanto eles são atormentados.”
Cristãos soberbos, míseros, perdidos,
Cegos da alma, que haveis pra trás andado,
De tanta confiança possuídos,
Que vermes somos não vos stá provado,
De que surge a celeste borboleta,
Que incerta voa ao tribunal sagrado?
Por que do orgulho assim passais a meta,
Se sois insetos no embrião somente,
Vermes de formação inda incompleta?
A modo de pilar ver-se é freqüente,
Joelhos, peito unindo, uma figura
Cornija ou teto a sustentar ingente.
Da dor mera ficção move tristura
Em quem olha: senti então notando
Das almas penitentes a postura.
Mais umas, outras menos, se dobrando
Iam, segundo o fardo, que traziam;
E as que eram mais sofridas, pranteando,
Não posso mais! — dizer me pareciam.
CANTO XI
[ Virgílio pergunta às almas que purgam o pecado da soberbia qual é o caminho para subir ao segundo compartimento, e uma delas dá a indicação requerida. Umberto Aldobrandeschi dá-se a conhecer e fala com Dante, que, depois, reconhece Oderisi de Gubbio, pintor e gravador. Oderisi dá-lhe notícia de Provenzano Salvani, que está junto com eles. ]
VÓS, que nos céus estais, ó Padre nosso,
Não circunscrito, mas porque haveis dado
Mais aos primeiros seres o amor vosso,
“Vosso nome e poder seja louvado!
Graças à criatura jubilosa
Ao saber vosso renda sublimado!
“Do reino vosso a paz venha ditosa!
Que vão de havê-la o empenho nos seria,
Se não vier da vossa mão piedosa.
“Como a vós a vontade se humilia
Dos vossos anjos, entoando hosana,
Façam assim os homens cada dia!
“A substância nos dai quotidiana
Hoje: sem ela em áspero deserto
Se atrasa quem por ir além se afana!
“E como a quem nos faz mal descoberto
Damos perdão, nos perdoai clemente,
Indi’nos sendo nós, Senhor, por certo.
“Oh! não deixeis cair a defidente
Virtude nossa em tentação do imigo!
Livrai-nos dele, em nos pungir ardente!
“Não mais somos, Senhor, nesse perigo,
Em que precisa esta oração nos seja;
Mas não os que hão mister na terra abrigo.” —
Ao céu rogando que ao seu bem proveja
E ao nosso, as almas sob o peso andavam,
Como o que oprime a quem sonhando esteja.
Com desigual gravame se arrastavam
Ofegantes no círculo primeiro,
E do pecado as névoas expurgavam,
Se em bem nosso com zelo verdadeiro,
Oram, como em seu prol fará no mundo
Quem tem no bem querer seu peito useiro?
Ajudemo-las, pois, vestígio imundo
A lavar, por que leves, puras sejam,
Do céu se alando ao brilho sem segundo.
“Ah! compaixão, justiça vos consigam
Presto alívio, e possais, o vôo erguendo,
Ir até onde os desejos vos instigam!
“Valei-nos a vereda nos dizendo
Mais curta ou a que é menos escarpada,
Mais de um caminho a se ascender havendo.
“Ao companheiro meu assaz pesada
É a carne de Adam, que inda o reveste:
Por mais que esforce, o afana esta jornada.” —
A voz, que respondeu ao Mestre a este
Dizer, não sei a que alma pertencia
Por indício qualquer, que o manifeste:
— “Vinde à direita em nossa companhia
Pela encosta, e vereis o passo estreito,
Que uma pessoa viva subiria.
“Se este penedo não tolhesse o jeito,
A cerviz orgulhosa me domando
E obrigando a juntar o rosto ao peito,
“Deste homem para a face, atento olhando,
(Não sei quem é) talvez o conhecera,
E assim me fora compassivo e brando.
“Toscano fui, ilustre pai tivera.
Guilherme Aldobrandeschi se chamava:
O nome seu algum de vós soubera?
“Tanta arrogância a glória me inspirava
Do meu solar e os feitos valorosos,
Que a nossa mãe comum não mais pensava,
“Olhos volvendo a todos desdenhosos.
Perdi-me assim; os atos meus em Siena
Foram em Campagnatico famosos.
“Chamei-me Umberto; da soberba a pena
A mim não coube só: de igual desgraça
Vem a causa que aos meus todos condena.
“Este fardo, que os passos me embaraça
Mereço, por cumprir-se a lei divina:
Vivo o não fiz, é justo que ora o faça.” —
Enquanto, ouvindo, a fronte se me inclina,
Uma das almas (não a que falava)
Sob o peso se torce, que a amofina.
E viu-me e, conhecendo-me, chamava,
Os olhos seus fitando esbaforida
Em mim, que, recurvado a acompanhava.
— “Oderisi não foste” — eu disse — “em vida,
Honra de Agubbio, honra daquela arte
Que iluminar Paris ora apelida?” —
— Tornou-me: — “Hoje o pincel (cumpre informar-te)
De Franco de Bolonha mais agrada:
A honra é toda sua, minha em parte.
“Por mim não fora em vida proclamada
Esta verdade, quando esta alma ardia
Na ambição de primar nessa arte amada.
“Aqui de tal soberba o mal se expia;
Staria alhures; mas a Deus eu pude
Mostrar que de pecar me arrependia.
“Quanto a vaidade o peito humano ilude!
Dessa flor como esvai-se a formosura,
Se não seguir-se um séc’lo inculto e rude!
Cimabue cuidou ter na pintura
A liça dominado: mas vencido
Ficou: a glória Giotto fez-lhe escura.
Assim de estilo na arte cede um Guido,
A palma a outro: agora é bem provável
Seja de ambos o mestre já nascido.
“Rumor mundano é como vento instável
Que a direção varia de repente:
Conforme o lado, o nome tem mudável.
“De ti que fama ficará manente,
Se da velhice cais no extremo passo,
Ou se findas na infância inconsciente,
“De hoje a mil anos, tempo mais escasso,
Da eternidade em face, que um momento
Ante a esfera a mais tarda lá no espaço?
“Quem me precede e vai assim tão lento
Na Toscana entre todos foi famoso:
Apenas salvo está do esquecimento.
“Em Siena, que há regido poderoso,
Quando perdeu-se a raiva florentina.
Soberba então, objeto hoje asqueroso.
“A fama vossa iguala-se à bonina,
Que flore e morre: o sol, por quem nascera
Na terra a prostra e a cor cresta à mofina.” —
Respondi-lhe: — “O dizer teu em mim gera
Saudável humildade e o orgulho mata.
Esse, que apontas, conta-me quem era.” —
“De Provenzan Salvani” — diz — “se trata:
Aqui stá, porque Siena ele cuidara
Ter nas mãos — presunção de alma insensata!
“Caminha assim curvado, e nunca pára
Dês que a vida perdeu eis o castigo
De quem tanto à soberba se entregara!” —
— “Se o que demora até final perigo
A penitência” — eu disse — “e errado corre,
Subir não pode e aqui não acha abrigo,
“Se uma oração piedosa o não socorre,
Durante prazo igual ao da existência,
Como ao martírio Provenzan concorre?” —
— “Quando era” — torna — “no auge da influência,
Sobre a praça de Siena, suplicando,
Ter ante o povo humilde continência,
“De um amigo o resgate procurando,
Que era por Carlos em prisão detido,
Tremeu angustiado e miserando.
“Não mais: não sou, de obscuro, compreendido,
Mas te há de ser em breve isto explicado
Por filhos dessa terra em que hás nascido. —
“Por tão bom feito o ingresso lhe foi dado.”
CANTO XII
[ Os dois Poetas continuam a viagem. No pavimento do círculo estão pintados vários exemplos de soberbia castigada. Um anjo vem junto dos Poetas e os guia até a escada que sobe ao compartimento sucessivo. Com a asa, depois, apaga da testa de Dante um dos PP. ]
A PAR, como dois bois, que o jugo unira,
Eu com essa alma opressa e titubeante
Ia, enquanto Virgílio permitira.
Eis disse-me: — “Deixando-a, segue avante:
Deve fazer de vela e remos força
Quem quer à parca impulso dar constante.” —
A caminhar dispus-me à voz, que esforça,
Erguendo logo o corpo, inda que a mente
Na humildade a modéstia acurve e estorça.
Já os pés acelero e facilmente
A Virgílio acompanho: de porfia,
Se mostra cada qual mais diligente.
— “À terra olhos inclina” — então dizia —
“Para a jornada aligeirar atenta
No solo, onde o meu passo aos teus é guia.”
Assim como na campa se aviventa
A memória dos mortos, insculpindo
Imagem, que a existência representa,
Que de saudade os corações ferindo,
À piedade propensos e à ternura,
Os vai ao pranto muita vez pungindo:
Assim, com perfeição sublime e pura,
Figuras via sobre aquela estrada,
Que sobe, serpeando, pela altura.
Via, a um lado, dos céus precipitada
Das criaturas a mais bela e nobre,
Qual raio, pelo espaço arremessada.
A vista, o outro, Briaréu descobre
De projétil celeste transpassado:
Gélido a terra desmedido cobre.
Com Marte e Palas stava figurado
Timbreu, em torno ao pai de armas fornidos,
Vendo o campo de imigos alastrado.
Nemrod olhos volvia espavoridos,
Junto à feitura imensa, aos companheiros,
Que a Sanaar seguiram-no, descridos.
Ó Níobe, com braços verdadeiros
Que dor nos olhos teus aparecia,
Os filhos mortos vendo, quais cordeiros!
Saul, a própria espada te extinguia
Sobre a montanha Gelboé — maldita,
Orvalho ou chuva ali não mais caía.
Ó louca Aracne, tua face aflita,
De aranha parte entre os destroços stava
Da teia, origem da fatal desdita.
Não mais a tua imagem cominava;
Num carro foges, Roboam cruento,
À fúria popular, que te assombrava.
Amostrava ainda o duro pavimento
Como fez Alcmeon pagar tão caro
À mãe o funestíssimo ornamento.
Mostrava mais como flagício raro
Senaqueribe no templo assassinado
Por filhos, que deveram ser-lhe amparo.
Mostrava também Ciro degolado
E Tamíris dizendo acesa em ira
— Sede tinhas de sangue, sê saciado! —
A multidão de Assírios que fugira,
Mostrava ao verem de Holoferne a morte,
E o castigo que os passos lhes seguira.
Via no pó, nas cinzas Tróia forte:
Ó soberba Ílion, a pedra dura
Mostrava a tua lamentável sorte!
Que mestre no pincel ou na escultura
Posturas, sombras tais traçar pudera,
Pasmo ao gênio, que atinja a suma altura?
Real ou morte ou vida aos olhos era:
A verdade não viu na própria cena
Melhor que eu quando a efígie a olhar stivera.
A fronte entonai, pois, de orgulho plena,
Ó filhos de Eva, os olhos não baixando
Ao caminho, onde achais devida pena!
Mais íamos no monte caminhando
E no seu giro o Sol mais avançara
Do que eu cuidava, absorto contemplando,
Quando aquele, que sempre me guiara
Desvelado, me disse: — “Alça a cabeça!
Não te engolfes! atento sê! repara!
“Olha aquele anjo que caminha à pressa
Ao nosso encontro: acaba a terra sexta
Do dia o lavor certo e outra começa.
“Reverência em teu gesto manifesta
Para o anjo à viagem ser propício,
Não volta o dia de que pouco resta.” —
Aproveitar do tempo o benefício
Era do Mestre a regra; e, pois, naquela
Matéria não lhe achei de obscuro o indício.
Já nos demanda a criatura bela:
Trajava branco, a face resplendia,
Qual, tremulando, matutina estrela.
Braços abria e asas estendia,
Dizendo: — “Vinde! que os degraus stão perto:
A jornada já fácil se anuncia.” —
Raros escutam essa voz, por certo:
Ó gente humana, para o céu nascida,
Por que decaís do vento a um sopro incerto?
Imos à rocha, por degraus partida:
De uma das asas me roçou na fronte,
Prometendo-me próspera subida.
Como à direita quem se erguer ao monte,
Donde se avista a igreja que domina
A bem regida ao pé de Rubaconte,
Sente que aos pés a ingremidade inclina
Pela escada talhada antes que houvesse
Em livros e medidas a rapina:
Adoça-se o pendor assim; pois desce
De um círc’lo a outro a rocha que alterosa
A um lado e ao outro augusto passo of’rece.
Subindo em melodia tão donosa
Beati pauperes spiritu escutamos,
Que a voz, que o diga é pouco vigorosa
Quão dif’rentes os áditos que entramos,
Dos infernais! Aqui suave canto,
Lá gritos de ira ouvindo caminhamos.
Vencendo esses degraus do monte santo
Mais ágil me sentia: lá no plano
Fácil nunca a jornada fora tanto.
Eu disse: — “Ó Mestre, de que peso insano
Sinto-me livre, pois no estreito passo,
Como de antes agora não afano!” —
— “Quando os PP que inda tens em vivo traço
Sobre a fronte” — tornou-me — “se apagarem,
Como não hás de ter mais embaraço,
“Segundo o teu desejo os pés andarem
Sentirás sem fadiga, e até gozando
Deleite, para a altura ao caminharem.”
Como o que traz, na praça passeando,
Cousa, que ignora, na cabeça posta,
E, por ver sinais de outrem, suspeitando,
À mão pede socorro; ela, em resposta,
Procura, acha, um serviço assim rendendo,
A que a vista não pode ser disposta:
Assim, da destra os dedos estendendo,
Conheci que das letras, que o anjo abrira,
Stavam somente seis remanescendo.
Sorriu-se o Mestre, que o meu gesto vira.
CANTO XIII
[ Chegam os Poetas ao segundo compartimento, no qual estão os pecadores que expiam o pecado da inveja. Os invejosos têm os olhos cosidos com fio de arame. Entre eles está Sápia, senhora de Siena, com a qual Dante fala. ]
DA escada ao topo havíamos chegado,
Onde, outra vez cortado, o monte estreita,
Que alma sobe, expiando o seu pecado.
Como a primeira, outra cornija feita
Circundava a colina, só dif’rente
Em que a um arco menor ela se ajeita.
Relevo, formas, como a precedente,
Não mostra: e, lisa sobre a escarpa a entrada,
Lívida cor a pedra tem somente.
— “Se a presença de alguém fosse esperada,
Que nos preste conselho” — diz meu Guia —
“Temo que fique a escolha retardada.” —
Os olhos para o sol depois erguia,
E, sobre o pé direito se firmando,
Para a esquerda girava e se volvia.
— “Tu, de quem tudo fio, ó lume brando
No caminho conduz-nos que se of’rece
Como o exige o lugar” — disse — “guiando!
“Raiando, o teu calor o mundo aquece:
Se motivo não surge de embaraço,
De conduzir-nos teu fulgor não cesse!”
Vencido em breve tínhamos espaço,
Que por milha na terra calculamos,
Porque o desejo estimulava o passo:
Em direitura a nós voar julgamos
Invisíveis espíritos, chamando
De amor à mesa em lépidos reclamos.
A voz primeira que passou voando,
Vinum non habent proferiu sonora
E ainda muito além foi reiterando.
Mas antes de perder-se pelo ar fora,
Outra acercou-se. — “Orestes sou!” — dizia;
E apartou-se igualmente sem demora.
— “Que vozes estas são, Mestre?” — inquiria.
Mas, apenas falara, eis vem terceira.
— “Amai imigos vossos!” — eu lhe ouvia.
— “Pune este círc’lo a culpa traiçoeira” —
O Mestre diz — “da inveja; o açoite aplica
O amor, que os rigores lhe aligeira.
“Contrário som, porém, o freio indica.
Antes que atinjas do perdão a entrada,
Terás de ouvi-lo; e disto certo fica.
“Tem ora a vista para além fitada;
De espíritos, ao longo do alto muro,
Assentados verás soma avultada.” —
Mais que de antes então a vista apuro;
Almas distingo, que envolviam mantos,
Que a cor imitam do penhasco duro.
Um pouco avante ouvi de esp’ritos tantos
A voz bradar: — “Por nós orai, Maria,
Pedro, Miguel e todos os mais Santos!”
Na terra homem tão fero não seria,
Que não sentisse o coração pungido
Em vendo o que aos meus olhos se of’recia.
Acerquei-me por ser mais distinguido
De cada sombra o menear e o gesto:
Pelos olhos à dor alívio hei tido.
Então foi claramente manifesto
Que entre si, uns aos outros se arrimavam,
Todos à pedra, em seu cilício mesto.
Assim os pobres cegos mendigavam
Nos dias de Perdão da igreja à porta,
Mutuamente as cabeças encostavam;
Pois a piedade o coração nos corta,
Quando ao som das palavras se acrescenta
Da vista a ação que o peito desconforta
E como o sol aos cegos não se ostenta,
Assim também às sombras que alivia,
Não mais do céu a luz olhos alenta.
Fio de ferro as pálpebras prendia
A todas, como ao gavião selvage
Para domar-lhe a condição bravia.
Cuidei, se andasse, lhes fazer ultraje,
Lhes vendo as faces e ocultando a minha:
E o Mestre olhei em tácita linguage.
E o Mestre, bem sabendo o que convinha,
Antecipou-se logo ao meu desejo
E disse: — “Arguto sê, e fala asinha.” —
Virgílio caminhava neste ensejo
Do lado, onde à cornija falta amparo;
Dali cair se pode e o risco eu vejo.
As almas do outro lado eram; reparo
Que dos olhos a hórrida costura
Provoca pranto copioso e amaro.
Voltei-me e disse: — “Ó almas, que a ventura
De ver tereis ao certo o excelso Lume;
De que somente o vosso anelo cura,
“Dissolva a Graça em vós todo o negrume
Da consciência e nela manar faça
Da mente o rio em límpido corrume!
“Concedei-me o que mais me satisfaça:
Dizei-me qual de vós latina há sido;
De eu sabê-lo algum bem talvez lhe nasça.” —
— “Por pátria, irmão, só hemos conhecido
A cidade de Deus: dizer quiseste
Peregrina na Itália haja vivido.” —
De mim remota a voz parece deste,
Que assim disse; e portanto, passo avante
Por saber certo a quem atenção preste.
E uma senhora entre as mais vi, que, distante,
Aguardava-me. E como eu a distinguia?
Qual cego, alçava o mento pra diante.
— “Tu, que para subir penas” — dizia —
“Quem foste, onde nasceste diz: te imploro,
Se é tua voz que, há pouco, respondia.”
— “Fui de Siena” — tornou — “com este choro
Os graves erros de perversa vida,
E a Deus que se nos dê, clemente, exoro.
“Chamei-me Sápia, mas não fui sabida.
Mais deleite me deu o alheio dano
Do que a dita a mim própria concedida.
“E por que não presumas que te engano,
Se fui louca verás pelo que digo.
Já no declínio do viver humano
“Eu era, quando a rebater o inimigo
Em Colle os meus patrícios campearam;
A Deus roguei que lhes não fosse amigo.
“Destroçados, à fuga se lançaram,
E a mim, que estava aquele transe vendo,
Indizíveis prazeres me tornaram,
“Em modo, que atrevida, olhos erguendo,
— “Não mais Deus tenho!” — contra o céu gritava
Qual melro, instantes de bonança tendo.
“Com Deus quis paz, mas quando já tocava
Da vida o termo; e ainda não pudera
A dívida solver, que me onerava,
“Se Pedro Pettinanho não se houvera,
Nas santas operações de mim lembrado:
Em prol meu, caridade o comovera.
“Mas quem és, que nos tens interrogado,
Que estando, creio, de olhos não tolhidos
E respirando indagas nosso estado?” —
— “Olhos” — disse — “terei também cerzidos,
Porém por pouco tempo; que da inveja
No mundo hão sido rara vez torcidos,
“Maior receio o peito me dardeja
De outro tormento; e tanto me angustia,
Que o seu fardo a sentir cuido já steja.” —
— “Mas quem ao monte” — me tornou — “te guia,
Pois de voltar ao mundo tens certeza?” —
— “Quem tenho ao lado e voz não pronuncia.
“Inda vivo; e, pois fala com franqueza,
Alma eleita, se queres que os pés mova
Em prol teu lá na terra com presteza.” —
— “O que dizendo estás, cousa é tão nova
Que por mim rogues fervorosa peço,
Pois da divina dileção dás prova.
“E pelo que te merecer mais preço
Suplico-te: ao pisar terra toscana
Ao meu nome entre os meus aviva o apreço.
“Terás de vê-los entre a gente insana,
Que espera em Talamone, mas como antes,
Quando buscava as águas do Diana:
Mor engano há de ser dos almirantes.” —
CANTO XIV
[ Dante conversa com outras almas de invejosos. Respondendo o Poeta a uma pergunta de Rinieri de Calboli, intervém Guido del Duca, imprecando contra as cidades de Toscana e lamentando, depois, a degeneração das famílias nobres de Romanha. Os Poetas ouvem vozes que lembram episódios nos quais o pecado da inveja foi castigado. ]
“ESTE quem é ao nosso monte vindo,
Sem ter-lhe a morte as asas desatado,
Os olhos, quando quer, fechando e abrindo?” —
— “Ignoro; mas vem de outro acompanhado.
Tu, que és mais perto, a perguntar começa,
E, para nos falar, mostra-lhe agrado.” —
De dois esp’ritos junto se endereça
A mim desta arte a voz: stão-me a direita,
Cada um para trás alça a cabeça.
— “Ó alma” — disse-me uma — “que, na estreita
Prisão corpórea ainda, aos céus ascende,
Dá-nos consolo, à caridade afeita.
“Quem és e donde vens? Porque nos prende
Pasmo notando a Graça, que te ampara,
Portento que ninguém viu, nem compreende.” —
Tornei-lhe: — “Na Toscana se depara
Rio, que brota em Falterona escasso
E nunca, milhas cem correndo, pára:
“Este corpo dali conduzo lasso.
Dizer quem sou discurso vão seria:
Meu nome inda não soa em largo espaço.” —
— “Se bem te entendo” — assim me respondia
A sombra, que antes de outra eu tinha ouvido —
“Ao Arno o dizer teu se referia.” —
— “Por que” — lhe atalha a outra — “ele escondido
Nos tem do rio o nome verdadeiro?
Cousa horrível se encerra em seu sentido?” —
Disse-lhe a sombra, que falou primeiro:
— “Não sei; mas fora bem feliz o instante,
Em que o nome pereça ao vale inteiro:
“Dês que nasce lá onde é redundante
De águas a serra que o Peloro unira,
Noutras partes, porém, pouco abundante,
“Até que o mar do seu tributo aufira
Reparo ao que no seio o céu lhe suga,
E vida assim pra novos rios tira,
“Todos ali virtude hão posto em fuga,
Qual víbora inimiga, ou por efeito
Do clima, ou por moral, que o bem refuga.
“Natureza por vícios se há desfeito
Na gente desse vale impuro,
Como de Circe apascentada a jeito.
“Cava o rio primeiro o leito escuro
Entre porcos mais di’nos de bolota
Do que de cibo, em que haja humano apuro.
“Baixando, acha de gozos mó abjeta,
Em que o furor à força não se iguala,
E, como por desdém, busca outra meta.
“Essa maldita e desgraçada vala
Tantos mais cães em lobos vê tornados
Quanto mais corre e mais caudal resvala.
“Imerge em princípios mais rasgados,
Onde encontra raposas tão manhosas,
Que os laços mais sutis ficam frustrados.
“Do porvir direi cousas espantosas,
E quem me ouvir conserve na lembrança
Verdades que há de ver bem dolorosas.
“Teu neto os lobos a caçar se lança
Desse rio maldito sobre a riva:
Enquanto os não destroça não descansa.
“A carne sua vende, estando viva,
Como reses depois mata-os cruento;
Muitos da vida e a si da glória priva.
“Da triste selva sai sanguinolento
E a deixa, tal que ainda após mil anos
Tornar não há de ao primitivo assento.” —
Como, ao presságio de futuros danos,
Merencório se mostra o interessado,
Onde quer que a fortuna urda os enganos;
Assim o outro espírito: voltado
Para escutar se havendo, se entristece,
Depois que teve o sócio terminado.
Como saber seus nomes eu quisesse,
Ouvindo aquele, ao outro o gesto vendo,
A pergunta entre rogos se oferece.
O que falara respondeu dizendo:
“Pedes que eu, pronto, quanto anelas faça,
A instância minha em pouco apreço tendo.
“Mas como em ti de Deus transluz a Graça,
Não te há de ser Guido del Duca esquivo
Tanto, que o teu querer não satisfaça.
“Da inveja o fogo ardeu em mim tão vivo,
Que ao ver sorriso de outrem no semblante,
Em meu rosto o libor era expressivo.
“Semeei: colho o fruto repugnante.
Oh! por que, raça humana, o que repele
Qualquer partilha almejas ofegante?
“Este foi Rinieri: estava nele
Dos Calboli o primor: ao nome honrado
Herdeiro não deixou que a glória zele.
“Não só à prole sua tem faltado,
Entre o Pó e a montanha, o mar e o Reno
O bem para a verdade e o prazer dado;
“Pela extensa amplidão desse terreno
Alastram tudo abrolhos perigosos:
Quando extirpar se pode um tal veneno?
“Onde Mainardi e Lizio estão famosos?
Qual de Carpigna e Traversaro o fado?
Ó Romanhóis bastardos desbriosos!
“Quando um Fabro se tem nobilitado,
Como em Faenza um Fosco Bernardino,
Varas gentis de tronco definhado!
“O pranto meu não julgues pouco di’no,
Se com Guido de Prata rememoro
O companheiro nosso, Azzo Ugolino;
“Se Fred’rico Tignoso e a prole choro;
Solares de Anastagi e Traversara,
Sem herdeiros extintos, se eu deploro,
“Cavaleiros e damas, glória rara,
Que inspiravam amor e cortesia
Na terra, que a virtude desampara!
“Cai em ruínas, Brettinoro ímpia!
Em ti viver tua gente não quisera;
Com mais outras, temendo o mal, fugia.
“Bem faz Bagnacaval: prole não gera,
Castrocaro faz mal e pior Cônio
Que a tais condes da vida o lume dera.
“Os Pagani irão bem, quando o Demônio
Deixá-los; mais não podem nome puro
Já nunca possuir no solo ausônio.”
Ugolin Fantolin, ficou seguro
Da fama tua o lustre; pois já agora
Não terás filhos pra torná-lo escuro.
“Podes, Toscano, prosseguir embora:
Pranto, mais que discursos, me deleita;
Lembrando a pátria, o coração me chora.” —
O passo as almas na vereda estreita
Ouviam-nos, silêncio elas guardando.
Era a jornada com certeza feita.
Já ficaríamos sós, avante andando,
Eis brada voz nos ares de repente;
Veloz, qual raio, vinha a nós chamando:
— “Quem me encontrar me mate incontinênti” —
E fugiu qual trovão que distancia
Se o vento a nuvem rasga de repente.
O terrível clamor cessado havia,
Com medonho fracasso eis outra brada,
Como um trovão que a outro sucedia:
— “Aglauro sou, em rocha transformada” —
E a Virgílio acercar-me então querendo,
Dei, não avante, um passo atrás na estrada.
Tranqüilo o ar por toda parte vendo,
— “Este é” — falou-me o Mestre — “o duro freio,
Que os homens deve estar sempre contendo:
“Mas vós mordeis a isca em triste enleio
E o prístino inimigo do anzol tira:
De conter ou pungir que vale o meio?
“O céu vos chama, em torno de vós gira,
Esplendores eternos vos mostrando;
Mas a vista, enlevada, a terra mira,
“E quem vê tudo então vai castigando.” —
CANTO XV
[ Caindo a noite, os dois Poetas chegam ao terceiro compartimento. Aí Dante, em êxtase, vê exemplos de mansuetude e misericórdia. Voltando a si, encontra-se imerso num fumo que obscurece o ar e impede a visão. ]
QUANTO caminho faz da tércia hora,
No giro seu, a luminosa esfera,
— Sempre a mover-se qual criança — à aurora,
Tanto, para acabar o curso, espera
O sol, e para dar à tarde entrada:
Lá vésperas, aqui meia-noite era.
De luz me estava a face então banhada;
Porque, em torno à montanha prosseguindo,
Do ocaso em direção ia a jornada,
Quando, mais vivo resplendor fulgindo,
Ofuscado fiquei mais do que dantes:
Desse portento a ação pasmei sentindo.
Acima de meus olhos, por instantes,
As mãos alcei — sombreiro, que antepara
O mor excesso aos raios deslumbrantes.
Assim como de espelho ou linfa clara
Ressalta a luz de encontro à oposta parte,
Subindo logo após, como baixara;
Da linha vertical não se disparte,
Uma distância igual sempre mantendo,
Como nos mostra experiência e arte:
Em frente à luz, assim, se refrangendo,
Tão penetrante a vista me feria,
Que a dirigi a um lado, olhos volvendo.
“Qual é” — ao Mestre amado então dizia —
Aquele objeto, que me ofusca tanto
E ao nosso encontro, ao parecer, se envia?” —
— “Que inda te ofusque não te mova espanto
A celeste família” — me há tornado: —
“Falar-te vem um mensageiro santo.
“A veres com delícia aparelhado
Serás em breve um lume refulgente,
Quanto ser pode ao ente humano dado.” —
Acercados ao anjo, alegremente
Nos disse: — “Aqui passai, menos penosa
Subida nesta escada está patente.”
Andando, atrás cantar em voz donosa
Beati Misericordes nós ouvimos
E “Exulta na vitória gloriosa”,
Para cima, portanto, nós subimos;
E eu das vozes do Vate cogitava
Colher proveito, enquanto sós nos imos.
E, me voltando, assim lhe perguntava:
“O que Guido del Duca nos dizia,
Quando em bens não partíveis nos falava?” —
— “Do seu vício pior” — tornou — “sabia
Os danos; não se estranhe, se o acusando,
Do mal que fazer possa prevenia;
“Porque, do mundo os bens vós desejando,
A que partilha todo o apreço tira,
Arde a inveja, suspiros provocando.
Mas, se a esfera imortal vossa alma aspira,
Levantando-se o anelo àquela altura,
Esse temor no peito voz expira.
“Tanto mais lá cad’um goza ventura,
Quanto por muitos ela mais se estende,
Quanto mais caridade lá se apura.” —
— “O entendimento” — eu digo — “ora compreende
Menos do que antes de eu te haver falado;
À mente ora mor dúvida descende.
“Como um bem, que é de muitos partilhado,
A cada possessor dá mais riqueza
Do que se a posse fora apropriado?” —
— “Teu spírito” — replica — “na rudeza
Das cousas terreais stando imergido,
Vê trevas onde a luz tem mais clareza,
“Esse inefável bem, no céu fruído,
Infindo, para o amor, correndo desce,
Qual raio a corpo lúcido e polido.
“Se ardor acha mais vivo, mais se of’rece;
Quanto mais caridade está fulgindo,
Virtude eterna mais sobre ela cresce.
“Quanto mais vai a multidão subindo,
Mais amar podem, mais a amor se aplicam,
Bem como espelho, um no outro refletindo.
“Se persistindo as dúvidas te ficam,
Hás de ver Beatriz: da sábia mente
Razão escutarás, que tudo explicam.
“Para apagares, pois, sê diligente.
As chagas cinco, que inda em ti stou vendo:
Há de cerrá-las contrição pungente.” —
Quando eu ia dizer — Mestre, compreendo —
No círculo eis penetro imediato:
Calei-me, a vista alucinada tendo.
Julgava então, de uma visão no rapto,
Extático, que em templo se mostrava
Multidão grande, de oração no ato.
Com piedoso semblante, à entrada estava
Meiga matrona. — “Ó filho meu querido,
Por que assim procedeste?” — interrogava.
“Eu e teu pai, com ânimo dorido,
Te buscamos.” — E como se calara,
Logo a visão fugiu-me do sentido.
Depois de outra no rosto se depara
Pranto acerbo, que mágoas anuncia
De quem de ira no incêndio se inflamara.
“Se mandas na cidade” — assim dizia —
“Por cujo nome os deuses contenderam
E onde a luz da ciência se irradia,
“Pune os braços, que ímpios, se atreveram,
Pisístrato, a estreitar a filha tua!” —
Ele, a quem vozes tais não comoveram,
Tranqüilo respondia à esposa sua:
“O que faremos a quem mal nos queira,
Se ira ao amor corresponder tão crua?”
Vi depois multidão, que a raiva aceira:
A pedradas mancebo assassinava,
Bradando — morra! morra! — carniceira.
A dolorida fronte debruçava,
Já mal ferido, o mártir para a terra:
Portas ao céu os olhos seus tornava,
Pedindo a Deus, naquela horrível guerra,
Que aos seus perseguidores perdoasse:
Riso piedoso os olhos lhe descerra.
Quando em minha alma o êxtase desfaz-se,
Conheci que no sonho aparecia,
Não da ficção mas da verdade a face.
Virgílio, a quem talvez eu parecia
Homem, que o sono deixa de repente,
— “Por que estás vacilante?” — me inquiria.
“Tens meia légua andado certamente
Com titubante pé, de olhos caídos,
Como quem desse ao vinho ou sono a mente.” —
— “Vou expor, meu bom mestre, aos teus ouvidos” —
Tornei — “quanto os meus olhos contemplaram,
Quando os joelhos tinha enfraquecidos.”
— “Se másc’ras cento a face te ocultaram” —
Disse Virgílio — “ocultos não seriam
Pensamentos, que, há pouco, te enlevaram.
“As imagens, que hás visto, te induziam
Águas da paz a receber no peito,
Que as fontes perenais dos céus enviam.
“Não perguntara, como quem de feito
Somente vê por olhos, obcecados
Quando o corpo da morte jaz no leito;
“Mas por serem teus pés mais apressados:
Excitar assim cumpre os preguiçosos,
Que se esquivam à ação stando acordados.” —
Nas horas vespertinas pressurosos
Andávamos, os olhos alongando,
Do sol cadente aos raios luminosos,
Eis pouco a pouco, um fumo se elevando.
Se condensa ante nós, qual noite, escuro;
Abrigo ali de todo nos faltando,
A vista nos tolheu, tolhendo o ar puro.
CANTO XVI
[ Sempre ao lado de Virgílio, Dante continua a viagem. Denso fumo envolve os iracundos. Entre eles está Marco Lombardo, o qual lamenta os tempos, que eram bons e agora ficaram maus. Dante pergunta de que depende essa mutação, e Marco responde que a corrupção dos tempos novos procede do mau governo do mundo e especialmente da confusão entre o poder espiritual e o poder temporal. ]
SOMBRA de inferno e noite carregada,
Em que o céu de um só astro não se aclara,
De nuvens, quanto o pode ser, toldada,
Véu tão grosso ao meu rosto não lançara,
Nem, ao contacto, fora tão pungente,
Como o fumo, que ali nos rodeara.
Fechados tinha os olhos totalmente:
Fiel o sábio sócio, me acudindo,
Deu-me em seu ombro arrimo diligente.
Qual cego, que ao seu guia vai seguindo
Por se não transviar, correr perigo,
Ou sofrer morte, de encontrão caindo,
Tal eu por aquele ar escuro sigo,
Atento ao Mestre meu, que repetia:
— “Cuidado! Não te afastes! Vem comigo!” —
Então vozes ouvi; me parecia,
Que paz, misericórdia suplicavam
Ao Cordeiro, que as culpas alivia.
Por Agnus Dei suaves começavam,
A letra era uma só como a toada,
Consonância entre si todas as guardavam.
— “Por quem esta oração, que ouço, é cantada?” —
Perguntei. Disse o Mestre: — “É bom que o aprendas:
Assim da ira a culpa é mitigada.” —
— “Quem és para que a névoa nossa fendas
E assim fales, qual viva criatura,
Que inda o tempo calcula por calendas?” —
Disse uma voz do fundo na negrura.
E Virgílio falou: — “Responde e exora
Se por aqui se sobe para a altura.” —
— “Ó alma, que” — disse eu — “a graça implora
De ir a Quem te criou mais pura e bela,
Maravilha ouvirás, segue-me embora.” —
— “Até onde for dado” — tornou-me ela —
“Irei, e, se te ver não deixa o fumo,
Nos tornará propínquos a loquela.” —
— “Nas mantilhas, que a morte acaba, ao sumo
Assento” — comecei — “ora me alteio,
Do inferno tendo vindo pelo rumo.
“Se Deus permite, de bondade cheio,
Que a dita eu goze de lhe ver a corte
Por este, hoje de todo estranho, meio,
“Revela-me quem foste antes da morte
E qual nos deva ser a melhor via:
Guiarás nossos passos desta sorte.” —
— “Fui Lombardo e de Marco o nome havia;
O mundo exp’rimentei, feitos amando,
Pelos quais ninguém mais hoje porfia.
A subir bom caminho vais trilhando.” —
Falou-me assim e acrescentou: — “E rogo
Intercedas por mim, ao céu chegando.” —
— “Quanto me pedes” — lhe replico logo —
“Juro fazer, mas acho-me oprimido
Por dúvida a que anelo desafogo.
“Era simples; te ouvindo, tem subido
A duplo grau, e assim me torna certo
Do que hei aqui e noutra parte ouvido.
“O mundo de virtude está deserto;
Tens sobeja razão, quando o lamentas,
Impa de mal, de vícios é coberto.
Dize-me a causa, se na causa atentas?
Sabendo-a, aos outros revelá-la quero;
Virá do céu ou lá na terra a assentas?”
Suspiro em que se exprime dó sincero
Com hui, do peito exala. — “Irmão — prossegue —
Que o mundo é cego em ti bem considero.
“Vós, os vivos, julgais o céu entregue
De toda causa, a tudo assim movendo
Por necessária lei, que o mundo segue.
“Desta arte o livre arbítrio fenecendo,
Ao homem não coubera o que merece,
No bem prazer, no mal dor recebendo.
“Primeira inspiração aos atos desce
Do alto; a todos não; mas quando o diga,
No mal, no bem a luz não vos falece.
“Livre sendo o querer, quem se afadiga
E a primeira vitória do céu goza,
Vencerá tudo, se em querer prossiga.
“Natureza melhor, mais poderosa
Vos sujeita — a que cria e vos concede
Mente, que ao céu não prende-se humildosa.
“Se a causa, que do bom caminho arrede
O mundo em vós a tendes persistente;
Explorarei, fiel, o que sucede.
“Alma surge das mãos do Onipotente
Que, inda antes de nascida, lhe sorria
Qual menina, que ri, chora, inocente.
“Ingênua e simples, ela só sabia
De um Deus beni’no ser meiga feitura,
E a tudo, que a deleita, se volvia.
“Dos mais frívolos bens prende-a a doçura,
E, deles namorada, após lhes corre,
Se guia ou freio o amor lhe não segura.
“Nas leis consiste o freio, que a socorre;
Rei foi mister, que, ao menos, acertasse
Da cidade de Deus em ver a torre.
“Leis há, mas não quem leis executasse;
Rumina esse pastor que os mais precede,
Mas a unha fendida não lhe nasce.
“E vendo a grei que o próprio guia a excede
Em almejar os bens que mais deseja,
Nestes se engolfa e mais nem quer nem pede.
“Portanto, porque mau governo veja,
Fica o mundo de culpas inquinado,
Não porque em vós a corrupção esteja.
“Bens sobre o mundo havendo derramado,
Tinha Roma dois sóis, que alumiaram
O caminho de Deus e o do Estado.
“Um ao outro apagou, e se ajuntaram
Do Bispo o bago e do guerreiro a espada:
Por viva força unidos, mal andaram.
“Não mais se temem na junção forçada:
Vê a espiga que prova estes efeitos;
Pela semente é a planta avaliada.
“Valor e cortesia altos proveitos
Deram na terra que Ádige e Pó lavam,
Antes que visse de Fred’rico os feitos.
“Por ali os que outrora se pejavam
De entrar dos bons na prática e na liga,
Livres passam do quanto receavam.
“Só três velhos opõe a idade antiga,
Como censura, à nova: é-lhe já tardo
Que Deus os chame dessa terra imiga:
“Conrado de Palazzo, o bom Gherardo
E Guido de Castel, que foi chamado,
Ao estilo francês simples Lombardo.
“De Roma a Igreja fique proclamado,
Cai no ceno os poderes confundido,
Se enloda a si e o fardo seu pesado.”
— “Tuas sábias razões, Marcos, ouvindo,
Vejo” — disse — “por que a Lei da herança
Partiu, de Levi os filhos excluindo.
“Mas qual Gherardo trazes à lembrança,
Como glória e brasão da antiga gente,
Que censura a este séc’lo impuro lança?” —
— “Queres” — tornou — “tentar-me ou certamente
Iludir-me? Em toscano me falando
Do bom Gherardo dizes-te insciente?
“Sobrenome de todo lhe ignorando,
Dou-lhe o de Gaia, sua filha cara.
Guarde-vos Deus, que eu vou-me, vos deixando.
“Do fumo a densidão se torna rara,
Branqueja o dia: devo já partir-me,
Que a apresentar-se o anjo se prepara.” —
Assim falando, mais não quis ouvir-me.
CANTO XVII
[ Saindo do denso fumo, Dante, novamente em êxtase, vê exemplos de ira punida. Tornando a si, vê um anjo que está perto da escada do quarto compartimento. Os dois Poetas continuam a subir. Sobrevindo, porém, a noite, param e Virgílio explica ao discípulo que o amor é o princípio de todas as virtudes e de todos os vícios. ]
LEITOR, se lá na alpina cordilheira
Te colheu névoa, que de ver tolhia,
Como se olhos tivemos de toupeira,
Lembra que, quando a úmida e sombria
Cortina a delgaçar começa, a esfera
Do sol escassa luz ao ar envia.
E mal tua mente imaginar pudera
Como de novo à vista se mostrava
O sol, que ao seu poente descendera.
Ao lume, que nos planos se finava,
Do Mestre os passos fido acompanhando
Saí da cerração, que me cercava.
Fantasia que, o espírito enlevando,
Tanto o homem dominas, que não sente
Clangor de tubas mil, juntas soando,
O que te move, estando o siso ausente?
Luz que desce por si, no céu formada,
Ou por querer do céu onipotente.
Cuidei súbito ver a que mudada,
Dos crimes seus em pena, foi nessa ave,
Que em trinar mais se mostra deleitada.
Tanto minha alma, na visão suave,
Extática ficou, que não sentia
Outra impressão qualquer que a prenda e trave.
Naquele êxtase logo após eu via
Em cruz um homem de feroz semblante:
Nem a morte a arrogância lhe abatia:
Stava o grande Assuero não distante,
Ester, a esposa e Mardoqueu prudente,
Justo nos feitos, no dizer prestante.
E fugiu-me esta imagem prontamente,
Como a bolha, que de água se formara
E à falta de água esvai-se de repente.
Donzela eis na visão se me depara
Que em prantos exclamava: — “Ó mãe querida
Por que tomaste irosa a morte amara?
“Perdes, por não perder Lavínia, a vida
E perdida me tens: teu fim deplora,
Mas não o de outro, a filha dolorida.” —
Como se rompe o sono, se de fora
Luz repentina às pálpebras nos desce;
Não morre logo, em luta se demora:
Minha visão assim se desvanece,
Quando as faces clarão tão vivo lava,
Que na terra outro igual nunca esclarece.
Volvi-me para ver onde me achava;
Mas, ouvindo uma voz — “Sobe esta escada” —
De qualquer outro intento me apartava.
Por saber quem falara foi tomada
Minha alma de um desejo tão veemente,
Que fora, se o não viesse, conturbada.
Como ao sol, que deslumbra em dia ardente,
Sendo-lhe véu seu lume flamejante,
Senti perdida a força incontinênti.
— “Espírito é celeste: vigilante
Sem rogos, o caminho nos indica:
O próprio brilho esconde-o fulgurante.
“Como o homem consigo, assim pratica;
Quem, mal extremo vendo, só rogado
Acode, esquivo ser já significa.
“A tal convite o pé seja apressado!
Antes da noite rápidos subamos;
Depois somente quando o sol for nado.” —
Disse o meu Guia; e logo encaminhamos
Os passos, de uma escada em direitura.
Ao primeiro degrau quando chegamos
Mover de asas ao perto se afigura,
Bafejo sinto; e ouço: — “É venturoso
Quem ama a paz, isento de ira impura!” —
No alto já do céu o luminoso
Rasto, da noite precursor, surgira,
De astros assoma o exército formoso.
— “Ai de mim! Por que a força minha expira?”
Disse, entre mim, sentindo que, esgotada,
Súbito às pernas o vigor fugira.
Tendo alcançado o topo já da escada,
Imóveis nos quedamos, imitando
A nau, que aferra a praia desejada.
A escutar stive um pouco, interrogando
Daquele novo círc’lo algum sonido;
Depois ao Mestre me voltei falando:
— “No lugar em que estamos, pai querido,
Que pecado recebe a pena sua?
Parando os pés, teu verbo seja ouvido.”
Tornou-me: — “Se do bem o amor recua
No seu dever, aqui se retempera;
Sobre o remisso a expiação atua.
“Por melhor compreenderes, considera
No que digo: a detença, porventura,
Dará o fruto, que tua mente espera.
“Ao Criador, meu filho, e à criatura
Nunca falece amor — tens já sabido —
Ou venha da alma ou venha da natura.
“O amor natural de erro é despido;
Pode pecar o outro pelo objeto,
Por nímio ardor, por star arrefecido.
“Quando aos bens principais ele é direto
E nos bens secundários moderado,
Causar não pode criminoso afeto.
“Se ao mal, porém, se torce ou, desregrado,
De menos ou de mais ao bem se move,
Ofende ao Criador quem foi criado.
“Tens, pois, o necessário, que te prove
Que amor em vós semente é de virtude,
Como é dos feitos, que o céu mais reprove.
“E como o amor o bem somente estude
Do seu sujeito, quando o amor domina,
Não pode ser que em ódio a si se mude.
“E porque nenhum ente se imagina
Sem ter no que criou a causa sua,
Ódio em nenhum contra este se origina:
“Contra o próximo é, pois, que se insinua
Do mal o amor, pecaminoso.
No humano limo em modos três atua.
“Qual, da grandeza, e glória cobiçoso,
As espera em ruína de outro, e anela
Vê-lo em terra prostrado e desditoso;
“Qual, temor de perder, triste, revela
Valia, honra e poder, se outro os partilha
E em querer-lhe o contrário se desvela;
“Mágoa sentindo de uma injúria filha,
Qual porfia em vingar-se, e, de ira ardendo,
De mal fazer os meios esmerilha.
“Do mal este amor tríplice nascendo,
Lá embaixo se expia; mas atende
Ao que vai desregrado, ao bem correndo.
“Confusamente cada qual se acende
Por certo bem e sôfrego o deseja:
Por ter-lhe a posse, afana-se e contende.
“O que do bem no amor inerte seja
Depois que do pesar sofrerá agrura,
É justo que em martírio aqui se veja.
“Há outro bem; não dá, porém, ventura.
Felicidade não é, não é a essência
De todo o bem, o fruto, a raiz pura.
“O amor, que a tal bem vota a existência,
Acima em círc’los três há seu tormento:
Por que assim se divide, a inteligência,
Sem te eu dizer, dar-te-á conhecimento.” —
CANTO XVIII
[ Virgílio continua a falar sobre o amor. No entanto as almas dos preguiçosos vão passando diante dos Poetas, lembrando exemplos da virtude contrária à preguiça, e, depois, de punição da preguiça. Uma das almas dá-se a conhecer a Dante. É o abade de S. Zeno, em Verona. Dante cai em profundo sono. ]
PALAVRAS tais já proferido havia
O Vate excelso e, atento, me observava
Por ver se eu satisfeito parecia;
E eu, em maior sede me inflamava,
Calando-me, entre mim dizia: “O excesso,
Que nas perguntas há, talvez o agrava.” —
Mas o sincero pai, sempre indefeso,
Meu silêncio notando e o que o motiva
Logo animou-me a lho fazer expresso.
— “Minha vista” — falei — “tanto se aviva
À luz do verbo teu, Mestre, que ao claro
Vejo o que da razão tua deriva.
— “Rogo-te, pois, ó pai beni’no e caro,
Me ensines esse amor, de que descende
Todo o mal, todo o bem ao mundo ignaro.” —
— “Volve a mim” — disse — “a luz, que mais se acende
No espírito e há de ser-te bem patente
Quanto erra o cego que guiar pretende.
“Alma criada para amar ardente,
A tudo corre, que lhe dá contento,
Se despertada do prazer se sente.
“Do que é real o vosso entendimento
Colhe imagens que em modo tal desprega,
Que alma pra elas sente atraimento.
“Se alma, enlevada, ao seu pendor se entrega,
Esse efeito é amor, própria natura,
Em que o prazer novo liame emprega.
“E, como o fogo se ala para a altura
Por sua forma, que a elevar-se tende
Ao foco, onde o elemento seu mais dura,
Assim pelo desejo a alma se acende,
Ação esp’ritual que não se aquieta,
Se não consegue a posse, que pretende.
“Vê, pois, que da verdade excede a meta
Quem acredita e aos outros assevera
Que todo o amor de si é cousa reta.
“Em gênero talvez se considera
O amor sempre bom; mas todo selo
É bom, inda que seja boa a cera?
— “Se, te ouvindo” — tornei — “com mor desvelo
Do que ser pode o amor fico inteirado,
Dúvidas hei, que esclarecer anelo.
“Pois que amor é de fora derivado,
Pois que a alma de outra sorte não procede,
No bem, no mal o mérito é frustrado.” —
— “Dizer-te posso o que a razão concede” —
Tornou — “do mais a Beatriz somente,
Por ser ato de fé, solução pede.
“Forma substancial, não depende
Da matéria, porém com ela unida,
Specífica virtude tem latente.
“Só, quando atua, pode ser sentida;
Denúncia do que seja dá no efeito,
Como em planta a verdura indica a vida.
“Das primeiras noções onde o conceito
Nasceu? Donde apetites vêm primeiros,
A que o homem no mundo está sujeito?
“Como o instinto do mel na abelha, inteiros
Em vós estão, louvor não merecendo,
Nem censura também, ínscios obreiros.
“Tudo desses pendores dependendo,
Inata a faculdade é que aconselha,
A porta do consenso em guarda tendo.
“Em tal princípio a causa se aparelha,
De que procede em vós merecimento:
Repele o mau amor, no bom se espelha.
“Os sábios, estudando o fundamento
Das cousas, vendo inata a liberdade,
Da moral vos tem dado o ensinamento.
“E, supondo que por necessidade
Nascesse todo o amor, que vos incende,
Tendes para contê-lo potestade.
“Nobre virtude ser Beatriz entende
O livre arbítrio; e, quando lhe falares,
A isto mesma a memória atento prende.” —
Como alcanzia a flamejar nos ares,
A lua à meia-noite, já tardia,
Escurecia os outros luminares;
E, contra o céu, caminho percorria,
Por onde o sol vai pôr-se, quando a Roma,
Entre Sardenha e Córsega, alumia.
Havia a sombra ilustre, por quem toma
A fama Ande à cidade mantuana,
Do peso meu aliviado a soma:
Quando eu, que explicação lúcida e plana
Sobre as minhas questões tinha alcançado,
Sinto que a mente sonolência empana.
Desse quebranto súbito arrancado
Por turba fui, que, após se encaminhando,
A nós vinha com passo acelerado.
E como o Ismeno e Asopo, outrora, em bando,
Correr viam Tebanos ofegantes,
Por noite Baco em alta voz cantando,
A multidão, assim, dos caminhantes,
De bom querer e justo amor tocados
Pelo círc’lo apressavam-se anelantes.
E, pois, tinham-se em breve apropinquado;
Na carreira chorando afadigosa,
Assim gritavam dois mais avançados:
— “Maria corre ao monte pressurosa;
César rende Marselha, e contra Ilerda
Rápido voa à Espanha revoltosa. —
— “Pressa; pressa! De tempo já sem perda!
Pouco zelo não haja!” — outros clamaram —
“Não refloresce a Graça nalma lerda!” —
— “Vós, em que tais fervores se deparam,
Que talvez negligência ides remindo
Dos tempos, que no bem não se empregaram,
“Dizei a um vivo (estais verdade ouvindo),
Que partir-se pretende à nova aurora.
Se é perto a entrada, donde vá subindo.”
A voz do Mestre meu desta arte exora.
Dos espíritos um lhe respondia:
— “Vem conosco: não longe ela demora.
“Anelo de ir avante nos desvia
De detença: perdoa, por bondade,
Se há, cumprindo um dever, descortesia.
“De S. Zeno em Verona fui abade
De Barba-roxa, o bom, sob o reinado
De quem Milão se lembra sem saudade.
“Alguém que à sepultura está curvado
Há de em breve chorar esse mosteiro
E o poder, com que o tinha dominado;
“Pois, em dano ao pastor seu verdadeiro,
Ao filho mal nascido, o cometera,
No corpo horrendo, na maldade useiro.”
Não sei se inda falou, se emudecera,
De nós já velozmente se alongara,
Mas ouvi-lo e notá-lo me aprazara.
Então disse-me quem me guia e ampara:
— “Volve-te, atenta nestes dois: correndo
Nos lentos mordem com censura amara.” —
— “Avante!” — os dois no couce vêm dizendo —
Os que se abrir o mar viram, morreram,
A herança do Jordão não recebendo,
“E os que o filho de Anquises não quiseram
Seguir até seu fim nas árdua jornada
Fama e glória por gosto seu perderam.” —
Depois, daquela grei stando afastada
Tanto, que eu divisá-la não podia,
De nova idéia a mente foi tomada,
Outras surgindo após de romaria;
E tanto de uma em outra vagueava.
Que pouco a pouco o sono me invadia,
E o pensamento em sonho se mudava.
CANTO XIX
[ No sono, Dante tem uma visão misteriosa. Acordando, conta-a a Virgílio, o qual a explica. Sobem, depois, os Poetas ao quinto compartimento, no qual se purificam os avarentos, debruçados no chão. Entre eles está o papa Adriano V, Ottobuono de Fieschi, que lhe pede que a recomende à sua sobrinha Alagia. ]
CHEGADA essa hora, em que o calor diurno
Não mais da lua a frigidez aquece,
Pela terra vencido ou por Saturno,
Quando ao geomante fúlgida aparece
A Fortuna Maior lá no Oriente,
Donde rápida a noite se esvaece,
Sonhando vi mulher balbuciente,
Que vesga era nos olhos, nos pés torta,
De mãos truncadas e de tez palente.
Eu a encarava; e como o sol conforta
Os membros a que a noite o frio agrava,
Ao meu olhar assim a quase morta
Língua movia; o corpo já se alçava,
E no terreno e lívido semblante
A cor, que amor estima, se mostrava.
Soltando a voz, há pouco titubante,
Doce canto entoava tão donosa,
Que me absorvia o enlevo inebriante.
— “Sereia sou” — cantava — “deleitosa,
Que da rota desvia os mareantes,
Tanto prazer lhes movo poderosa.
“Detiveram meus cantos fascinantes
Ulisses vago; e raros me deixaram,
A todos prende o som dos meus descantes.” —
Junto a mim, mal seus lábios se fecharam,
Eis se mostrava dama santa e presta:
A sereia os seus olhos conturbaram.
— “Dize, ó Virgílio: que mulher é esta?” —
Bradava irosa; e o Vate lhe acorria.
Respeitoso ante aquela face honesta.
Dela a dama travava e prosseguia,
Seus véus rasgava, o ventre desnudando:
Desperto ao cheiro infando que saía.
Olhos abri. Virgílio, me falando:
— “Três vezes te chamei” — disse — “eia! asinha
Vamos, o passo onde entres, procurando.” —
Ergui-me logo. Alumiados tinha
O dia os círculos todos do alto monte;
Pelas costas surgindo o sol nos vinha.
Após o Mestre se me inclina a fronte,
Como a quem, de cuidados oprimido,
Curva a cerviz, semelha arco de ponte,
— “Aqui se passa: vinde!” — proferido
Foi por voz tão suave, tão beni’na,
Que não fora igual som na terra ouvido.
Da rocha entre os dois muros nos desi’na
Quem falara, o caminho, asas abrindo,
Que tem do cisne a alvura purpurina.
Depois as níveas plumas sacudindo,
— “Os que choram” — bradou — “são venturosos
De consolo a esperança possuindo!” —
— “Por que os olhos no chão fitas cuidosos?” —
O Mestre perguntou, depois que alçou-se
Voando o anjo aos ares luminosos.
— “Em recente visão, Senhor, mostrou-se
Imagem” — respondi — “que tanto instiga
Que inda a sua impressão não mitigou-se.” —
— “A mágica” — me disse — “viste antiga,
Que lá mais alto tanta dor motiva?
Como o homem viste dela se desliga?
“Não mais! Avante segue, o alento aviva!
Olhos volve ao reclamo, com que gira
Do Rei Eterno cada esfera altiva.” —
Como faz o falcão, que os pés remira,
Depois ao grito acode e, acelerado,
Contra a ralé, que avista, ao ar se atira:
Assim eu; e por onde era cortado,
Para trânsito dar ao monte erguido,
Corri té outro círculo, apressado.
Tendo ao círculo quinto já subido,
Jazer vi turba inúmera em lamento:
Para baixo era o rosto seu volvido.
“Adhaesit anima mea pavimento” —
Com tanta dor diziam suspirando,
Que da voz mal caí no entendimento.
— “Dizei, de Deus eleitos, que, penando,
Colheis alívio na justiça e esp’rança,
Por onde ao cimo iremos caminhando.” —
— “Se a nossa punição não vos alcança
E mais pronta quereis ter a subida,
À direita e por fora que se avança.” —
Do meu Guia a pergunta respondida
Foi por uma alma, que adiante estava:
Ser outra idéia eu cri nisso escondida.
Então, olhos voltando, interrogava
Virgílio, que aprovou com ledo gesto
O desejo, que o rosto denotava.
Da permissão do Mestre usando presto,
Daquele ente acerquei-me doloroso,
Que se fez por palavras manifesto.
— “Tu, que, expiando as culpas lacrimoso,
Apressas de te erguer à glória o dia,
Por mim pára em teu pranto fervoroso.
“Quem foste? Por que assim jazeis?” — dizia
“No mundo, donde venho vivo, impetre
Por teu bem querer cousa da valia?” —
— “Convém que o teu espírito penetre
Desta pena a razão; porém primeiro
Scias quod ego fui sucessor Petri.
“Do meu solar o título altaneiro
Origem teve nesse rio belo,
Que entre Chiaveri e Siestre flui ligeiro
“Em pouco mais de um mês vi que desvelo
Custa guardar o grande manto puro:
Todo outro fardo é pluma em paralelo.
“Quanto — ai de mim! — de converter fui duro!
Mas, apenas Pastor em Roma eleito,
Eu soube quanto mente o mundo impuro.
“Não gozou paz, nem quietação meu peito;
Mais alto já subir se não pudera:
Então da vida eterna ardi no afeito.
“Minha alma, triste e mísera, perdera
De Deus o amor em sórdida avareza:
Esta pena, que vês, bem merecera
“De tal pecado mostra-se a graveza
Aqui pelo castigo, em que se expia:
No monte outro não há de mor asp’reza.
“Como ao céu nossa vista não se erguia,
Nas cousas terreais embevecida,
Assim justiça à terra a prende e lia.
“Como a avareza em nós tinha extinguida
A propensão ao bem, aos santos feitos,
Assim nos tem justiça a ação tolhida.
“Pés e mãos ata em vínculos estreitos:
Enquanto a Deus prouver, nós, estendidos,
Imóveis estaremos nesses leitos.” —
De joelhos e de olhos abatidos
Quis falar-lhe; mas ele, conhecendo
Esse meu ato só pelos ouvidos,
— “Por que te curvas?” — me atalhou dizendo.
— “Em reverência à vossa dignidade:
Cumpro um dever dessa arte procedendo.” —
— “Ergue-te, irmão! Não erres! Em verdade,
Eu como tu, e o universo inteiro
A lei seguimos de uma só vontade.
“Do Evangelho o sentido verdadeiro
Que disse — neque nubente — se entendeste,
Verás o meu pensar quanto é certeiro.
“Vai-te agora, demais te detiveste.
Saudável pranto empece a tua estada:
Perdão apressam lágrimas, disseste.
“Sobrinha tenho, Alagia foi chamada:
É boa, se da raça tão funesta
Não pervertê-la a tradição danada.
Somente esta no mundo ora me resta.” —
CANTO XX
[ Os dois poetas ouvem uma alma recordar exemplos de pobreza honesta e da generosidade benfazeja. É Hugo Capeto, fundador da casa dos reis da França, o qual censura asperamente os seus descendentes. Ouve-se, no entanto, tremer o monte e cantar “Gloria in excelsis Deo.” ]
EM luta, o bem querer ao mau se alteia.
Por contentar essa alma, eu, descontente,
Da água tirei a esponja, inda cheia.
Sigo os passos do guia diligente,
Do monte à extrema borda caminhando,
Como em muro entre ameias, cautamente.
O espaço mais largo enchia o bando,
Que a avareza, do mundo atroz imiga,
Expurga, pranto em fio derramando.
Maldita sempre seja, Loba antiga,
Mais do que as outras feras cobiçosas!
Jamais a fome tua se mitiga!
Ó céu, cuja carreira portentosa
As condições se crê reger da vida,
Quando virá quem lance a besta ascosa?
A passo lento e escasso era a subida,
Atento eu indo à turba, que exprimia
Por carpir lamentoso a dor sentida.
Eis ante nós dizer: — “Doce Maria!” —
Uma voz escutei no amargo pranto,
Qual mulher que no parto a dor crucia.
Acrescentou: — “Bem pobre foste e tanto,
Que à luz trouxeste lá no humilde hospício
Do seio virginal o fruto santo.” —
E logo após ainda: — “Ó bom Fabrício,
Com virtude antes pobre ser quiseste
Do que a opulência possuir com vício.” —
De tal prazer meu coração se veste
Ouvindo, que avançava pressuroso
Por que ao perto, maior atenção preste.
Também contava esse ato generoso,
Que em prol das virgens Nicolau fizera
Para guardar-lhes puro o estado honroso.
— “Alma, que tão bem falas, diz sincera,
Quem foste?” — lhe disse eu — “Por que somente
A tua voz a virtude aqui venera?
“Se eu à vida tornar, que brevemente
Levar-me deve ao suspirado porto,
Em te ser grato ficarei contente.” —
E ele: — “Falarei, não por conforto
Lá do mundo esperar, mas porque tanta
Graça refulge em ti antes de morto.
“Estirpe fui dessa maligna planta
Que o solo esteriliza à cristandade:
Se frutos bons produz, fato é que espanta.
“A vingança, se houvessem faculdade,
Lilla, Bruges, Conai, Grandja tomaram;
Férvido a peço à Suma Potestade.
“Na terra Hugo Capeto me chamaram:
Dos Filipes fui tronco e dos Luíses,
Que novamente a França dominaram.
“Foi meu pai carniceiro. Os infelizes
Antigos Reis progênie não deixando,
Exceto um monge, às minhas mãos felizes,
“Parar daquele reino veio o mando.
Tanto prestígio tinha, tal pujança
Dos povos na vontade fui ganhando,
“Que a c’roa o meu querer cingir alcança
Do filho meu à fronte, em que começa
A prole ungida desses Reis de França.
“O provençal grã dote havendo, cessa
Na raça minha a prístina vergonha:
Somenos, mas aos bons não fora avessa.
“Rapinas pela força e ardis, que sonha
Começando, invadiu por penitência
Pontois, Normandia com Gasconha.
“Carlos, Itália entrando, em penitência
Vitimou Conradino; e triunfante
Ao céu mandou Tomás, por penitência.
“Em tempo, do presente não distante,
Inda outro Carlos vir de França vejo
E fama a si e aos seus dar mais sonante.
“Sai sem armas; traz só naquele ensejo
Lança de Judas, que a Florença aponta:
Rasga-lhe o peito, como é seu desejo.
“Terás não terras, mas pecado e afronta,
Que se lhe há de tornar tanto mais grave,
Quanto ele a tem de pouco preço em conta.
“Outro, que preso sai da própria nave,
Vejo a filha vender, como fizera
Aos escravos pirata: ó pai suave!
“Avareza! o que mais de ti se espera,
Se o meu sangue a tal raiva hás arrastado,
Que te deu sua carne em pasto, ó fera?
“Para o mal igualar, porvir, passado,
Entrando Alagni flor-de-lis se ostenta,
E Cristo em seu Vigário é cativado.
“Injúrias vejo novas que exp’rimenta,
Fel, vinagre sorver o vejo ainda
E entre vivos ladrões ter morte lenta.
“Vejo o novo Pilatos, que, não finda
A sanha sua, sem decreto assalta
O Templo aceso na cobiça infinda.
“Senhor meu! Pois que excesso nenhum falta,
Quando ante a punição serei ditoso,
Que oculta, o teu juízo adoça e exalta?
“Quanto ao que me inquiriste curioso,
As palavras, que, há pouco, eu dirigia
Do Spírito Santo à Esposa fervoroso,
“São nossas orações enquanto é dia.
Mas contrários exemplos invocamos,
Quando a sombra da noite principia.
“Então Pigmalião nós recordamos
Que foi traidor, ladrão e parricida
A sua sede de ouro condenamos.
“E a miserável condição de Mida,
Do rogo seu estulto resultado,
Sempre do mundo inteiro escarnecida.
“De Acam o louco feito é memorado.
Que os despojos roubara, e ainda a ira
De Josué receia amendrontado.
“Com seu marido acusa-se Safira
E louva-se o mau fim de Heliodoro.
Por todo o monte imenso brado gira
“Contra o que tirou vida a Polidoro.
— Dize do ouro o sabor, Crasso avarento! —
Também clamamos todo nós em coro.
“Qual murmura, qual grita em seu lamento,
Segundo o afeto que o estimula e agita,
Segundo é fraco ou forte o sentimento.
“Eu único não era, pois, que em grita
O bem, que ao dia é próprio ia dizendo:
Não alçava outro perto a voz bendita.” —
Essa alma já deixáramos, fazendo
Esforço por vencer a altura ingente,
Que adiante se estava oferecendo,
Eis tremer sinto o monte de repente.
O coração no peito se me esfria,
Qual réu, que à morte arrasta-se palente.
Delos, por certo, assim não se movia,
Quando por ninho a preferiu Latona,
Que os dois olhos do céu parir queria.
De toda parte um brado então ressona
Tanto, que o Mestre, para mim voltando,
— “Não há risco” — me diz — “teu Guia o abona!”
Gloria in excelsis Deo — era entoado,
Quanto a voz perceber foi permitido
Do ponto, a que o rumor me foi levado.
Quedos, como os pastores tendo ouvido
À vez primeira outrora aquele canto,
Ficamos té findar moto e soído.
Depois seguimos no caminho santo,
Vendo as almas prostradas sobre a terra,
Sempre a verter o costumado pranto.
E se a memória nisto em mim não erra,
Jamais desejo, que a ignorância acende,
Na mente me excitara tanta guerra,
Quanto naquele instante em mim contende.
Nem pela pressa, eu perguntar ousava,
Nem o que ouvia o espírito compreende.
Tímido assim e pensativo andava.
CANTO XXI
[ Enquanto os dois Poetas continuam no seu caminho, uma alma se aproxima deles. É o poeta latino Estácio, o qual explica que o abalo do monte que se deu pouco antes foi o sinal de que, purificado dos seus pecados, ele pode subir ao Céu. Sabendo que está falando com Virgílio, Estácio demonstra-lhe o seu afeto. ]
A SEDE natural, que não sacia
Senão a água, que, súplice, implorava
Ao senhor a mulher de Samaria,
Molestando-me, os passos me apressava
Após meu Guia na impedida estrada,
E do justo castigo o dó me entrava.
Eis, como escreve Lucas na sagrada
História que Jesus aparecera,
Ressurgido, aos dois sócios na jornada,
Uma sombra surgiu; trás nós viera.
Andando aquela turba contemplava:
Dela fé nem o Mestre, nem eu dera.
— “Deus vos dê paz, irmãos!” — assim falava.
Voltamo-nos de súbito, e Virgílio,
Cortês no gesto, a saudação tornava
Logo dizendo: — “Do feliz concílio
Te receba na paz a santa corte,
Que a mim me desterrou no eterno exílio!”
— “Como andais” — respondeu — “com passo forte.
Se Deus no céu vos não permite a entrada?
Quem vos conduz na altura desta sorte?” —
— “Os sinais de que a fronte está marcada
Deste homem por um anjo” — diz meu Guia —
“To mostram di’no da eternal morada,
“Mas, como aquela, que, incessante fia,
Não lhe havia inda a estriga consumido,
Que impõe Cloto ao que a vida principia,
“Subir só não teria ao céu podido
A sua alma, irmã tua, como é minha,
Pois não há, como nós, ver conseguido.
“Do inferno às fauces fui tirado asinha
Para guiá-lo, e o guiarei contente
No que do meu saber não passe a linha.
“Se puderes, me diz, por que o eminente
Monte, há pouco, tremeu, e desde a c’roa
À base retumbou clamor ingente.” —
A pergunta ao desejo tão boa soa,
Que ouvi-la a sede ardente me alivia,
Somente uma esperança mitigou-a.
— “Quanto hás notado” — a sombra respondia —
“Em nada os ritos da montanha altera:
De estranheza motivo não seria.
“Mudança aqui supor se não pudera:
Subindo ao céu quem pertencer-lhe deve,
A causa dá-se que esse efeito opera.
“Nunca saraiva, chuva, orvalho ou neve
Nesta montanha cai, passando a altura
Dos três degraus que estão na escada breve.
“Aqui não vê-se nuvem clara ou escura,
Relâmpago não luz, nem de Taumante
Mostra-se a filha, que tão pouco dura.
“Jamais daqueles três degraus avante,
Em que de Pedro o sucessor domina,
Seco vapor se eleva um só instante.
“Tremor talvez a sua base inclina;
Mas não atua no alto oculto vento,
Que não sei como dentro se amotina.
“Quando já de estar puro o sentimento
Uma alma tem e se ala ao céu, que a chama,
Segue o tremor e o grito ao movimento.
“Seu querer a pureza lhe proclama,
Prova que tem de alçar-se a liberdade
Por força do desejo, em que se inflama.
“Antes o tem; mas contra essa vontade
A divina justiça ardor lhe inspira
Por pena, como o teve por maldade.
“Eu que em martírio decorridos vira
Anos quinhentos, à melhor morada,
Momentos poucos há, pus livre a mira.
“Eis do tremor a causa declarada!
Do Senhor eis por que, louvor cantando,
Rogou cada alma em breve ser chamada!” —
Calou-se. E como, a tanto mais gozando
Está quem bebe, quanto é mor a sede,
Indizível prazer tive escutando.
— “Vejo” — disse Virgílio — “agora a rede,
Que vos prende e depois dá liberdade,
Donde o tremor e o júbilo procede.
“Explicar-me te praza ainda, em verdade,
Quem tu foste e a razão por que hás jazido
Séc’los tantos em tanta asperidade.” —
— “No tempo em que o bom Tito, protegido
Por Deus, vingou as chagas que verteram
Sangue, por Judas” — replicou — “vendido,
“Na terra o nobre título me deram,
Que mais honra perdura, e fui famoso:
Inda os lumes da fé me não vieram.
“Dos meus cantos o som foi tão donoso,
Que de Tolosa a si me atraiu Roma:
C’roas me deu de mirto glorioso.
“De Estácio o nome ainda o tempo doma;
Tebas cantei e Aquiles esforçado:
Este das forças me exauriu a soma.
“Do vivo ardor, que a mente me há tomado,
Na flama divinal a causa estava,
Que em milhares de engenhos há brilhado.
“Mãe e nutriz a Eneida me alentava;
Estro bebi caudal no seio puro;
Quanto vali da Eneida derivava.
“Para viver no tempo (te asseguro)
Em que existiu Virgílio, mais um ano
Passara no, que deixo, exílio duro.” —
Estas vozes ouvindo, o Mantuano
Olhou-me. — Cala-te! — sem falar dizia;
Mas a vontade está sujeita a engano.
Ou no pranto ou no riso se anuncia
Tão rápida a paixão, quando se acende,
Que o querer nos sinceros prende e lia.
Sorri-me, como que sagaz, compreende.
Calou-se o esp’rito; e me encarava atento
Nos olhos onde a mente mais se entende.
— “Sejas” — disse — “feliz no excelso intento!
Explica-me, porém, por que em teu rosto
Lampejar vi sorriso de momento.” —
Entre os extremos dois estava eu posto:
Um diz — silêncio! — outro a falar me instiga.
Suspiro, e o Mestre atenta em meu desgosto.
Responde, que ao silêncio nada obriga,
“Fique” — disse — “a verdade bem patente,
O que anela saber ele consiga.” —
— “Maravilha causou provavelmente” —
Tornei-lhe — “antigo espírito, o meu riso;
Maior será me ouvindo, certamente.
“Virgílio é quem me guia ao Paraíso:
Para deuses e heróis cantar tiveste
Por ele o esforço que lhe foi preciso.
“Se outra causa em meu riso supuseste,
Te enganaste: o motivo declarado
Nas palavras está que lhe disseste.” —
Quer os pés abraçar do Mestre amado,
E o Mestre: — “Irmão, que fazes?” — lhe dizia —
“Vê que és sombra e de sombra estás ao lado!”
Erguendo-se ele: — “Tanto me extasia
O amor” — disse — “em que por ti me acendo,
Que da nossa vaidade me esquecia,
Tratar sombras, quais corpos, pretendendo.” —
CANTO XXII
[ Subindo ao sexto compartimento, Estácio diz a Virgílio que, não pelo pecado da avareza, mas pela sua prodigalidade, teve de ficar muito tempo no quinto compartimento; e, por não ter declarado publicamente a sua conversão ao cristianismo, precisou ficar muito tempo no quarto compartimento. Virgílio o informa a respeito de muitos ilustres personagens da antigüidade que estão no Limbo. Chegando os Poetas no sexto compartimento, encontram uma árvore cheia de pomos perfumados, da qual saem vozes que louvam a virtude da temperança. ]
O ANJO atrás já tínhamos deixado,
Que para o sexto círc’lo nos guiava,
Um P na fronte havendo-me apagado.
E à turba, que a justiça desejava,
Tinha dito Beati docemente
Com sitio e, após tais vozes, se calava.
Mais que em toda a jornada antecedente
Eu, ligeiro, seguia sem fadiga
Os Vates, que subiam velozmente.
— “Aquele amor, com que virtude instiga,
Reproduz” — disse o Mestre — “a própria chama
Mostras de si apenas dar consiga.
“Dês que, da vida terminada a trama,
Do inferno ao limbo, Juvenal descendo,
Saber me fez o afeto, que te inflama,
“Tão vivo bem-querer sabe te rendo,
Quanto haver pode a incógnita pessoa,
Contigo ora suave andar me sendo.
“Mas dize (e como amigo me perdoa,
Se em falar há nímia confiança
E em prática amigável arrazoa):
“Como avareza fez em ti liança
Com ciência, que o estudo te alcançava
E em que punhas cuidados e esperança?”
Às palavras do Mestre pronto estava
Estácio, e lhe sorrindo: — “O que me hás dito
Penhor caro é de afeto” — lhe tornava.
“Muitas vezes da dúvida o conflito
Por aparência errônea é suscitado,
Até que a exata causa surja ao esp’rito.
“Fica em tua pergunta declarado
Creres que eu fora avaro noutra vida,
Por ser no círc’lo a avaros destinado.
“Pois sabe que a avareza repelida
Por mim foi nimiamente, e a demasia
De luas em milhares foi punida.
“Minha alma eterno fardo volveria,
Se atenção tanta em mim não despertasse
A indi’nação, que nos teus versos via,
“Quando lançaste dos mortais à face:
— “A que extremos impeles os humanos,
Fome de ouro sacrílega e rapace!” —
“Então do excesso em despender, os danos
Aprender pude, agro pesar sentindo
Desse pecado e de outros tantos insanos.
“Chorarão, tosquiados ressurgindo,
Quantos não têm sabido à penitência
Dar-se em vida ou sua hora extrema em vindo!
“Cada culpa e a que tem contrária essência
Aqui a pena dão conjuntamente,
No martírio expurgando a virulência.
“Estive entre essa turba penitente,
Que o desvario chora da avareza
Por ter sido no oposto renitente.” —
— “Quando cantaste de armas a crueza,
Que duplamente molestou Jocasta” —
Disse o cantor da pastoril simpleza —
“Pois que de Clio então o ardor te arrasta,
Inda o fervor da fé não te incendia,
E o bem sem fé para salvar não basta:
“Que sol, que estrela, em treva tão sombria
Te aclarou e dessa arte alçar pudeste
Velas após o pescador, que se ia?” —
— “Primeiro” — disse Estácio — “tu me deste
Do Parnaso a beber na doce fonte
E de Deus santa luz ver me fizeste.
“Hás sido, como à noite o guia insonte,
Que leva a luz, mas o seu bem não prova,
E aqueles serve, de quem vai na fronte,
“Quando disseste — “O séc’lo se renova,
Volta a justiça, volta a idade de ouro,
E progênie do céu descende nova.” —
“Por ti ganhei a fé, de vate o louro:
Isto deve, porém, ser-te explicado;
Dê ao desenho a cor de claro o foro,
“Já stava o mundo inteiro alumiado
Da vera crença que do reino eterno
Os mensageiros tinham propagado.
“O vaticínio teu, Mestre superno,
Aos predicantes novos se adatava;
Por isso, os freqüentando, o bem discerne.
“Tanto a virtude sua me enlevava,
Que, quando os perseguiu Domiciano,
Ao pranto seu meu pranto acompanhava.
“Enquanto estiver no viver humano,
Dei-lhes socorro e o seu exemplo austero
Ódio inspirou-me às seitas do erro insano.
“Antes já de cantar o cerco fero
De Tebas no batismo renascera:
Mas, de medo, ocultei meu crer sincero.
“Gentio largo tempo eu parecera;
Por isso hei tantos séc’los padecido
No círc’lo quarto; a pena merecera.
“Tu a quem devo, pois, ter conseguido
O véu rasgar, que tanto bem cobria.
Pois que tempo em subir é concedido,
“Onde Terêncio diz-me ora estancia?
Onde está Plauto Varro com Cecílio?
À qual parte do inferno a culpa os lia?” —
— “Aqueles, Pérsio e eu” — tornou Virgílio —
E os outros mais o Grego acompanhamos
Predileto das Musas; lá no exílio
“Do círculo primeiro demoramos
Vezes freqüentes do famoso monte,
Das Camenas assento praticamos.
“Eurípede é conosco e Anacreonte,
Simônide, Agaton e outros inda
Gregos, que cingem de laurel a fronte.
“Stão heroínas, que cantaste: a linda
Antígone, Deifile com Argia,
Ismênia, em quem tristeza nunca finda;
“Vê-se também a que mostrou Langia,
Tétis se vê e de Tirésia a filha,
E das irmãs Deidama em companhia” —
Os dois, da poesia maravilha,
Calaram-se, ao que os cerca atentos stando,
Vencida sendo da subida a trilha.
Das ancilas do dia atrás ficando
A quarta, logo a quinta se jungia
Ao carro ardente, ao alto o encaminhando,
“Quando o Mestre — “Eu suponho” — nos dizia
“Que nós à destra caminhar devemos,
Volteando, como antes se fazia.” —
Desta arte na exp’riência a mestra havemos,
E no andar prosseguimos confiados,
Porque de Estácio o assenso recebemos.
Iam diante os Vates afamados,
E eu logo após, nas vozes escutando
Arcanos da poesia sublimados,
Eis rompe esse colóquio doce e brando
Uma árvore, que à estrada em meio achamos:
Lindos pomos na fronde estão cheirando.
Vão para cima decrescendo os ramos
De abeto; estes descendo diminuem:
Para alguém não subir — acreditamos.
Límpidos jorros do penedo ruem
Da parte, em que a montanha a entrada mura;
Sobre as folhas em rocio as gotas fluem.
Estácio com Virgílio se apressura
Para essa árvore, quando voz, da fronde,
Gritou: — “Não gozareis desta doçura!
“Maria (e o seu desejo não se esconde)
Atende mais das bodas à grandeza
Que ao seu gosto; e por vós ora responde.
“Das Romanas à antiga singeleza
Água bastava; e Daniel ciência
Logrou, tendo em desprezo a régia mesa.
“Chamou-se de ouro a idade da inocência;
Fez as glandes a fome saborosas;
Água em néctar tornou da sede a ardência.
“Ao Batista iguarias bem gostosas
Mel, gafanhotos foram no deserto:
Assim fez grandes obras gloriosas,
“Como pelo Evangelho ficou certo.” —
CANTO XXIII
[ No sexto compartimento estão as almas dos gulosos. Elas são atormentadas pela fome e pela sede; Dante descreve a sua horrível magreza. O Poeta reconhece o seu parente Forense Donati, o qual louva a sua viúva, Nella, e repreende a impudicícia das mulheres florentinas. ]
FITAVA os olhos sobre a rama verde,
Qual caçador, que após um passarinho,
Correndo, parte da existência perde.
Quando o que me era mais que pai: — “Filhinho,
O tempo” — disse — “que nos está marcado,
Quer mais útil emprego. Eia! a caminho!” —
Voltando o rosto, a passo acelerado
Os sábios sigo e, atento ao que falavam,
Não me sentia, andando, fatigado.
Plangentes vozes súbito entoavam
Labia, Domine, mea por maneira,
Que piedade e prazer me provocaram.
— “Do que ouço”— disse então — “ó Pai, me inteira.”—
— “Almas” — tornou — “talvez que o meio tentam,
Que o peso à sua dívida aligeira.” —
Peregrinos solícitos que atentam
Só na jornada, achando estranha gente,
Vontam-se apenas, mas o passo alentam:
Tal após nós vem turba diligente;
Em devoto silêncio se acercava;
Olhou-nos e afastou-se prestamente.
Os olhos encovados nos mostrava,
Pálida a face e o rosto descarnado,
Sobre os ossos a pele se estirava.
Não creio que Erisicton devastado
Tanto da fome horrível estivesse
Quando das forças viu-se abandonado.
Eu cogitava: — “O povo aqui padece,
Que Solima perdeu, quando Maria
Carnes comeu ao filho, que perece.” —
Cad’olho anel sem pedra parecia:
O que na humana face lesse “omo”
Bem claro o M aqui distinguiria.
Quem crer pudera, não sabendo como,
Efeito de desejo ser, nascido
Do frescor de água, junto a odor de pomo?
Atônito inquiria o que haja sido
De tal fome a razão, não manifesta,
Que tal magreza tenha produzido,
Eis lá da profundez da sua testa
Uma alma olhos volvia e me encarava,
Gritando: — “Mereci graça como esta?” —
Quem fora o gesto seu não me indicava;
Mas tive pela voz prova segura
Do que o aspecto seu não revelava.
Foi súbito clarão em noite escura,
Do rosto avivou traços deformados
Forese conheci nessa figura.
— “Ai! não fiquem teus olhos assombrados”
— Dizia — “a lepra ao ver que me descora,
E estes ossos mesquinhos, descarnados!
“Dize a verdade de ti próprio agora:
De quais almas te vejo companheiro?
Não haja, rogo, em responder demora.” —
— “Como outrora é meu dó tão verdadeiro,
Vendo-te o vulto que chorei já morto,
Tão dif’rente do que era de primeiro,
“Dize, por Deus, por que és tão sem conforto:
Tolhe-me a fala a vista, que me espanta;
Responder-te não posso, em mágoa absorto.” —
— “De tal poder” — tornou — “essa água e planta
Sabedoria eterna tem dotado,
Que consumação em mim produziu tanta.
“Os que o rosto, cantando, têm banhado
De pranto, havendo entregue à gula a vida,
Sobem, na fome e sede, o santo estado.
“A fome, a sede sente-se incendida
Dos pomos pelo aroma e por frescura
Das águas, sobre as ramas espargida.
“Cada vez que giramos na fragura,
Revive nossa pena e mais agrava;
Erro chamando pena o que é doçura.
“Esse desejo ardente de nós trava,
Que fez Cristo dizer — Eli! contente,
Quando o sangue em prol nosso na Cruz dava.” —
— “Forese” — hei respondido incontinênti —
“Dês que deixaste a terreal morada
Passaram-se anos cinco escassamente;
“Se a força de pecar stava esgotada
Antes de vir da dor bendita a hora,
Em que alma é com seu Deus conciliada,
“Como te vejo nesta altura agora?
Lá embaixo encontrar-te acreditara,
Onde o tempo com tempo se melhora.” —
— “Conduziu-me tão cedo Nela cara,
Por pranto, que incessante há derramado,
Do martírio a tragar doçura amara.
“De orações e suspiros sufragado
Assim, me alcei da encosta, onde se espera,
E fui dos outros círc’los resgatado.
“Tanto mais Deus com dileção esmera
Aquela, que extremoso amei na terra,
Quanto, só, em virtude ela é sincera.
“Pois a Barbagia de Sardenha encerra
Mulheres por pudor bem mais notadas,
Que a Barbagia, onde o vício acende guerra.
“Queres tu, doce irmão, manifestadas
Idéias minhas? Pouco dista o dia
Das vozes nesta prática empregadas,
“Em que proíba o púlpito a ousadia
Das impudentes damas florentinas,
Que têm, mostrando os seios, ufania.
“Morais ou quaisquer outras disciplinas
Hão mister para andarem bem cobertas
As mulheres pagãs ou marroquinas?
“Mas, se tais despejadas foram certas
Do castigo, que está-lhes iminente,
Bocas teriam para urrar abertas.
“E, se, antevendo, não me engana a mente,
Grande angústia hão de ter antes que nasça
Barba ao que em berço embala-se inocente.
“Ah! de dizer quem sejas faz-me a graça!
Não por mim; mas a turba atenta mira
Teu corpo e a sombra, que com ele passa.” —
— “Se agora à mente” — eu disse — “te surgira
O que outrora um pra o outro havemos sido,
Desprazer inda agudo te pungira.
“Há pouco, me há do mundo conduzido
Quem me precede; havia então rotunda
A irmã do que vês aparecido.” —
E o sol mostrei — “Por noite a mais profunda
Dos verdadeiros mortos me há guiado,
Quando a carne inda os ossos me circunda.
“Tenho depois, por ele confortado,
Desta montanha pelos círc’los vindo,
Que em vós corrige o que trazeis errado.
“Quanto disse, acompanha-me, cumprindo
Té onde a Beatriz veja o semblante:
Então sem ele avante irei seguindo.
“Ei-lo! É Virgílio o guia meu constante!
É aquele outro a sombra venturosa
Por quem o vosso reino, vacilante,
Tremeu, quando partiu-se jubilosa.” —
CANTO XXIV
[ Forese mostra a Dante outras almas de gulosos, entre as quais a de Bonagiunta de Lucca, que prediz ao Poeta que se enamorará de uma mulher da sua cidade, e lhe louva o estilo da poesia. Procedendo, os Poetas encontram outra árvore e ouvem outros exemplos de intemperança castigada. ]
NÃO era o passo e o praticar mais lento
Um do que outro; igualmente prosseguiam,
Qual nau servida por galerno vento.
As sombras, que duas vezes pareciam
Mortas, nos cavos olhos grande espanto,
De estar eu vivo certas, exprimiam.
Eu, a falar continuando, entanto,
Disse: — “Conosco para ir retarda
Sua ascensão essa alma ao reino santo.
Mas, rogo-te declara: onde é Picarda?
Afamada por feitos há pessoa
Entre a gente, que sôfrega me esguarda?” —
— “Tanto era minha irmã gentil e boa
Que não sei qual foi mais: triunfa leda
No Olimpo, onde alcançou formosa c’roa.
“Nomes dizer de mortos não se veda
Aqui” — Forese torna; e logo ajunta: —
“Tanto a fome as feições nossas depreda!”
“Este que vês de Lucca é Bonagiunta;
E aquela alma (seu dedo ia apontando),
Mais que todas desfeita, que lhe é junta,
“Foi Tours; já na Igreja exerceu mando.
Stá, por jejuns, anguilas de Bolsena,
Ver na ceia, afogadas, expurgando.” —
Muitos mais nomeou, que sofrem pena;
E todos demonstravam star contentes
De ouvir dizer Forese o que os condena.
Em vão de fome vi mover os dentes
Ubaldino de Pila e Bonifaço,
Que regeu com seu bago muitas gentes.
Misser Marchese vi, que largo espaço
Com menos sede em Forli consumia.
Em beber; mas julgava-o inda escasso.
Mas, como o que repara e que aprecia
Escolhendo, ao de Lucca eu me inclinava,
Porque mais conhecer-me parecia.
Submissa voz da boca lhe soava,
Causa do mal, que trouxe-lhe o castigo:
“Gentucca” ou não sei que pronunciava.
— “Ó alma” — disse — “que falar comigo
Queres, ao claro te explicar procura:
Satisfeita serás como contigo.
— “Mulher nasceu, mas inda é virgem pura,
Por quem” — torna — “hás de amar minha cidade,
Posto assunto haja sido de censura.
“Este prenúncio levas da verdade;
Se por meu murmurar te hás enganado,
Trazer-te há de o porvir à claridade,
“Se vejo aquele diz, que à luz há dado
Versos novos, que assim têm seu começo:
Damas que haveis de amor na mente entrado.
— “Que vês em mim” — lhe respondi — “confesso
Quem screve o que somente Amor lhe inspira:
O que em meu peito diz falando expresso.
“O óbice ora vejo que eu não vira
Que ao Notário a Guittone a mim tolhia
O doce estilo da moderna lira.
“As vossas plumas vejo que à porfia
Seguem de perto o inspirador potente;
Tanto alcançar às nossas não cabia.
“Quem, por mais agradar, mais alto a mente
Erguer que, não discerne um do outro estilo.”
Disse e calou-se de o dizer contente.
Como aves, que no inverno o noto asilo
Buscando ora num bando incorporadas,
Ora em fila apressadas vão-se ao Nilo,
Essas almas assim já demoradas,
Volvendo o rosto rápidas fugiram,
Da magreza e vontade auxiliadas.
Como aquele a quem forças se esvaíram
Correndo afrouxa os passos para o alento
Cobrar, em quanto os sócios se retiram;
Forese assim que a passo andava lento
Deixou passar a santa grei dizendo:
— “Quando de ver-te inda terei contento?” —
— “Quanto haja de viver” — fui respondendo —
“Não sei; por menos que me dure a vida
Mais ao seu termo os meus desejos tendo.
“Que onde foi a existência concedida
Mais escassa a virtude é cada dia:
Ruína espera triste e desmedida.
— “O que mor culpa tem” — me retorquia —
“À cauda de um corcel vejo arrastado
Ao vale, onde o pecado não se expia:
“Vai sempre, sempre mais acelerado
Aquele bruto na carreira fera:
Fica vilmente o corpo lacerado.
“Não há de girar muito cada espera
(Para o céu se voltava) antes que seja
Claro o que te explicar eu não pudera.
“Adeus, porém: quem neste reino esteja
Ao tempo dê seu preço verdadeiro;
O que eu perco ao teu lado já sobeja.”
Como a campanha deixa um cavaleiro,
A galope veloz se arremessando,
Por ter na liça as honras de primeiro:
Forese assim de nós foi-se alongando.
Fiquei dos dois espíritos ao lado,
Que o mundo está por mestres proclamando.
Quando em distância tanta era apartado,
Que as vistas nesse andar o acompanharam,
Como a mente ao que havia revelado.
Eis perto aos olhos meus, que se voltaram,
De outra árvore de pomos carregada
Os ramos vicejantes se mostraram.
As mãos alçava multidão cerrada
À fronde em brados; turba semelhava
De infantes, por desejos vãos turbada,
Um objeto implorando a quem negava,
E que o mostrando ainda mais acende
Desejo, que a cobiça lhes agrava.
Foi-se, porém, porque ninguém a atende.
Da grande árvore então nos acercamos,
Que a todo o rogo e pranto desatende.
Uma voz de entre as folhas escutamos:
— “Ide-vos logo; não chegueis ao perto!
Eva o fruto há mordido de outros ramos:
“Stão longe estes de lá provêm de certo.” —
Então de lado os passos dirigimos,
Unidos no caminho, que era aberto.
— “Lembrai esses malditos” — inda ouvimos —
“Filhos das nuvens, duplos na figura,
Que atacaram Teseus, ébrios cadimos;
“E os que em beber acharam tal doçura,
Que os não quis Gedeão na companhia,
A Madiã marchando lá da altura.”
Por junto à borda o passo se volvia,
E as penas escutamos dos pecados
Mortais, que outrora a gula cometia.
Já pela estrada solitária entrados,
Demos mais de mil passos inda avante,
Contemplando, em silêncio mergulhados.
— “Em que cismais vós outros?” — retumbante
Soou voz. — Fiquei logo em sobressalto
Como o corcel de medo titubante.
Para ver levantei a fronte ao alto:
Aos olhos, dera em fusão, no forno ardente,
Vidro ou metal não dera igual assalto,
Como o anjo que eu vi resplendecente.
Dizia: — “A volta dai para a subida!
Quem quer paz para aqui vai certamente.” —
Daquele aspecto a vista foi tolhida:
Como quem pelo ouvido os passos guia,
Fui caminhando, aos Vates em seguida.
E qual aura de maio, que anuncia
A alvorada, das flores espalhando
E das ervas o aroma, que extasia,
Tal sobre a fronte um sopro senti brando,
Senti mover-se a pluma: então rescende
Odor celeste, o olfato me enlevando
Dizer senti: — “Feliz o que se acende
Na Graça o que, da gula desligado,
Ao sabor do apetite não se prende,
Comendo quanto é justo sem pecado!” —
CANTO XXV
[ Subindo por estreita senda, do sexto ao sétimo e último compartimento, Dante pergunta a Virgílio como podem emagrecer as almas, que não precisam de alimento. Respondem-lhe Virgílio, antes, e depois Estácio. Este fala da geração do corpo do homem, da alma que nele Deus infunde, e da maneira de existência depois da morte. O compartimento no qual acabam de chegar está cheio de flamas, nas quais estão se purificando as almas dos luxuriosos. ]
PARA subir o tempo nos urgia;
Meridiano ao Tauro o sol já dera,
Bem como a noite ao Scorpião cedia
Qual viajor, que o passo não modera,
Que em nada atenta e sempre segue avante,
Se em seu querer necessidade impera,
Nós penetramos no rochedo hiante,
Por escada estreitíssima subindo,
Que obriga um ir atrás outro adiante.
Da cegonha o filhinho, asas abrindo,
Por voar logo, encolhe-as e não tenta
Deixar o ninho, esforço não sentindo:
Tal o desejo em mim ferve e arrefenta
De perguntar chegando quase ao ato
De quem para dizer se experimenta.
O Mestre, sem parar, pressente o fato:
— “Tens da palavra o arco” — diz — “tendido,
Deixa a seta partir; não sê coato“. —
De confiança então já possuído,
Falei, — “Como é possível fique magro
Quem não precisa mais de ser nutrido?” —
— “Se recordaras” — torna — “Meleagro
Que, em ardendo um tição se consumia
Isso não fora de entender tão agro.
“Também de fácil crença te seria,
Se no espelho notaras que o teu rosto,
Segundo te movesses, se movia.
“Por dissipar-se a dúvida ao teu gosto,
Eis Estácio, a quem rogo fervoroso
Seja a dar-te o remédio bem disposto.” —
— “Se eu o eterno conselho explicar ouso”
— Disse Estácio — “quando és, Mestre, presente,
Ao teu querer me curvo respeitoso.
“Se, filho, o que eu disser guardas na mente,
Hás de ter — prosseguiu — “esclarecidas
Essas dúvidas tuas prontamente.
“Sangue puro, que as veias ressequidas
Não bebem, que de parte permanece
Quais viandas em mesas bem providas,
“Do coração tomou que lhe oferece
Virtude de que a forma aos membros veio,
Como o que às veias por fazê-los desce;
“Ainda, elaborado, desce ao seio
De canal que não digo; após, unido
Em vaso é natural com sangue alheio.
“É ali com outro confundido,
Paciente sendo um, sendo outro ativo,
Pela perfeita sede, em que há nascido.
“Trabalho então começa produtivo
Coagulando e depois vivificando
O condensado efeito primitivo:
“Em alma a força ativa se tornando,
Como em planta, é, no entanto, diferente:
Pára a planta, vai a alma caminhando.
“Prosseguindo, já move-se, já sente,
Como o fungo marinho; e logo emprende
Os sentidos, que em si tem qual semente.
“Ora contrai-se, filho, ora se estende
A força genetriz, do peito vinda,
Donde natura em todo o corpo entende.
“Mas, filho meu, não sabes certo ainda
Como a ser vem um ente cogitante:
É ponto em que um mais sábio no erro finda;
“Pois, na doutrina sua extravagante,
Distinto da alma fez o entendimento
Possível, não lhe vendo órgão bastante.
“Abre à luz da verdade o pensamento:
Vê que, no feto os órgãos em chegando
Do cérebro ao perfeito acabamento,
“O Primeiro Motor, ledo encarando
Da natureza tal primor, lhe inspira,
Esp’rito, em que virtudes stão brilhando,
“E que ativo alimento dali tira
Para a própria substância; e alma se forma,
Que vive e sente e pensa e em si regira.
“Com meu dizer tua mente se conforma,
Notando que do sol calor em vinho,
Da uva ao sumo unido, se transforma.
“O esp’rito, se Laquésis não tem linho,
Deixa a carne e virtude, traz consigo
Dotes, que teve no corpóreo ninho.
“Sobem de ponto no valor antigo
A memória, a vontade, o entendimento,
Da mudez o mais fica no jazigo.
“Cai logo, de espontâneo movimento,
Por maravilha, numa ou noutra riba,
Onde há do rumo seu conhecimento.
“Vindo a lugar, que o circunscreva e iniba,
Da força informativa é rodeado,
Como em membros que a morte nos derriba.
“Bem como o ar de chuva carregado,
Se dos raios solares é ferido,
De cores várias mostra-se adornado,
“O ar vizinho assim fica inserido
Nessa forma, que desde logo amanha
Virtualmente o esp’rito ali contido;
“E semelhante ao fogo, que acompanha
Labareda, com ele se movendo,
Cada alma segue aquela forma estranha.
“Aparência de forma nela havendo
Sombra se chama; e, após, ela organiza
Sentidos, o da vista compreendendo.
“Fala, ri-se, ama, odeia ou simpatiza,
Exala dor, carpindo ou suspirando:
Neste monte já tens prova precisa.
“Segundo está sofrendo ou desejando,
Da alma também altera-se a figura:
Vê, pois, o que a magreza está causando.” —
Voltando à mão direita, da tortura
Entramos pela estância derradeira:
Então preocupou-nos outra cura.
Flamas brotava aqui a ribanceira,
Aura ativa da estrada respirava:
Subindo, as rechaçava subranceira.
Ao longe da árdua borda caminhava
Um por um: precipício temoroso
De um lado, e do outro o fogo eu receava.
Disse Virgílio: — “Aqui bem cauteloso
Deve aplicar aos olhos seus o freio
Quem não quiser dar passo perigoso.” —
Summae clementiae Deus stavam no seio
Do grande incêndio as almas entoando,
E de voltar-me o ardor então me veio.
Vi nas chamas espíritos andando:
Aos movimentos seus, aos meus estava
Atento, a vista a uns e a outros dando.
E quando aquele cântico findava
Virum non cognosco alto se ouvia,
E o cântico em tom baixo renovava.
E, terminando, o coro repetia:
“Diana expulsa da floresta Helice
Que o veneno de amor tragado havia.” —
Cantaram; cada qual como antes disse
Esposas e maridos, que hão guardado
A fé, que Deus mandou sempre os unisse:
Este modo há de ser, creio, alternado,
Enquanto os rodear a chama ardente:
A chaga por tal bálsamo e cuidado
Há de ser guarnecida finalmente.
CANTO XXVI
[ Entre os luxuriosos e os que pecaram contra a natureza Dante encontra o poeta Guido Guinicelli, ao qual exprime a sua profunda admiração. Guido lhe aponta o poeta provençal Arnaud Daniel, que o saúda em versos provençais. ]
ENQUANTO imos a borda costeando.
Um após outro, o Mestre repetia:
“Eu te previno, vai com tento andando!’
O sol pela direita me feria;
Purpureava a luz todo o poente:
Do céu o azul de branco se tingia.
Co’a sombra minha ainda mais rubente
Parece a flama; e as almas, que passavam,
Notando-a davam-me atenção ingente.
Nessa estianheza ensejo deparavam
Para, entre si, conversação travarem.
“Não é fictício o corpo seu” — falavam.
Quando podiam, mas tendo cuidado
Avançavam por mais certificarem,
O fogo expiatório em não deixarem.
— “Tu, que vais após outros colocado,
Mostrando ser, não tardo, respeitoso,
Responde: em fogo e sede ardo, abrasado.
“Não sou eu só de ouvir-te desejoso:
Quantos vês da resposta sentem sede
Mais que Etíope da água cobiçoso.
“Diz-nos como o corpo teu parede
Oponha desta sorte à luz do dia:
Não te colheu da morte acaso a rede?” —
Uma sombra falou-me. Eu pretendia
Logo explicar; porém fui distraído
Pelo que então de novo aparecia.
Pelo caminho andando escandecido,
Outra grei ao encontro veio desta:
Atalhei-me, em mirar pondo o sentido.
De parte a parte se dirige presta
Uma alma a outra; osculam-se e em seguida
Vão-se, contentes dessa breve festa.
Assim da negra legião saída,
Em marcha, toca em uma outra formiga,
Por saber do caminho ou sorte havida.
Separando-se após a mostra amiga,
Antes que o giro sólito transcorra
Cada uma grei em brados se afadiga.
— “Sodoma!” — clama a última — “Gomorra!”
E a outra: — “Entrou Pasifae na vaca,
Por que à luxúria sua touro acorra.” —
Como grous, de que um bando se destaca
Para os Rifeus e o outro pra o deserto,
Pois calma ali e frio aqui se aplaca,
Uns se vão, outros vêm; voltando, ao perto
O hino se renova, e o pranto e o brado,
Que tem, qual mais convém, efeito certo.
Os mesmos, que me haviam perguntado,
De mim como inda há pouco, se acercaram:
Stá desejo nos gestos desenhado.
Vendo ainda o que já manifestaram,
— “Sabeis vós, que tereis de glória em dia,
Paz que os vossos martírios vos preparam,
“Que inda não jaz meu corpo em terra fria;
Comigo vem na própria compostura,
Com seu sangue e seus membros” — lhe dizia.
“Minha cegueira aqui a luz procura:
Lá no céu santa Dama há conseguido
Que eu, vivo, por aqui me eleve à altura.
“Dizei-me (e seja em breve concedido)
Quanto anelais, no céu, que é de amor cheio
E em que espaço mais amplo está contido!
“Para que eu tenha de narrá-lo o meio,
Quem fostes e também que turba é aquela,
Que como hei visto ao vosso encontro veio.” —
Se o pasmo seu o montanhês revela,
Quando rude e boçal vê de repente
Quanto pode encerrar cidade bela,
Na grei não foi o efeito diferente.
Tornando sobre si, porém, do espanto,
Que se esvai logo em peito preminente,
— “Ditoso tu, que vendo o nosso pranto” —
Respondeu quem primeiro há perguntado —
“Alcanças ao viver ensino santo!
“Inquinaram-se aqueles no pecado,
Porque César outrora, triunfando,
Rainha, em vitupério, foi chamado.
“Eis por que se acusavam se apartando,
Contra si de — Sodoma! alçando o brado,
Do fogo à pena o opróbrio acrescentando.
“Hermafrodito foi nosso pecado;
Mas tendo as leis humanas transgredido
De brutos no apetite desregrado,
“Por nossa injúria o nome é repetido,
Quando partimos, da mulher impura,
Que em bestial figura besta há sido.
“Se queres, vendo a nossa nódoa escura,
Do nome de cada um ser instruído,
Não sei, nem tempo para tal nos dura.
“Mas o meu te farei bem conhecido;
Vês Guido Guinicelli: o crime expia
Por se haver inda a tempo arrependido.” —
Quais, ante a fúria em que Licurgo ardia,
Os filhos dois achando a mãe, ficaram,
Tal senti, sem correr viva alegria,
Quando o nome essas vozes declararam
Do pai meu e do pai de outros melhores,
Que em doce metro amores decantaram.
Sem falar, sem ouvir perscrutadores
Longamente olhos meus o contemplaram:
Vedavam-me acercar do fogo ardores.
Depois que em remirá-lo se enlevaram,
Ao seu serviço declarei-me presto,
E solenes promessas o afirmaram.
— “Imprimiu tal vestígio o teu protesto” —
Tornou — “no peito meu agradecido,
Que fora além do Letes manifesto.
“Se hei de ti a verdade agora ouvido,
O que di’no me fez do sentimento,
Que tens na voz, nos olhos insculpidos?” —
E eu: — “Das rimas vossas o concento,
Que, enquanto usar-se do falar moderno,
Salvas hão de viver do esquecimento.” —
— “O que te indico, irmão” — tornou-me terno
(E seu dedo outra sombra me apontava)
Mais primor teve no falar materno.
“Nos versos, nos romances superava
A todos: stultos só dizer ousaram
Que o Limosim aquele avantajava.
“Pelo rumor verdade desprezaram,
E, como arte e razão desconheceram,
Sem fundamento opinião formaram.
“Assim muitos outrora procederam
Com Guittone e o seu nome hão proclamado;
Mas verdade alfim todos conheceram.
“E pois que o privilégio hás alcançado
De entrar nesse mosteiro portentoso,
Por Cristo, como abade governado,
“Um Pater Noster diz por mim piedoso;
Quanto mister havemos neste mundo,
Onde ato algum não há pecaminoso.” —
“Por dar lugar ao spírito segundo,
Já próximo, no fogo desparece.
Qual peixe, quando imerge de água ao fundo.
Acerquei-me da sombra que aparece,
E disse que ao seu nome apercebia
Meu desejo o lugar que assaz merece.
Logo assim livremente me dizia:
— “Tão cortês vosso rogo é, que escutando,
Me encobrir não quisera ou poderia.
“Arnaldo sou, que choro e vou cantando,
Triste os erros passados meus lamento,
E o fausto dia estou ledo esperando.
“E peço-vos pelo alto valimento,
Que da escada a eminência ora vos guia,
Que em tempo vos lembreis do meu tormento.”
E, após, ao fogo apurador se envia.
CANTO XXVII
[ Para chegar à escada que do sétimo e último compartimento leva ao cimo do monte, Dante é obrigado por um Anjo a atravessar as flamas. Pouco depois de ter começado a subir, o ar escurece e sobrevém a noite. Param e Dante, cansado, adormece. Despertado pela madrugada, os Poetas recomeçam a subir, chegando ao Paraíso Terrestre. ]
COMO, quando os primeiros raios vibra
Lá onde Cristo sangue derramara,
Sotopondo-se o Ebro à excelsa Libra,
E, ao meio-dia, o Gange aquece e aclara
Stava o sol; declinando a luz já se ia:
Eis ledo o anjo de Deus se nos depara.
Fora da flama, à borda ele se erguia,
Beati mundo corde modulando.
Em tom de voz, que a humana precedia.
“Para avante passar” — acrescentando —
“Apurai-vos no fogo, almas piedosas!
Entrai, de além nos hinos atentando.”
Lhe ouvindo ao perto as vozes sonorosas,
Sossobrei, como quem, perdido o alento,
Da tumba às trevas desce pavorosas.
Mãos cruzadas, quedei sem movimento;
De olhos na chama, os vivos relembrava,
Que das fogueiras vira no tormento.
A mim cada um dos Vates se voltava.
— “Não temas, filho! Aqui dor se padece,
Mas não morte” — Virgílio me exortava.
“Lembra! Lembra ou memória em ti falece?
Já sobre Gerião levei-te a salvo:
De Deus mais perto, em mim virtude cresce.
“Se destas chamas, crê, tu foras alvo
Em todo o espaço de um milheiro de anos,
De um só cabelo ficarias calvo.
“Se cuidas no que digo haver enganos,
Te acerca e por ti próprio experimenta,
Ao fogo expondo de tua veste os panos.
“Todo o temor do ânimo afugenta!
Vem, pois! Mostra que tens peito seguro!” —
Ouvi, mas o valor meu não se aumenta.
Vendo-me ainda pertinace e duro,
Merencório me disse: — “Ó filho amado,
De Beatriz a ti só este muro!” —
De Tisbe ao nome, Píramo chegado
À morte, os olhos para vê-la abria,
Quando há seu sangue à amora cor mudado;
A resistência minha assim cedia.
A Virgílio volvi-me, o nome ouvindo,
Que sempre o pensamento me alumia.
Então a fronte meneou; sorrindo,
Como a infante, que um pomo há seduzido,
Disse: — “Aqui ficaremos persistindo?” —
Sou por ele no fogo antecedido;
Estácio, que antes sempre caminhara,
Depois de mim seguia a seu pedido.
Eu pelo fogo apenas penetrara,
Ardor tanto senti, que, pra recreio,
Em vidro derretido me lançara.
De confortar-me procurando o meio,
De Beatriz Virgílio assim falava:
— “Seu gesto julgo ver de fulgor cheio.” —
Voz peregrina ouvi, que ali cantava:
Fora saímos nós, dos sons guiados,
Na parte, onde a subida se mostrava.
— “Vinde, ó vós de meu Pai abençoado!” —-
Do seio de um luzeiro retinia,
Tal que os olhos cerram-se ofuscados.
“Transmonta o sol, a noite segue ao dia,
Não vos detende; a passo andai ligeiro,
Que o Ponente já trevas anuncia.” —
A trilha no penhasco sobranceiro
Direita sobe à parte em que tolhia
A sombra minha o lume derradeiro.
Vencido apenas nosso passo havia
Alguns degraus, a sombra, que fenece,
Mostra que o sol já luz não difundia.
Antes que em todo apresentado houvesse
O imenso horizonte igual aspeito,
E a noite os seus véus todos estendesse,
Um degrau cada qual tomou por leito;
Que nos tirara da montanha a agrura,
Mais que o desejo de subir o jeito.
Como as cabras das penhas sobre a altura,
Antes de fartas, rápidas e ardentes,
Têm, ruminando, mansidão, brandura;
Pousam à sombra, enquanto o sol candentes
Lumes despede, e as guarda o pegureiro
Com seu cajado e os olhos previdentes;
E como o guardador, que no terreiro
Quedo pernoita em sentinela aos gados
Contra assaltos do lobo carniceiro:
Assim nós três estávamos pousados,
Eu como cabra, os Vates quais pastores,
Da rocha a um lado e a outro conchegados.
Escassa aberta deixa ver fulgores
De estrelas, que do céu naquela parte,
Contemplava mais lúcidas, maiores.
Nessa vista engolfei-me por tal arte,
Que o sono me prendeu, sono que à mente
Do que há de ser a provisão comparte.
Naquela hora em que Vênus do Oriente
Seus lumes sobre o monte difundia,
Parecendo de amor star sempre ardente,
Jovem formosa em sonho ver eu cria,
Dama que em veiga amena passeando,
Flores colhendo, a modular dizia:
— “Quem meu nome pedir, vá me escutando:
Sou Lia e uma grinalda, cuidadosa,
Co’as minhas belas mãos a tecer ando.
“Mirar-me, hei-de no espelho mais garbosa:
De sua mana, Raquel se não separa,
Sentada o inteiro dia descuidosa.
“De ver os belos olhos seus não pára,
Como eu em me adornar sou diligente:
Ela contempla, eu trabalhar tornara!”
Já vem do dia o precursor splendente,
Que tanto alenta a esp’rança ao peregrino,
Quando o seu lar já próximo pressente.
Fugia a treva ao lume matutino
— E com ela o meu sono: ergui-me ativo,
Dos mestres tendo no exemplo o ensino.
— “O pomo, que é tão doce, quanto esquivo,
Que a ambição dos mortais procura ansiosa,
Hoje à fome há de dar-te o lenitivo.” —
Estas palavras proferiu donosa
Do Mestre a voz: janeiras não dariam
Jamais satisfação tão graciosa.
Tão vividos anelos me pungiam
De alar-me ao cimo excelso, que julgava
Que asas o passo meu favoreciam.
Quando a comprida escada terminava
E o pé firmamos no degrau superno,
Virgílio, me encarando, assim falava:
— “O fogo temporário e o fogo eterno
Tens visto, filho, e a altura hás atingido.
Além de cuja extrema não discerno:
“Te hei com engenho e arte conduzido:
Seja-te agora o teu querer o guia;
Angústias e fraguras tens vencido.
“Olha: o semblante o sol já te alumia;
Flores, ervinhas, árvores virentes
Vê que a terra espontânea brota e cria.
“Antes que os olhos venham refulgentes,
Que em teu prol me enviaram por seu pranto,
Repousa, ou pelos prados vai florentes.
“Não mais te falo, nem te aceno, entanto;
Possuis vontade livre, reta e boa,
Cumpre os ditames seus: a ti, portanto,
Pois de ti és senhor, dou mitra e c’roa.
CANTO XXVIII
[ O Poeta descreve a beleza do Paraíso Terrestre. Chegam Dante, Virgílio e Estácio perto de um rio que os impede de prosseguir. Do outro lado do rio aparece uma mulher de maravilhosa beleza que discorre a respeito da condição do lugar, resolvendo as dúvidas que Dante lhe propõe. ]
VAGAR já nos recessos desejando
Da selva divinal, vivida espessa,
Que ao novo dia o lume faz mais brando,
Daquela encosta a me afastar dou pressa.
Pela veiga me interno a passo lento,
Doce aroma sentindo, que não cessa.
Do ar, que circulava, o doce alento,
Mas sempre igual, a fronte me afagando,
Tinha o bafejo de suave vento.
As folhas, molemente balouçando,
Do santo monte à parte se inclinavam,
A que a sombra primeira vai baixando.
Mas, no meneio seu, não se acurvavam
Em modo, que na rama aos passarinhos
Os hinos perturbassem, que entoavam.
Pousados ledamente entre os raminhos
Saudavam com seus cantos a alvorada
Da fronde os acordando aos murmurinhos;
Assim de Chiassi no pinhal soada
De ramo em ramo corre quando a amara
Prisão, abre ao mestre Eolo a entrada.
Com demorado andar eu caminhara
Na selva antiga tanto, que não via
Mais o lugar, por onde penetrara.
Eis andar um ribeiro me tolhia,
Que, à sestra deslizando-se, beijava
A ervinha, que às margens lhe crescia:
O cristal dessa linfa superava
Da terra água a mais pura e transparente;
Quanto continha em si patente estava.
Entanto, pela sombra permanente,
Que luz da lua ou sol nunca atravessa,
Negreja aquela plácida corrente.
O pé detenho, e a vista se arremessa
Além do humilde rio, contemplando
Primores, com que maio se adereça,
Então se of’rece aos olhos, como quando
De súbito um portento surge à mente,
De outro pensar qualquer a desviando,
Uma dama sozinha de repente,
Que, cantando, escolhia, de entre as flores,
Que o chão cobriam de matiz ridente.
— “Bela dama, que sentes os fervores
Do amor divino, se por teu semblante
Da tua alma julgar devo os ardores” —
Assim falei — “se caminhar avante
Até perto do rio te aprouvera,
Te entendera esse canto inebriante.
“Tão linda, em tal lugar, lembras qual era
Prosérpina, ao perdê-la a mãe querida
E ao perder também ela a primavera.” —
Qual menina, que em danças entretida,
Gira ligeira em terra deslizando,
Os passos troca e volve-se garrida,
Sobre o esmalte das flores se voltando,
A mim se dirigiu, como donzela
Que vai, modesta, os olhos abaixando.
Quanto o desejo meu sôfrego anela
Acercou-se e da angélica toada
Distinta pude ouvir a letra bela.
Logo em chegando à borda em que banhada
A erva era da linfa cristalina,
De olhar-me fez a graça assinalada.
Não creio que na vista peregrina
De Vênus lume tal resplandecesse
Ao feri-la de amor seta mali’na.
De fronte aos olhos a sorrir se of’rece.
As mãos de lindas flores tendo plenas,
De que espontâneo o solo se guarnece.
A nós três passos interpõem apenas:
O Helesponto que Xerxes transcendera,
Lição em que há para os soberbos penas,
Em Leandro mais ódio não movera,
Quando entre Sesto e Ábidos nadava,
Do que o rio que tanto estorvo me era.
— “Sois recém-vindos” — ela assim falava —
“Meu riso ao ver-vos no lugar eleito
À humana raça, quando à luz brotava,
“Talvez vos maravilhe por suspeito.
Se lembrado o salmo Delectasti,
De todo o engano vos será desfeito.
“Tu, que estás adiante e me falaste
Que mais ouvir desejas? Eis-me presta
Explicação a dar-te, quanto baste.” —
— “Esta água” — torno — “e o som desta floresta
Opõem-se à minha fé na maravilha.
Que eu tinha ouvido e que é contrária a esta.” —
— “Eu te direi a causa, de que é filha
A razão que te move essa estranheza;
Terás, em vez de névoa, a luz que brilha.
“O Bem, que em si somente se embeleza,
Apto ao bem fez o home’; em arras deu-lhe
De eterna paz à edênica riqueza.
“A culpa sua este alto dom tolheu-lhe;
A culpa sua em prantos, em desgostos
Os prazeres, os risos converteu-lhe.
“A fim de que efeitos, que, compostos
São de eflúvios das águas e da terra,
Para o calor acompanhar dispostos,
“Ao homem não fizessem qualquer guerra,
Tão alta há se elevado esta montanha,
Que é livre desde o ponto onde se encerra.
“E porque todo o ar, por força manha,
Roda ao impulso do motor primeiro,
Quando estorvo nenhum seu giro acanha,
“Este cimo elevado e sobranceiro
Pelo éter vivo ao moto é tão batido,
Que o denso bosque remurmura inteiro:
“E sendo em cada um tronco percutido,
A virtude transmite fecundamente
Ao ar, que a esparge, em torno revolvido.
“A terra, como é apta, circunstante
Por si ou por seu céu plantas concebe
De gênero e virtude variante.
“E pois, já claramente se percebe
Como planta há viçosa e florescente,
Quando o germe a terra não recebe.
“Sabe que até jardim toda semente
Do que a terra produz em si compreende
E contém fruto inoto à humana gente.
“Esta água de uma origem não depende,
Que alimente vapor que em chuva desça,
Como rio que seca ou que se estende.
“De fonte certa vem que nunca cessa,
Pois por querer que Deus tanta dimana,
Quanta aqui por canais dois se arremessa.
“A que neste álveo que ora vês, se encana
Memória do pecado desvanece,
Aviva a outra a da virtude humana.
“É Letes, se por ela o mal se esquece,
Eunoé quando lembra: atuam quando
O gosto de uma e de outro homem conhece.
“Saber igual aos outros comparando
Não existe ao desta água. Ao teu pedido
Satisfação hei dado assim falando.
“Corolário, porém, lhe seja adido:
Não receio que assim te desagrade,
Indo além do que fora prometido.
“Poetas que cantavam de ouro a idade
E sua dita, em Parnaso, certamente
Sonharam desta estância a f’licidade.
“Estirpe humana aqui fora inocente;
Eterna primavera aqui domina;
Foi este néctar, que inventou sua mente.” —
Então a vista aos Vates se me inclina.
Um sorriso em seus lábios se revela,
Esse conceito ouvindo, em que termina.
Rosto volvi depois à dama bela.
CANTO XXIX
[ Da floresta aparece um súbito esplendor. Dante vê avançar uma procissão de espíritos bem-aventurados em cândidas vestes, e, no fim da procissão, um carro tirado por um grifo. Ouve-se um trovão e o carro e o grifo param. ]
AS vozes, que eu lhe ouvia, ela remata,
Qual dama namorada, assim cantando:
Beati quorum tecta sunt peccata!
Como das ninfas o formoso bando,
Que nas umbrosas selvas sós andavam,
Qual ver, qual evitar o sol buscando:
Contra o ribeiro os passos a levavam,
Sobre a margem seguindo lentamente;
E pelos seus os meus se regulavam.
Cinqüenta assim andáramos somente,
Quando o álveo curvou a linfa pura,
E, pois, da banda achei-me do oriente.
Pouco éramos avante na espessura,
Eis, voltando-se, a dama desta sorte
Falou-me: — “Escuta, irmão, e ver procura.” —
Refulge de repente uma luz forte,
Por todo o espaço imenso da floresta.
Relâmpago julguei, que os ares corte.
Mas luz após relâmpagos não resta;
E o fulgor mais e mais resplendecia.
Disse entre mim: — “Que maravilha é esta?” —
Pelo ar luminoso se esparzia
Dulcíssima harmonia: e em zelo ardendo
De Eva o feito imprudente eu repreendia,
Pois, céu e terra a Deus humildes vendo,
A mulher só, que a vida começara,
Violava o preceito, os véus rompendo.
Se fiel fora e as ordens respeitara,
Mais cedo e por mais tempo essa morada,
Em delícia inefável, eu gozara.
Prosseguia, tendo a alma transportada
Nas primícias da eterna f’licidade,
Em desejos mais vivos abrasada,
Quando vimos de intensa claridade
Sob a rama tornar-se o ar brilhante
E o som tomou de um hino a suavidade.
Ó Musas, santas virgens, se, constante
Fome, frio, vigílias hei sofrido,
Da mercê vos rogar assoma o instante:
Das águas de Hipocrene bem provido
Para em metro cantar idéia imensa
De Urânia e das irmãs seja eu valido!
De ver, um tanto além, eu tive a crença
Árvores sete de ouro: era aparência,
Emprestava a distância parecença.
Mas, quando me acerquei, quando a evidência
Provou-me quanto a semelhança engana,
Dando das cousas falsa inteligência,
A faculdade, que à razão aplana
O discurso, fez ver distintamente
Candelabros e ouvir no hino: Hosana!
Cada qual flamejava refulgente,
Mais que no azul do céu rebrilha a lua
Da noite em meio, em seu maior crescente.
De pasmo, que no espírito me atua,
A Virgílio me volto; ele me encara:
Também revela espanto a vista sua.
Tornei-me ao lampadário, que não pára,
Prosseguindo, porém, solene e lento:
Noiva ao altar mais presta caminhara.
Eis a dama gritou-me: — “Por que atento
Às vivas luzes stás com tanto excesso,
Que desvias do mais o pensamento?” —
Trajadas de alva cor a ver começo
Pessoas, que os luzeiros têm por guia:
Candor igual na terra não conheço.
Do rio a linfa à sestra resplendia:
Espelho, minha imagem, desse lado,
Oscilando, aos meus olhos refletia.
Dos lumes tanto estava apropinquado,
Que pelo rio só fiquei distante:
Parei, por ver melhor, maravilhado.
Esses clarões eu vi passar avante;
Trás si no ar matiz vário espalhavam,
A pendões desfraldados semelhante.
Sete listras bem claras desenhavam,
As cores que contém de Delia o cinto
Ou stão do sol no arco, figuravam.
Cada estandarte, atrás asas distinto,
Se perdia â vista; entre eles pareciam
Dez passos se no cálculo não minto.
Por baixo de tão belo céu seguiam
Vinte e quatro anciões emparelhados:
Brancos lírios as frontes lhes cingiam.
Todos cantavam juntos: compassados
— “Entre as filhas de Adam sejas bendita!
Benditos teus excelsos predicados.” —
Quando da margem bem de fronte sita,
De fresca relva e flores guarnecida,
A grei se foi que alcançava a santa grita,
Como no céu a luz de outro é seguida,
Quatro animais após se apresentavam,
Coroados de fronde entretecida:
A cada qual seis asas adornavam,
Cobertas de olhos tantos, quantos Argo
Tinha, quando os seus vida gozavam.
De descrevê-los não faço cargo,
Leitor; a tanto ora me falta ensejo:
Nem posso neste ponto ser mais largo.
Contenta Ezequiel o teu desejo:
Ele os viu, que, do norte se arrojando,
Vinham com vento, nuve’, ígneo lampejo.
Como os pintou, estava os contemplando:
Dif’rença quanto às asas há somente;
João eu sigo, Ezequiel deixando.
Entre os quatro volvia resplendente
Com dupla roda um carro triunfante,
Por um grifo tirado altivamente,
As asas estendendo ia pujante;
No meio às listras três de cada lado,
Sem nenhuma empecer seguia avante.
Não sobe a vista ao ponto sublimado
A que se erguem; são d’ouro os membros d’ave
No mais o róseo e o níveo misturado.
Roma um plaustro não viu tão belo e grave
Do Africano em triunfo ou no de Augusto;
O do sol fora ante ele humilde trave:
Esse que, transviado foi combusto,
Da Terra quando as súplicas bradaram
E em seus arcanos Júpiter foi justo.
Dançando à destra aos olhos se mostraram
Três damas: tão rubente uma parece,
Que chamas se a cercassem a ocultaram.
A segunda tão verde resplandece,
Como composta de esmeralda bela;
A candura da neve outra escurece.
A dança dirigindo, se desvela
Ora a branca ora a rubra: o canto desta
Detém, apressa o passo ao querer dela,
À sestra fazem outras quatro festa
De púrpura vestidas: uma guia
As outras e três olhos tem na testa.
Dous anciões no couce depois via
Dif’rentes no vestir; mas igualdade
Nos gestos seus e acatamento havia.
Aluno um parecia na verdade
De Hipócrates sublime que criado
Natura tem por bem da humanidade.
Mostrava o companheiro outro cuidado
Trazendo espada tão aguda e clara,
Que onde eu stava de susto fui tomado.
De humilde aspeito a vista me depara
Mais quatro: segue o velho, que, distante,
Cerra os olhos mas luz a face aclara.
Os sete como os quatro de diante
Trajando a fronte sua têm cingida,
Não de c’roa de lírios alvejante,
Mas de purpúreas flores rubescida:
Um tanto longe ao vê-los me parece,
Que a testa a cada qual stava incendida.
E, quando o carro em face me aparece,
Rompe um trovão e a santa companhia,
Atendendo ao sinal pronta obedece:
Pára o cortejo e quanto o antecedia.
CANTO XXX
[ Acolhida festivamente pelos anjos e pelos bem-aventurados, desce do Céu, Beatriz (a divina sabedoria) e pousa no carro. Nisto Virgílio (a humana sabedoria) desaparece. Ela dirige-se a Dante e lhe exprobra os seus desvios. Dante chora; e os anjos se compadecem dele. Beatriz, dirigindo-se a eles, expõe mais particularmente quais foram as suas faltas depois da sua morte. ]
QUANDO o setentrião do céu primeiro,
Que, jamais tendo ocaso, nem nascente,
Da culpa só nublou-se em nevoeiro,
E ali fazia cada qual ciente
Do dever seu, bem como o deste mundo
Do nauta ao porto é guia permanente,
Parou, a santa grei, que ia em segundo
Lugar antes do Grifo, dirigia,
Como à paz sua ao carro olhar profundo.
Um, que do céu arauto parecia,
Veni, sponsa de Libano — cantando,
Três vezes disse, e a turba repetia.
Como, ao soar o derradeiro bando,
Hão de os eleitos ressurgir ligeiros,
Com renovada voz aleluiando,
Assim, da vida eterna mensageiros,
Cem anjos, ad vocem tanti senis
Elevaram-se ao carro sobranceiros.
Diziam todos: — Benedictus qui venis!
Modulavam, lançando em torno flores:
Manibus, oh, date lilia plenis!
Já vi do dia aos lúcidos albores
Em parte o céu de rosicler tingido,
Estando em parte azul e sem vapores,
E o sol, nascendo em nuvens envolvido,
Permitir que se encare em seu semblante,
Entre véus nebulosos escondido:
Tal, em nuvem de flores odorante,
Que de angélicas mãos sobe fagueira
E cai no carro e em torno a cada instante,
De véu neves cingida e de oliveira,
Uma dama esguardei com verde manto
E veste em cor igual à da fogueira.
E o espírito meu que, tempo tanto
Havia já, não fora ao seu conspeito,
Trêmulo, entrando de soçobro e espanto,
Antes que aos olhos se mostrasse o aspeito,
Sentiu, por força oculta que desprende,
Do antigo amor, o poderoso efeito.
Quando essa alta influência em mim descende,
Que desde o alvor primeiro da existência
Da alma as potências me avassala e rende,
À sestra me voltei com diligência,
Qual infante da mãe correndo ao seio,
Se dor ou medo assalta-lhe a inocência,
Por dizer a Virgílio: — “Neste enleio,
Meu sangue em cada gota é convulsado,
De amor na antiga flama eu me incendeio.”
Mas ai! Virgílio havia-se ausentado,
Virgílio, o pai dulcíssimo e amoroso,
Virgílio, a quem, por me salvar, fui dado!
Quanto perdeu neste lugar formoso
Eva, não tolhe as lágrimas no rosto,
Que o rocio me lavara milagroso.
— “Não haja por Virgílio ir-se, desgosto;
Não te entregues ao pranto agora, ó Dante;
Por dor mais viva ao pranto sê disposto.” —
Como em revista às naus sábio almirante
Nas manobras feroz a dura gente
E os corações esforça vigilante,
Do carro à borda, à esquerda, incontinênti,
Quando voltei-me ao nome proferido,
Que por ser dito aqui vem simplesmente,
A dama vi que tinha aparecido
Velada em meio da divina festa,
Tendo, além-rio, o gesto a mim volvido.
Conquanto o véu, que lhe cingia a testa,
Que de Minerva fronde coroava,
A face não deixasse manifesta,
No régio continente que ostentava
Desta arte prosseguiu; porém dizendo
O mais acerto para o fim guardava:
— “Oh! Sou eu! Sim! Beatriz stás vendo!
Pois te hás dignado de ascender ao monte
Ter aqui dita o homem já sabendo?” —
Os olhos inclinando à pura fonte
Vi minha imagem; logo os volto a um lado,
Tanta vergonha me acendia a fronte!
Qual mãe, que o filho increpa em tom maguado,
Pareceu-me: porque se torna amara,
A piedade que pune, ao castigado.
Calou-se ela e dos anjos a voz clara
— “In te, Domine, speravi” — de repente
Entoa, mas em pedes meos pára.
Da terra italiana em serra ingente
Da esclavônia por ventos contraída
Entre as selvas congela a neve algente;
Depois liquesce e corre derretida
Ao quente sopro, que do sul procede,
Como cera de flamas aquecida;
Tal o soçobro as lágrimas me impede
Antes de ouvir a angélica toada,
Que o hino dos eternos orbes mede.
Mas quando, em seus concentos expressada,
Compaixão vejo mais do que se houvessem
Dito: — “Senhora, por que és tanto irada?”,
No peito meu os gelos se amolecem;
Dos lábios e dos olhos irrompendo,
Com lágrimas soluços aparecem.
Firme no carro, à destra se volvendo,
Ela aos pios espíritos dizia,
Do cântico às palavras respondendo:
— “Vigilantes estais no eterno dia;
Jamais por noite ou sono distraída,
Do tempo os passos vossa vista espia.
“Minha resposta, pois, vai dirigida
Àquele, que ora ao pranto os olhos solta:
A culpa seja pela dor medida.
“Dos céus, não pela ação, na imensa volta,
Que para um fim conduz cada semente,
Segundo os astros, que lhe vão na escolta,
“Se não de graças por divina enchente,
Que chovem sobre nós dessa eminência,
A que se alar nem pode a nossa mente,
“Este homem foi na aurora da existência,
De tais dotes ornado, que pudera
Da virtude alcançar toda a excelência.
“Se, porém, a incultura se apodera
Ou semente ruim do bom terreno,
Plantas mali’nas, peçonhentas gera.
“Conservou-se ante mim puro e sereno:
Meus olhos, em menina, o conduziram
Pelo caminho mais seguro e ameno.
“Tanto que umbrais à vista se me abriram
Da idade segunda e desta vida,
Deixou-me; outros enlevos o atraíram.
“Quando em espírito eu fora convertida
E beleza e virtude em mim crescera,
Em menos preço fui por ele havida.
“Por fraguras fugiu da estrada vera,
Em fingidas imagens enlevado,
De que jamais se alcança o que se espera.
“Inspirações em vão hei-lhe impetrado
Em sonhos, em vigília o bem mostrando:
Cego, correu pelo caminho errado.
“Já todo o esforço meu se malogrando,
Para salvá-lo do perigo eterno
Quis que baixasse ao reino miserando.
“Foi neste empenho que desci ao inferno,
E à sombra, que de guia lhe há servido,
Fiz o meu rogo lacrimoso eterno.
“O preceito de Deus fora infringido,
Se ele do Letes transcendesse as águas,
Se lhe fosse prová-las permitido,
Sem seu preço pagar em pranto e mágoas.” —
CANTO XXXI
[ Beatriz continua repreendendo a Dante, o qual confessa os seus pecados. Matilde o mergulha, então, no rio Letes. Depois as sete damas que participavam da procissão (as quatro virtudes cardiais e as três virtudes teologais) o levam até Beatriz, pedindo a ela que se desvele diante do seu fiel. Beatriz tira o véu. ]
“Ó TU que estás além da água sagrada”
— Prosseguiu Beatriz incontinênti,
A ponta a mim voltando dessa espada,
Que de revés já fora assaz pungente —
“Diz se é verdade, diz! À culpa unida
Esteja a confissão do penitente.” —
Tanta a força mental foi confrangida,
Que a voz desfaleceu, se erguer tentando,
Expirou-me nas fauces inanida.
Esperou; disse após: — “Que estás pensando?
Responde: inda não tens nágua apagado
Lembranças do passado miserando?” —
No meu enleio, de temor travado,
Um tão confuso sim, trêmulo, expresso,
Que houve mister dos olhos ajudado.
Como em besta entesada em grande excesso,
Quebrando-se arco e corda, parte a seta
E no alvo dá sem força do arremesso,
Stando minha alma em tanto extremo inquieta
E em suspiros e lágrimas rompendo,
Perdeu a voz o som, que a língua enceta.
— “Se ao meu querer” — prossegue — “obedecendo
Tinhas fanal, que ao bem te conduzisse,
De anelos teus a mira ser devendo,
“Onde o poder de estorvos, que impedisse
Teus passos? Quais grilhões que os retivessem
Na vereda, que avante ir permitisse?
“Houve encantos, que a outros te prendessem,
E delícias, que tanto te atraíram,
Que a tua alma enlear assim pudessem?” —
Do peito agros suspiros me saíram;
Para falar-lhe apenas tive alento,
E a voz a custo os lábios exprimiram.
Tornei chorando: — “O engano, o fingimento
Ao terreno prazer me hão transviado,
Em vos nublando a face o passamento.” —
— “Se ocultaras” — falou-me — “o teu pecado,
A graveza da culpa ao claro vira
Aquele, por quem deves ser julgado.
“Mas se o réu, confessando, tem na mira
O pesar do mau feito, em nossa corte
Contra o fio da espada a mó se vira.
“Entanto, por que seja em ti mais forte
De errar o pejo e, no porvir ouvindo
Sereias, não procedas de igual sorte,
“Escuta-me, os teus prantos consumindo:
Verás que, inda sepulta, eu te guiara,
Pela contrária rota conduzindo.
“Jamais arte ou natura te mostrara
Enlevo, quanto a rara formosura
Do corpo, em pó tornado, em que eu morara.
“Se comigo baixara à sepultura
Teu supremo prazer, como arrastar-te
Pôde, após si, mortal delícia impura?
“Enganos tais sentindo saltear-te,
Aos céus alçando a mente deverias
Té minha eternidade sublimar-te,
“E não baixar do vôo, em que subias
Te expondo a novos tiros, atraída
Por jovem, por vaidades fugidias.
“Será duas, três vezes iludida
Ave inexperta; mas a seta, o laço
Pássaro velho esquiva, apercebido.” —
Qual menino, que a mãe por largo espaço
Increpa; e, baixa a fronte, envergonhado
Reconhece em silêncio o errado passo,
Tal me achava. — “De ouvir se estás magoado.
Levanta a barba!” — ainda prosseguia —
“Olhando-me, hás de ser mais castigado!” —
Com menos resistência abateria
De Europa o vendaval carvalho altivo
Ou da terra, que a Jarba obedecia,
Do que eu alcei o rosto pensativo;
Quando ela disse barba e não semblante
A malícia notei e o seu motivo.
Olhos erguendo alfim, do mesmo instante
Aos ares vi que flores não lançava
A falange dos anjos radiante.
Tímida a vista a Beatriz achava
Voltada ao Grifo, que uma só pessoa
Em naturezas duas encerrava.
Além do rio sob o véu e a c’roa
Tanto excede a beleza sua antiga
Quanto em vida as que mais fama apregoa.
E do pesar pungiu-me tanto a urtiga,
Que das cousas, que mais na terra amara
A mais cara odiei como inimiga.
Remorso tal a mente me assaltara,
Que vencido tombei: qual fiquei sendo
Sabe quem dor tão viva motivara.
Ao coração a força me volvendo
Notei a dama, que primeiro eu vira
Ao lado meu, — “Abraçai-me!” — dizendo.
Té ao colo no rio me imergira;
E correndo, qual leve lançadeira,
Das águas sobre a tona a si me tira.
Já próximo à beatífica ribeira,
Ouvi Asperges me tão docemente,
Que o não descrevo ou lembro, inda que o queira.
Matilde, abrindo os braços de repente,
Cingiu-me a fronte e súbito afundou-me;
Era dessa água haurir conveniente.
Assim purificado, ela guiou-me
Das damas quatro para a dança bela,
E cada uma nos braços estreitou-me.
— “Cada qual, ninfa aqui, nos céus estrela,
Antes que Beatriz descesse ao mundo,
Servas de ordem suprema somos dela.
“Os seus olhos verás; mas no jucundo
Lume interno hás de ter vista aguçada
Pelas três cujo olhar é mais profundo.” —
Modulando na angélica toada,
Ante o Grifo consigo me levaram:
Lá Beatriz para nós era voltada.
— “Em contemplar sacia-te!” — falaram —
“As esmeraldas que ora tens presentes,
Donde os farpões de amor te vulneraram.” —
Mais que a flama desejos mil ardentes
Prenderam olhos meus aos seus formosos,
Na adoração do Grifo persistentes.
Qual sol no espelho, nesses luminosos
Astros o Grifo se alternando, eu via
Seres dois refletir misteriosos:
Meu espanto, ó leitor, qual não seria
Vendo o objeto na imagem transmutado,
Quando constante em si permanecia?
Enquanto eu de prazer e pasmo entrado,
Esse doce manjar stava gozando,
Que sacia mas sempre é desejado,
De ordem mais alta ser manifestando
Pelo meneio, as três se adiantaram,
Por angélico estilo modulando.
“Os olhos santos, Beatriz” — cantaram —
“Oh! volve ao servo teu leal constante
A quem por ver-te os passos não custaram.
“Nos dá por grã mercê que o fido amante
Sem véu segunda formosura
Contemple nesse divinal semblante!” —
Ó resplendor da luz eterna e pura!
Quem do Parnaso à sombra descorando
E da água sua haurindo alma doçura,
Aturdido não fora, se arrojando
A tentar descrever qual te mostraste,
Quando o céu de harmonias te cercando,
Ao ar patente a face revelaste?
CANTO XXXII
[ Dante olha com amor a Beatriz. No entanto o carro, seguido pela procissão dos bem-aventurados, se move em direção a um árvore elevadíssima e despida de folhagem. O grifo ata o carro à árvore e esta logo cobre-se de flores. O Poeta adormece. Ao despertar vê Beatriz, rodeada das sete damas, sentada ao pé da árvore. Acontecem, depois, no carro fatos maravilhosos que causam ao Poeta surpresa e medo. ]
COM tão sôfregos olhos saciava
A sede, em que anos dez eu me incendia,
Que aos mais sentidos toda a ação cessava.
Quase murada a vista se imergia
No santo riso ao mais indiferente,
E nos laços de outrora me prendia.
Desse êxtase arrancou-me de repente
A voz das santas, que da esquerda soa:
— “Demais contemplativa tens a mente!” —
Os ofuscados olhos me nevoa
Torvação semelhante ao vivo efeito,
Que do sol causa a face em quem fitou-a.
Mas quando à pouco luz estive afeito
(Pouca em confronto ao lume deslumbrante,
Que por força deixara e a meu despeito),
Vi que à destra volvia o triunfante
Exército celeste à frente estando
Os candelabros sete e o sol flamante.
Qual hoste a se salvar broquéis alçando,
Se volta, e co’a bandeira não prossegue
Senão mudada a direção, girando;
A celeste milícia avante segue,
Na marcha procedendo desfilava
Antes que o santo carro a volver chegue.
Cada coréia as rodas escoltava,
E o Grifo a carga santa removia
Sem parecer que as penas agitava.
Quem pelo rio me arrastado havia,
Estácio e eu a roda acompanhamos,
Que por arco menor volta fazia.
Na alta floresta caminhando vamos,
Erma por culpa da que a serpe ouvira:
Pelo cântico os passos regulamos.
Andáramos espaço que medira
Uma seta três vezes disparada:
Desceu Beatriz do carro, em que eu a vira.
“Adam!” — disse em murmúrio a grei sagrada,
Todos depois uma árvore cercaram,
De folhas e de flores despojada.
Tanto aos lados seus ramos se alargaram,
Quanto erguiam-se ao céu: como portento
índios nas selvas suas os mostrariam.
“Ó Grifo! Glória a ti! De culpa isento,
Não provaste do lenho doce ao gosto,
Que tanta dor causou, tão cru tormento!” —
Daquele tronco excelso em torno posto,
Diz o préstito; e o Grifo lhe contesta:
— “Assim justiça é sempre no seu posto.” —
E ao carro que tirara na floresta,
Voltou-se e o conduziu ao tronco anoso:
Dele foi parte, a ele atado resta.
Quando o astro rebrilha poderoso,
Juntando os seus clarões aos que desprende,
Depois do Peixe o signo luminoso,
Brotando as plantas cada qual resplende
De esmalte novo, e ainda de outra estrela
Abaixo os seus frisões o sol não prende:
Súbito assim refloresceu aquela
Árvore nua, gradações formando
Entre rosa e violeta em cópia bela.
Então de um hino as notas escutando,
Quais nunca sobre a terra se cantaram,
Não pude resistir a som tão brando.
Se eu narrasse como olhos se fecharam
De Argo impiedosos, de Sírius ao conto
Que o seu nímio velar caro pagaram,
Pintor, tirara ao natural e em ponto
O sono em que engolfei-me docemente;
Mas faça-o quem nessa arte forma pronto!
Passo ao momento em que espertou-se a mente:
Fulgor ao sono intenso o véu rompia,
— “Eia! que fazes?” — ouço incontinênti.
Quais vendo que de flores se cobria
O linho cujo pomo apetecido
Na boda eterna os anjos extasia,
João, Pedro e Tiago ao seu sentido,
Depois da prostração à voz tornaram,
Que sono inda maior tinha vencido,
E a companhia decrescida acharam
De Elias e Moisés enquanto as cores
Sobre a estola do Mestre se mudaram:
Tal despertei da luz aos esplendores,
Vi perto a dama que me fora guia
Do rio à margem sobre a relva e as flores.
— “Onde é Beatriz?” — cuidoso lhe dizia.
— “Da fronde nova à sombra a vês sentada,
Junto à raiz” — Matilde respondia.
“Da companhia sua é rodeada;
Ao céu após o Grifo os mais subiram,
Com mais doce canção, mais sublimada.” —
Não sei se as vozes suas prosseguiram
Pois aquela aos meus olhos se mostrara,
Em quem meus pensamentos se imergiram.
Sobre a terra bendita se assentara,
Só, como em guarda ao plaustro portentoso,
Que ao tronco antigo o Grifo vinculara.
Rodeiam-na, com círculo formoso,
As ninfas sete, os lumes empunhando,
Seguros de Austro e de Aquilão ruidoso.
— “Na selva a tua estada abreviando,
Serás comigo na eternal morada
Da Roma, onde tem Cristo o régio mando.
“Do mundo em prol, perdido em rota errada,
O carro observa e cada cousa atento
Guarda, por ser ao mundo registrada.” —
Falou Beatriz; e eu, pois, que o entendimento
Do seu querer aos pés tinha prostrado,
Fitei no carro a vista e o pensamento.
Dos etéreos confins arremessado,
Não rasga o raio à densa nuve, o seio,
Com tanta rapidez precipitado,
Como da alta ramada pelo meio,
Córtice fronde, flores destruindo,
O pássaro de Jove irado veio.
Com força imane o carro foi ferindo,
Que aos golpes, qual navio, se agitava,
Que o mar combate os bordos lhe investindo.
E logo após eu vi que se enviava
Ao carro triunfal uma raposa,
Que bom cibo não ter manifestava.
Increpando-lhe a vida criminosa,
Beatriz pô-la em fuga, e em tanta pressa,
Quanto sofreu-lhe a ossada cavernosa.
Depois do carro à caixa a Águia se apressa
A vir por onde, há pouco, descendera;
De inçar de plumas seus coxins não cessa.
Qual gemido que a dor no peito gera,
Ouvi do céu baixar voz, que dizia:
— “Ó barca! bem má carga ora se onera!” —
A terra então me pareceu se abria,
Entre as rodas um drago arrevessando
Que pelo carro a cauda introduzia.
Depois a cauda atroce retirando,
Qual vespa o seu ferrão, feita a ferida,
Arranca o fundo e vai-se coleando.
Como em terra vivaz relva crescida,
Cobre o resto plumagem de repente,
Com tenção casta e pura oferecida;
Timão e rodas vestem-se igualmente
Tão presto, que um suspiro vem lançado
À flor dos lábios menos prontamente.
Daquele plaustro santo, assim mudado,
Nos ângulos cabeças irromperam,
Três no timão e uma em cada lado.
Essas, como as de boi, armadas eram;
Uma só ponta as quatro guarnecia:
Monstros iguais já nunca apareceram.
Qual penhasco em montanha excelsa, eu via
No carro nua meretriz sentada,
Lascivos olhos em redor volvia.
Como para não ser-lhe arrebatada
Em pé ao lado seu stava um gigante,
Com quem trocava beijos despejada.
Que os olhos requebrava a torpe amante
Pra mim notando, fero a flagelava
Dos pés a fronte o barregão farfante.
No ciúme e na ira, que o inflamava
Desprende o carro e à selva o vai tirando,
Que depressa aos meus olhos ocultava
A prostituta e o novo monstro infando.
CANTO XXXIII
[ Beatriz anuncia, com linguagem misteriosa, que brevemente aparecerá quem libertará a Igreja e a Itália da servidão e da corrupção. Impõe-lhe que escreva o que viu. Pede, depois, a Matilde que o mergulhe nas águas do rio Eunoé. Dante, depois da imersão, sente-se mais forte e disposto a subir às estrelas. ]
DEUS, venerunt gentes, alternando,
Em coros dois, suave melodia
Cantam as ninfas, pranto derramando.
E Beatriz, a suspirar, ouvia
Tão dorida, que pouco mais, outrora
Junto da Cruz mostrara-se Maria.
Quando lhe coube alçar a voz canora,
Entre as formosas virgens posta em pé,
Com santo ardor, que as faces lhe colora:
“Modicum et non videbitis me,
Caras irmãs, et iterum” — tornava —
“Modicum et vos videbitis me”.
Depois, antes de si as colocava,
E a mim e a dama e ao Vate, que restara,
Pra seguir os seus passos acenava.
Ia assim: que ela houvesse eu não julgara
O seu décimo passo em terra posto,
Eis sua vista na minha se depara.
— “Mais perto” — disse com sereno rosto —
“Caminha; pois falar quero contigo,
E o leves a me ouvir star bem disposto.” —
Beatriz, logo em tendo-me contigo,
— “Por que” — prossegue —“irmão não hás querido
Me inquirir, quando vens assim comigo?” —
Fiquei, como o que o espírito aturdido,
Ao seu superior falando sente,
E apenas balbucia confundido.
Falei, com voz cortada, reverente:
— “Quanto hei mister sabeis mui bem, senhora,
O que seja em prol meu sabeis prudente.” —
— “De temor e vergonha desde agora” —
Tornou — “isento sê, stando ao meu lado:
Como quem sonha as vozes não demora!
“A caixa, que a serpente há devastado,
Já foi: de Deus castigo aos criminosos
Ser não pode por sopa obliterada.
“Não faltarão herdeiros cuidadosos
Da águia, que ao carro as suas plumas dera,
E o tornou monstro e presa aos cobiçosos.
“Vejo o porvir e a voz minha assevera
O que propínquos astros anunciam:
Nada os estorva, nem seu curso altera.
“Um quinhentos dez cinco prenunciam,
Que o céu manda a punir a depravada
E o gigante: ambos juntos delinquiam.
“A narração, talvez, de treva inçada,
Como as do Esfinge e Têmis não a entendas,
Por parecer-te ao spírito enleada.
“Farão, porém, os fatos que a compreendas;
Quais Náiades, darão do enigma a chave,
Sem dano ao trigo, ao gado, sem contendas
“Que na memória tua isto se grave:
Como te falo, assim o ensina aos vivos
Que se afanam em buscar morte insuave.
“Lembra os que hás visto feitos aflitivos.
Da árvore o stado narra, que te espanta,
Quanto sofreu assaltos dois esquivos.
“Quem despoja ou mutila a sacra planta
Blasfema a Deus, de fato o ofende ousado:
Para o seu uso só a criou santa.
“Sperou a primeira alma, que há provado
Do seu fruto, anos mil cinco gemendo
Por quem penas em si deu do pecado.
“Tua alma dorme, se não stá sabendo
A causa singular, que a planta há feito
Tão alta, o cimo tal largura tendo.
“Se da água d’Elsa não trouxesse o efeito
O teu vão cogitar sobre essa mente,
Que escurece, qual sangue à amora o aspeito
“Fora o que eu disse já suficiente
Para o justo preceito compreenderes,
Que Deus há posto sobre o tronco ingente.
“Como te ofusca a luz dos meus dizeres.
Porque de pedra tens o entendimento,
Que, afeito à culpa, não permite veres,
“Uma imagem te guarde o pensamento,
Como palma ao bordão junta, voltando,
Peregrino, em remédio ao esquecimento.” —
— “No cérebro, qual cera conservando” —
Tornei — “a marca do sinete impresso,
Vosso verbo se irá perpetuando.
“Mas por que se sublima em tanto excesso
Vossa palavra, sempre apetecida,
Que, alcançá-la tentando, desfaleço?” —
— “Por veres” — diz — “que escola pervertida,
Hás cursado, o que, pois, sua doutrina
Ao verbo meu não pode ser erguida;
“Pois a vereda vossa da divina
É tão remota, quanto está distante
Da terra o céu que ao alto mais se empina” —
— “Não me lembro” — respondo à excelsa amante
“De ter-me às vossas leis nunca esquivado:
Não diz-mo a consciência vigilante.” —
— “Possível é que estejas olvidado” —
Respondeu-me a sorrir — “tem na lembrança
Que inda há pouco, hás do Lete água tragado,
“E se de flama o fumo dá fiança,
Que o teu querer no erro andou perdido
Demonstra o olvido teu com segurança.
“Será da minha voz claro o sentido,
Por que mais facilmente de ora avante
Da rude mente seja percebido.” —
Mais demorado, entanto, e coruscante
No círc’lo entrava o sol do meio-dia,
Como os climas diversos variante,
Quando as damas, bem como astuto espia,
Que, precedendo a tropa, de andar cessa,
Se acaso novidade se anuncia,
Paravam, ao sair da sombra espessa,
Qual aos frios arroios murmurantes
Dos Alpes bosque verde-negro of’reça.
Julguei ver Tigre e Eufrates não distantes
Brotar da mesma fonte juntamente
E separar-se lentos, quais amantes.
— “Ó glória! ó esplendor da humana gente!
Qual é, dizei-me, essa água, bipartida
Depois de proceder de uma nascente?” —
— “Ser-te deve a pergunta respondida
Por Matilde” — tornou-me então, falando
Em tom de quem por falta fosse argüida,
A dama disse: — “Tudo lhe explicando
Já stive: não podia haver efeito
Do Letes, a lembrança lhe apagando.” —
E falou Beatriz: — “Pode ter feito
Escura a mente sua o mor cuidado,
Que o entendimento às vezes torna estreito.
“Eis Eunoé, que o curso há derivado:
Conduze-o e, como sabes, o imergindo,
Seu coração alenta desmaiado.” —
Como alma nobre, ao bem nunca fugindo,
Faz do estranho querer própria vontade,
Quando um simples sinal o está pedindo,
A gentil dama, usando alta bondade,
Guiou-me e a Estácio disse, que atendia:
— “Segue-o também” — com garbo e majestade
Esse doce licor, que não sacia,
Eu cantara, leitor, se desse ensejo
Da página uma parte inda vazia.
Mas, porque todas ocupadas vejo
E ao meu segundo Cântico aplicadas
Da arte o freio me tolhe esse desejo.
Como de planta as folhas renovadas
Mais frescas na hástea mostram-se, mais belas,
Puro saí das águas consagradas
Pronto a me alar às lúcidas estrelas.
PARAÍSO
CANTO I
[ Invocando Apolo, o Poeta conta como do Paraíso Terrestre ele e Beatriz se alçaram ao Céu, atravessando a esfera do fogo. Beatriz explica-lhe como possa vencer o próprio peso e subir. É atraído pelo invencível amor. Seguindo as teorias de Ptolomeu, Dante põe a terra imóvel no centro do Universo e, em redor dela, em órbitas concêntricas, os céus da Lua, de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, a oitava esfera, que é a das estrelas fixas, a nona, ou primeiro móvel, e finalmente o Empíreo, que é imóvel. Transportado pela força que faz rodar os céus e pela luz sempre crescente de Beatriz, Dante eleva-se de um céu para outro, e em cada um deles aparecem-lhe os espíritos bem-aventurados que, quando vivos, possuíram a virtude própria do respectivo planeta. ]
À GLÓRIA de quem tudo, aos seus acenos,
Move, o mundo penetra e resplandece,
Em umas partes mais em outras menos.
No céu onde sua luz mais aparece,
Portentos vi que referir, tornando,
Não sabe ou pode quem à terra desce;
Pois, ao excelso desejo se acercando,
A mente humana se aprofunda tanto
Que a memória se esvai, lembrar tentando.
Os tesouros, porém, do reino santo,
Que arrecadar-me pôde o entendimento,
Serão matéria agora de meu canto.
Faz-me neste final cometimento,
Bom Febo, do teu estro eleito vaso,
Que tenha ao louro amado valimento.
Fora-me assaz um cimo do Parnaso;
Daquele e do outro necessito agora
Para vencer na liça a que me emprazo.
Cala em meu peito, alenta o que te exora!
Sê como quando a Marsias arrancado
Hás do corpo a bainha protetora!
Se, divinal virtude, eu for entrado
Tanto de ti, que a sombra represente
Do reino que em minha alma está gravado,
Ao teu querido lenho eu, diligente,
Irei, por ter a c’roa merecida
De ti e deste assunto preminente.
Tão rara vez é, Padre, igual colhida
Quando triunfa César ou poeta
(Culpa e vergonha do querer nascida)
Que à Délfica Deidade a predileta
Fronde excitar devera alta alegria,
Se um coração por tê-la se inquieta.
Grande incêndio em centelha principia;
Voz, após mim, talvez, mais eloqüente
Mais graça em Cirra alcance e mais valia!
Por várias portas surge refulgente
A lâmpada do mundo; mas daquela,
Onde orbes quatro brilham juntamente
Com três cruzes, caminha sob estrela
Melhor, em modo que a mundana cera
Mais ao seu jeito retempera e assela.
Dali nascia a luz; daqui viera
A noite; e um hemisfério branquejava
Enquanto ao outro a treva enegrecera,
Eis vi que à esquerda Beatriz fitava
Olhos no sol: jamais águia afrontara
Tanto desse astro o lume, que ofuscava.
Como o raio, que a luz de si despara,
Reflete outro, que preito retrocede,
Qual romeiro, que à volta se prepara,
Esse ato, com que assim Beatriz procede,
Meu se tornou nos olhos infundido,
E o fitei mais que a um homem se concede.
Muito do que é na terra defendido,
No Paraíso é dado à humana gente,
A quem fora por dote prometido.
Fitar o sol não pude longamente.
Mas assaz para o ver fulgir no espaço,
Qual ferro, que do fogo sai candente.
Eis cuidei ver um dia, ao mesmo passo,
Luzir com outro, qual se Deus fizera
Do céu um sol segundo no regaço.
Sorvidos Beatriz na eterna esfera
Os olhos tinha; os meus que eu desviara
Dali no seu semblante embevecera.
Contemplando-a, o meu ser se transformara;
Tal Glauco, portentosa erva comendo,
Igual do mar aos Deuses se tornara.
Significar per verba não podendo
O que é transumanar o exemplo baste
Ao que o exp’rimente, a graça recebendo.
De ti, que por teu lume me exaltaste,
Amor do meu Senhor é conhecido,
Se em mim somente havia o que criaste.
Quando as Sferas, no giro, conduzido
Por ti no eterno anelo, me enlevaram
Com hino ao teu compasso dirigido,
Tantos etéreos plainos se mostraram
Inflamados do sol, que nunca os rios,
Nem as chuvas um lago igual formaram.
Essa luz, esses sons (jamais ouvi-os)
De saber tais desejos me acenderam
Que tão pungentes de antes não senti-os.
Ela em meu coração os viu como eram:
Por serenar-me o ânimo agitado,
Sem me escutar, seus lábios se moveram,
E disse: — “O teu espírito anda errado
Com falso imaginar: ’starias vendo
O que não vês, se houveras afastado.
“Te enganas, sobre a terra achar-te crendo:
O raio tão veloz do céu não desce,
Como tu que p’ra o céu vais ascendendo.” —
Se a dúvida primeira desaparece,
À voz que o riso segue, lhe escutando,
Inda mais outra a mente me escurece.
— “Modera-se o meu pasmo” — lhe tornando
Falei — “mas ora muito mais me admira
Como estes corpos leves vou passando.” —
Ouvindo, Beatriz terna suspira
E me encara piedosa, com semblante
De mãe que fala ao filho que delira.
— “Conservam” — respondeu-me — “ordem constante
As cousas entre si: esta é a figura
Que o universo ao Senhor faz semelhante.
“Ali vê cada uma alta criatura
Do Poder Sumo, bem ao claro, o selo,
Alvo sublime, que essa lei procura.
“Cada um entre na ordem, que eu revelo,
Se vai por modos vários inclinando,
Mais ou menos, ao seu princípio belo.
“Para portos dif’rentes navegando
No vasto mar do ser, cada qual segue
Os instintos que Deus lhe deu, criando.
“Por Ele a flama à lua alar consegue,
Por Ele o coração mortal se agita
E a terra em sua contração prossegue.
“Seu poder não somente se exercita,
Qual arco em seta, em bruto inconsciente,
Mas nos entes, que amor, razão concita.
“Tudo ordenando, o Autor Onipotente
Com sua luz tem o céu sempre aquietado,
Em que gira o que vai mais velozmente.
“Até lá, como a um alvo decretado,
Desse arco impele a força poderosa,
Quem conduz tudo a venturoso estado.
“Mas, como, às mais das vezes, revoltosa
A forma não responde ao intento da arte,
Porque a matéria é na surdez teimosa,
“Assim desta vereda se desparte
A criatura, para o bem guiada,
Que pode propender para outra parte,
“Se, de falso prazer sendo arrastada,
Baixa à terra, qual fogo desprendido,
De súbito, da nuvem carregada.
“Não seja mais de espanto possuído:
Como ao val rio cai de monte altivo,
Para a esfera estelífera és erguido.
“De maravilha fora em ti motivo
Não subindo; pois stás de estorvo isento;
Não fica imoto em terra o fogo vivo.” —
Disse e os olhos fitou no firmamento.
CANTO II
[ Sobem à lua. Exortação aos leitores. Dante pergunta a Beatriz se as manchas da lua dependem da maior ou menor densidade do astro. Beatriz confuta o erro. Todos os astros são iluminados pela virtude que do primeiro móvel se difunde aos céus sotopostos. Na lua a virtude é menor que nos outros céus. ]
VÓS, que em frágil barquinha navegando,
Desejosos de ouvir, haveis seguido
Meu baixel, que proeja e vai cantando,
Volvei à plaga, donde haveis partido,
O pélago evitai; que, em me perdendo,
Vosso rumo talvez tereis perdido.
Ondas ninguém cortou, que vou correndo,
Sopra Minerva e me conduz Apolo
E o Norte as Musas mostram-me, a que eu tendo.
Vós, que, raros, a tempo haveis o colo
Erguido ao pão dos anjos, que alimenta,
Mas não sacia, no terráqueo solo,
A vossa nau guiai, de medo isenta,
No salso argento, após a minha esteira,
Enquanto água o seu sulco inda apresenta.
A que em Colcos surgiu gente guerreira,
Menos que vós, atônita ficara
Jasão vendo aplicado à sementeira.
Perpétua, inata sede nos tomara
Do império deiforme e nos levava
Quase bem como o céu, que jamais pára.
Olhava o céu Beatriz, eu a encarava.
Tão depressa talvez, quanto arrojada
Ao ar, a seta do arco se destrava,
Cousa vi, que prendeu maravilhada
A vista minha súbito; e então ela,
Que do meu cogitar stava inteirada,
Voltou-se e disse leda, quanto bela:
“A Deus eleva a mente, agradecido,
Chegados somos à primeira estrela.”
Lúcido, espesso, sólido e polido
Vulto, qual nuvem, nos cobrir parece,
Quase diamante pelo sol ferido.
Na per’la eterna entramos: assim desce
Raio de luz pela água, que recebe
No seio, mas unida permanece.
Se eu era corpo, e aqui se não percebe
Como uma dimensão outra compreende,
Senão se um corpo em outro corpo embebe,
Com mais razão desejo em nós se acende
De ver aquela essência, que é patente
Como a nossa natura a Deus se prende.
Ali o que por fé se crê somente
Sem provas por si mesmo será noto,
Como a verdade prima o que o home’ assente.
— “Ante o Senhor com ânimo devoto
Humilho-me” — tornei-lhe — “enternecido,
Pois do mundo mortal me tem remoto.
“Mas dizei: neste corpo o que tem sido
As manchas negras, com que lá na terra
Sobre Caim se hão fábulas urdido.” —
Sorriu-se e respondeu: — “Se assim tanto erra
Dos mortais o juízo no que a chave
Dos sentidos verdade não descerra,
“Não mais depois o espanto em ti se agrave;
Pois vês como, aos sentidos se rendendo,
Nos curtos vôos a razão se trave.
“Mas fala, idéias tuas me dizendo.” —
— “O que parece aqui ser diferente
De corpo raro e denso vir stou crendo.” —
— “Tu verás” — replicou — “bem claramente
Ser falsa a crença tua, se escutares
Os argumentos, que lhe oponho em frente.
— “Na oitava esfera há muitos luminares,
Nos quais, por qualidade e por grandeza,
Notam-se aspetos vários, singulares.
“Se o denso e o raro atua, com certeza
Virtude única em todos tem regência,
Influindo com mais, menos graveza:
“São as virtudes várias conseqüência
Dos princípios formais que destruídos
Seriam, exceto esse: é de evidência.
“Se são por corpo raro produzidos
Tais sinais, ou neste astro muitos postos
De matéria estão destituídos,
“Ou, como o gordo e o magro sobrepostos
No corpo vês, quadernos diferentes
Este astro em seu volume tem dispostos.
“Nesse caso estariam bem patentes
Nos eclipses do sol da luz efeitos,
Que são, nos corpos raros, transparentes.
“Assim não é. No outro, se desfeitos
Forem seus fundamentos, demonstrado
Terei teu erro em ambos os respeitos.
“Não indo o raro de um ao outro lado
Limite deve haver onde, já denso,
Não possa o corpo ser atravessado;
“E sobre si o lume torne intenso,
Bem como a cor, por vidro refletida,
Ao qual o chumbo é por detrás apenso.
“Dirás que a luz se mostra escurecida
Aí, mais do que outra e em qualquer parte,
Por ser de mais distância refrangida.
“Desta instância consegue libertar-te
Experiência, se dela te ajudares,
Por ser sói a fonte de toda arte.
“De espelhos três se a dois tu colocares
Com igual intervalo, e o derradeiro
Mais longe, entre os primeiros encarares;
“Se houveres pelas costas um luzeiro,
Que os espelhos já ditos esclareça,
Dos dois repercutido e do terceiro:
Conquanto uma extensão menor pareça
No espelho que se avista mais distante,
Verás como igual luz o resplandeça.
“Como aquecida do astro rutilante,
A neve se derrete e se esvaece,
A frigidez perdendo e a cor brilhante,
“Assim, pois que o teu erro desparece,
Mostra-te clarão vou tão refulgente,
Que cintila qual luz que do céu desce.
“No céu da paz divina um corpo ingente
Gira: em sua virtude está guardado
O ser de quanto é ele o continente.
“O céu seguinte, de astros marchetado,
Aquele ser reparte por essências
Distintas, mas que tem nele encerrado.
“Os outros céus, por várias influências,
Distinções que contêm, dispõe, lhes dando
Quanto serve aos seus fins e conseqüências.
“Esses órgãos do mundo (estás notando)
Seguem, pois, gradação, que não varia;
Vêm de cima os que abaixo vão passando.
“Comprendes já como é segura a via,
Por onde ir à verdade desejada:
Depois o vau tu passarás sem guia.
“Deve aos santos motores imputada
Ser, como ao fabro o efeito do martelo,
Dos céus a ação, desta arte revelada.
“E o céu, que tantos lumes fazem belo,
Do Ser Supremo, que no espaço o agita.
A imagem toma e a insculpe como selo.
“E como alma, que a humana argila habita,
Por diferentes membros atuando,
Faculdades diversas exercita,
“A Inteligência assim multiplicando
Dos astros nos milhões sua bondade,
Sobre a Unidade sua vês girando.
“Cada virtude, em sua variedade,
A cada precioso corpo é unida
A que dá, como em vós vitalidade.
“A virtude, em tais corpos infundida
Refulge, de um ser ledo procedente
Qual ledice em pupila refletida.
“Daí vem que uma luz de outra é dif’rente,
Não por efeito do que é denso e raro:
Esse é formal princípio eficiente
Conforme a sua ação o turvo e o claro.” —
CANTO III
[ Na lua estão as almas daqueles que não cumpriram plenamente seus votos religiosos. Aparece ao Poeta a alma de Picarda Donati, que resolve uma sua dúvida sobre o contentamento dos espíritos bem-aventurados. Narra-lhe como foi violentamente tirada do mosteiro. Indica-lhe a alma da imperatriz Constança. ]
O SOL por quem primeiro ardeu meu peito,
Provando e refutando, me mostrara
Da formosa verdade o doce aspeito.
Por confessar-me do erro, em que vagara,
Quanto possível fosse, convencido,
Mais alto a fronte para a sua alçara.
Eis fui de uma visão tal possuído,
Que olvidei meu desejo inteiramente,
Ficando em contemplá-la submergido.
Bem como em cristal puro e transparente,
Ou nágua clara, límpida e tranqüila,
Que deixa à vista o fundo seu patente,
A imagem nossa quase se aniquila,
Em modo, que uma per’la em nívea fronte
Se faz mais perceptível à pupila,
Assim, dispostas a falar defronte
Várias figuras vi: eu no erro oposto
De Narciso caí amando a fonte.
Eu, cuidando as feições do seu composto
Ver num espelho, súbito volvia,
Por bem saber quem fosse, atrás o rosto.
Ninguém vi. Logo o gesto me atraía
Da doce guia, que, a sorir-me estando,
Dos santos olhos no esplendor ardia.
— “No sorriso, não pasmes, reparando,
A causa é” — diz — “teu pueril engano,
À verdade caminhas vacilando.
“Andas em falso, como sóis, de plano:
Verdadeiras substâncias estás vendo;
Trouxe-as aqui dos votos seus o dano.
“Interroga, o que ouvires crer devendo;
Pois da verdade a luz, que as esclarece,
As conduz, de todo erro as defendendo.” —
Volto-me então à sombra, que parece
Mais desejosa de falar: torvado
Começo, e a voz impaciência empece.
— “Tu, espírito eleito, que, enlevado,
Da vida eterna aqui fruis a doçura,
Que entende só quem tem expr’imentado,
“Grã mercê me farás, se porventura
Disseres o teu nome e a sorte vossa.” —
A responder-me leda se apressura.
— “Ao bom desejo a caridade nossa,
Como a que manda a corte sua inteira
Imitá-la, defere quanto possa.
“Eu era lá no mundo virgem freira:
Diz-te a memória, se as feições me guarda,
Que sou, posto mais bela, e verdadeira.
“Atenta bem: verás que sou Picarda:
Estou nesta bendita companhia,
Venturosa na esfera, que é mais tarda.
“As nossas afeições que inflama e guia
Somente a inspiração do Esp’rito Santo,
Enlevam-se em cumprir ordens que envia.
“A sorte, ao parecer somenos tanto,
Nos coube, por ter sido descurado
O sacro voto e em parte posto a um canto.” —
Respondi-lhe: — “No aspeito sublimado
Vosso rebrilha um não sei que divino,
Que o tem do que foi de antes transmutado.
“Não fui, pois, em lembrar-me repentino;
Porém, do que disseste me ajudando,
Eu do que hás sido em recordar-me atino.
“Mas vós que estais aqui dita logrando
Não sentis de outro céu desejo ardente
Por ver mais alto mais amor gozando?” —
Sorriu-se a sombra e as outras docemente;
E disse da alegria radiante,
O seu primeiro amor como quem sente:
“Rege o nosso querer, em paz constante,
A caridade, irmão: só desejamos
O que ora temos e não mais avante.
“Anelando ir mais alto do que estamos,
Seríamos rebeldes à vontade,
A que aprouve esta estância, que habitamos.
“Pois nos cumpre existir na caridade,
Surgir não pode em nós tal pensamento,
Dessa virtude oposto à santidade.
“Condição de eternal contentamento
É preceito cumprir do Onipotente:
Um só com ele é logo o nosso intento.
“Do reino em cada plaga refulgente
Somos, do reino todo muito ao grado
E do Rei, que à sua lei nos molda a mente.
“Seu preceito a paz nossa se há tomado:
Ele é mar a que tudo precipita,
Que cria, ou faz natura ao seu mandado.” —
Conheço então que o Paraíso habita
Quem stá do céu em qualquer parte, e vejo
Não chover de um só modo a suma dita.
Mas, se um manjar sacia, dado o ensejo,
E de outro resta o apetite vivo,
Um se agradece, expondo-se o desejo.
Por gesto e voz assim fiz-me expressivo
Para a tela saber que a lançadeira
Não rematara com lavor ativo.
— “Perfeita em vida, em mérito altaneira
Acima santa está, que há regulado
Vestes e véus, com que professa freira,
“Até finar-se, vele ou durma ao lado
Desse esposo, que todo voto aceita,
Se lhe é por caridade consagrado.
“Menina e moça, à sua regra estreita
Submeti-me, e do mundo me apartando
Jurei aos seus preceitos ser sujeita.
“Roubou-me à paz do claustro iníquo bando,
Mais à maldade do que ao bem afeito:
Qual foi Deus sabe o meu viver, penando!
“Este fúlgido esp’rito, em cujo aspeito
(À direita demora-me) se acende
Quanto lume o céu nosso tem perfeito,
“O que digo de mim de si o entende;
Sendo freira, como eu foi-lhe arrancado
O santo véu, que o voto à fronte prende.
“Mas, ao mundo tornando de mau grado,
Que os seus piedosos usos ofendia,
Guardou fiel seu peito ao sacro estado.
“É a excelsa Constância a que radia:
Deu de Suábia ao Imperador segundo
Herdeiro, em que extinguiu-se a dinastia.” —
Calou-se; e logo do Ave o hino jucundo
Cantou: cantando aos olhos desparece,
Qual peso, que mergulha em mar profundo.
Segui-la a vista quis quanto pudesse;
De desejo invencível atraída,
Voltou-se, quando em todo se esvaece,
E em Beatriz fitou-se embevecida.
Mas era o rosto seu tão fulgurante,
Que ante o lume sentiu-se esmorecida.
Pelo efeito atalhei-me titubante.
CANTO IV
[ Duas dúvidas agitam o espírito do Poeta. A primeira é relativa à doutrina platônica, segundo a qual todas as almas voltam para as estrelas donde saíram. A outra, se a violência tolhe a liberdade, como pode ser justo que as almas forçadas a romper os votos tenham desconto de glória? Beatriz responde à primeira dúvida restringindo o sentido da doutrina platônica. Relativamente à segunda diz que aquelas almas não consentiram no mal, mas não o repararam, voltando ao claustro, quando tiveram possibilidade de fazê-lo. ]
DE igual modo distantes e atraentes,
Homem livre entre cibos dois morrera
De fome, antes que num metesse os dentes.
Cordeiro assim, sem se mover, temera
No meio de dois lobos truculentos;
Um galgo entre dois gamos não correra.
Calando-me entre opostos pensamentos,
Louvor não merecia, nem censura;
Necessário era então nos meus intentos,
Mas no semblante o anelo se afigura;
Constrangido silêncio o denuncia
Melhor que a voz, quando expressão apura.
Fez Beatriz, qual Daniel fazia
Para os assomos moderar da ira,
Que ao mal Nabucodonosor movia.
— “Dos desejos cada um tua alma tira”
— Disse — “e estando em tais laços enleada,
Tolhido o raciocínio, não respira.
“Discorres: se a vontade contrastada
No bem persiste, pode porventura
Em méritos julgar-se amesquinhada?
“Turbar-te inda outra dúvida procura:
Se das estrelas a alma torna ao meio,
Como Platão filósofo assegura.
“Destes problemas dois te nasce o enleio.
No derradeiro o exame principia
Porque do erro mais fel há no seu seio.
“Não têm anjo, que em Deus mais se extasia
Moisés e Samuel, João Batista,
O Evangelista, nem também Maria,
“Lugar em céu dif’rente do que a vista
De espíritos te deu que hão se mostrado:
Num só têm todos a eternal conquista.
“O Empíreo é por todos adornado,
Hão todos doce vida variamente,
Conforme o eterno sopro é facultado.
“Se nesta esfera os viste, certamente,
Não foi por destinada lhes ter sido,
Grau só denota menos eminente.
“Assim por mente humana comprendido
Será, pois se eleva ao entendimento
Do que é pelos sentidos percebido.
“Por ter do que sois vós conhecimento
A Escritura atribui, mas al entende,
Pés e mãos ao Senhor do firmamento.
“Em figurar a Igreja condescende
Gabriel e Miguel e o que a Tobia
Curou, sob a feição, que à humana tende.
“Timeu esta verdade contraria
No que acerca das almas argumenta;
Parece crer à letra o que anuncia.
“Ao seu astro voltar a alma sustenta,
Supondo que ela à terra descendera,
Quando, por forma ao corpo unida, o alenta.
“Talvez diversa idéia concebera
Do que nas vozes suas emitira,
Escarnecida ser não merecera.
“Se a honra ou vitupério atribuíra
Aos astros de influir na vida humana,
Na verdade talvez firmasse a mira.
“Mal entendido, o seu princípio dana
O mundo quase inteiro, que prestara
A Jove e a Marte adoração insana.
“A dúvida segunda te depara
Menos veneno, pois o mal, que encerra
Para longe de mim não te afastara.
“Que a Justiça Divina lá na terra
Pareça injusta é, de péssima heresia,
Argumento de fé, que jamais erra.
“Mas, como a humana mente poderia
Às alturas alar-se da verdade,
Vou dar-te, o que o desejo te sacia.
“Constrangimento havendo, se, à maldade
A vítima se opondo, em luta insiste,
Desculpa elas não têm, sem dubiedade.
“Não se abate a vontade, se persiste;
Sempre se ergue, qual flama cintilante:
A força a estorce, vezes mil resiste.
“Por menos que se dobre vacilante,
Cede à força: voltar ao santo abrigo
Puderam, tendo o ânimo constante.
“Se o querer fosse inteiro no perigo,
Como Lourenço no braseiro ardente,
Ou Múcio, que à mão sua deu castigo,
“Em livres sendo, a estrada incontinênti
Do dever seguiriam pressurosas;
Mas raro é tal valor na humana gente.
“Se atendeste, razões dei poderosas
Para ficar tua dúvida solvida:
Causa te fora a angústias afanosas.
“Mas ante os olhos ora vês erguida
Outra ainda mais grave, que, por certo,
Não fora por ti só desvanecida.
“Já te hei bem claramente descoberto
Que não pôde mentir alma ditosa
Pois da Suma Verdade é sempre perto.
“Narrou depois Picarda que extremosa
No seu amor ao véu fora Constância,
Ao revés do que eu disse cautelosa.
“Na existência há mais de uma circunstância,
Em que se faz, perigos receando,
O que é vedado ou move repugnância.
“Do pai ardentes rogos respeitando,
A sua mãe Alcmeon cortava a vida,
Por piedade impiedoso se tornando.
“Fique, pois, a tua mente convencida
De que ao querer se a força anda ajustada,
Não há desculpa à falta cometida.
“A vontade absoluta é declarada
Inimiga do mal: cede temendo
Ser, pela oposição, mais lastimada.
“A verdade absoluta em mira tendo,
Picarda discorreu: de outra eu falava.
Verdade ambas estamos defendendo.” —
Do santo rio a luz assim manava,
Da Fonte da verdade é derivada:
Cada um dos meus desejos contentava.
— “Ó do Primeiro Amante excelsa amada!
Ó santa” — eu disse — “cuja voz me anima,
Me inunda e a força aviva à alma abrasada!
“Afeto meu que ao extremo se sublima,
Não basta por tornar graça por graça:
Que o Senhor minha dívida redima!
“Não há, bem sei, não há quem satisfaça
A mente, se a Verdade não comprende
Fora da qual outra nenhuma passa.
“A mente ali se refocila e prende,
Qual fera, que em seu antro empolga a presa:
De outra sorte o desejo em vão se acende.
“E por isso ao pé nasce da certeza,
Como vergôntea, a dúvida e nos leva
De cimo em cimo até sublime alteza.
“Com toda a reverência que vos deva,
Ouso pedir-vos me expliques, Senhora,
Outra verdade, que me está na treva:
“Os rotos votos, que homem sente e chora,
Pode suprir com mérito dif’rente,
Que iguale em peso o que perdera outrora?” —
Beatriz me encarou: tão refulgente
Lhe rebrilhava o olhar e tão divino,
Que me volto, sentindo a força ausente,
E, quase aniquilado, a fronte inclino.
CANTO V
[ Continuando no discurso do canto anterior, Beatriz explica a Dante que o voto é um pacto entre o homem e Deus. Pode mudar-se a matéria do voto, mas deve ser substituída com oferecimentos de maior mérito. Beatriz lamenta a leviandade dos cristãos. Beatriz e Dante voam depois para a esfera de Mercúrio, onde estão as almas dos homens que viveram uma vida digna, adquirindo fama no mundo. Um espírito fala ao Poeta. ]
SE no fogo do amor te resplandeço
Em modo, que o terreno amor precede;
Se aos olhos teus a força desfaleço;
“Não te espantes: efeito é que procede
Desse perfeito ver, que o bem compreende,
E, o compreendendo, em se apurar progrede.
“Já patente me está quanto resplende
Na inteligência tua a Luz eterna,
Que, apenas vista, sempre amor acende;
“E, se outro objeto humano amor governa,
Vestígio dela é só mal percebido,
Só transluzindo em sua forma externa.
“Saber queres se um voto não cumprido
É de outras obras resgatado, e tanto,
Que em juízo de Deus fique absolvido.” —
Começou Beatriz desta arte o canto;
E, como quem no discorrer não pára,
Seguiu assim no seu elóquio santo:
“O mor bem que ao universo Deus doara,
O que indicara mais sua bondade
O que em preço mais alto avaliara,
“Foi do querer, por certo, a liberdade,
Que a toda criatura inteligente
Há dado em privativa faculdade.
“Daqui, por dedução, fica evidente
Do voto a alta valia, quando é feito
Por acordo entre Deus e a humana mente.
“Por contrato, entre Deus e o home’ aceito,
Esse tesouro é vítima imolada,
Que ao sacrifício vai com ledo aspeito.
“Pode ser porventura compensada?
Se cuidas usar bem do que ofertaste,
Crês fazer bem com prata mal ganhada.
“Certo do ponto capital ficaste;
Com a dispensa a Igreja, parecendo
Em tal caso contrário ao que escutaste,
“Convém, que um pouco à mesa te detendo,
Para o rijo manjar, que hás ingerido,
Socorro aguardes, que te dar pretendo.
“Ao que te explico atento presta ouvido
E guarda-o na alma; pois não dá ciência
Ouvir o que depois fica no olvido.
“Exige do sagrado voto a essência
Aquele objeto em sacrifício dado
E do próprio contrato a consistência.
“Jamais pode ser este obliterado,
Ainda que infringido: já bem clara
Demonstração sobre este ponto hei dado.
“Lei rigorosa a Hebreus determinara
Fazer pia oblação; mas concedida
A permuta da oferta lhes ficara.
“Da matéria do voto é permitida
Conversão quando ensejo se oferece,
Sem ser por isso falta cometida.
“Mas não se muda, quando bem parece,
O fardo; só se a Igreja, tendo usado
Das chaves de ouro e prata, o concedesse.
“Crê que toda permuta é passo errado,
Quando o antigo no novo não se inclua,
Bem como quatro em seis vês encerrado.
“Se o voto é tal na gravidade sua,
Que obrigue a se inclinar toda balança,
Outro voto não há, que o substitua.
“Não contraí, mortais, votos por chança!
Cumpri-os, mas não Jefté imitando,
A quem deu louco voto a desesp’rança.
“— Fiz mal! — dissesse ao voto seu faltando,
Por não fazer pior cumprindo-o. Estulto
Foi o potente Rei dos gregos, quando
“À filha fez chorar seu belo vulto
E à piedade moveu quantos ouviram
Falar daquele abominável culto.
“A razões pesai bem, que vos inspiram,
Cristãos! não sêde pluma a qualquer vento!
As nódoas com toda a água se não tiram!
“Tendes o Velho e o Novo Testamento
E da Igreja o pastor, que os passos guia:
Que mais quereis por vosso salvamento?
“Se má cobiça o peito vos vicia,
Homens sêde e não brutos animais:
Que entre vós o Judeu de vós não ria.
“Como o cordeiro simples não façais,
Que contra si combate petulante,
Da mãe o leite não querendo mais.” —
Beatriz assim disse. Eis anelante
E arrebatada em êxtase voltou-se
À parte, onde o universo é mais brilhante.
Ante o enlevo em que o gesto transmutou-se,
Calou-se o meu desejo impaciente:
De outras questões, já prestes, refreou-se.
Como a seta, que o alvo de repente
Atinge antes que a corda esteja quieta,
No céu segundo entramos velozmente.
Tão leda eu via Beatriz dileta,
Daquele céu nas luzes penetrando,
Que mais vivo esplendor mostra o planeta.
E se a estrela sorriu, se transformando,
Como não fiquei eu, que fez natura
Mudável, impressões todas tomando?
Como viveiro de água mansa e pura,
Pela esp’rança, de pasto, que se of’reça,
Sofregamente o peixe o anzol procura,
Mais de mil esplendores vindo à pressa,
— “Eis aí quem nos traz de amor aumento!” —
A voz de cada qual nos endereça.
De cada sombra o alegre sentimento,
Em se acercando a nós, se denuncia
No fulgor do seu claro luzimento.
Quão sôfrego o desejo não seria
Em ti leitor, se acaso interrompesse
A narração de quanto então se via?
Imaginas, portanto, o que eu tivesse
De conhecer aquela grei formosa,
Tanto que ante os meus olhos aparece.
— “Ó criatura, que assim vês ditosa
Os tronos do eternal triunfo, inda antes
De finda a terreal guerra afanosa,
“Nos lumes, que no céu há mais brilhantes,
Ardemos: te darei, se as pretenderes,
Ao teu desejo informações bastantes.” —
Assim falou. — “Responde que assim queres.” —
A Beatriz ouvi — “diz com franqueza,
E crê como divino o que entenderes.”
— “O ninho tens, já vejo com certeza,
Na luz eterna: o seu fulgor revela
Dos olhos teus, sorrindo-te a viveza.
“Mas não sei quem tu és, ó alma bela,
Nem por que por degraus tens esta esfera,
Que aos mortais nos clarões de outra se vela.”
Assim disse, voltado à luz que houvera
Primeira a voz alçado: refulgindo,
Mais coruscante a vi ao que antes era.
Bem como o sol os lumes encobrindo
No seu próprio esplendor quando esvaece
As cortinas que estavam-nos cingindo,
Da alegria no excesso desparece
Nos próprios raios a figura santa.
Na sua luz envolta que recresce,
Disse o que o canto que se segue canta.
CANTO VI
[ A alma do imperador Justiniano fala ao Poeta. Narra-lhe a história do Império, de Enéias a César, a Tibério, a Tito, a Carlos Magno, para mostrar-lhe a santidade da autoridade imperial. Diz-lhe que no Céu de Mercúrio estão os espíritos daqueles que se esforçaram para conseguir fama imortal. Discorre-lhe acerca de Romeu, que administrou a corte de Raimundo Beranguer, conde de Provença. ]
“DEPOIS que Constatino a Águia voltara
Contra o curso do céu, que ela seguira
Pós o herói, que Lavínia conquistara,
“Duzentos anos já passados vira
Da Europa em confins de Deus essa ave,
Vizinha aos montes, donde se partira;
“Das plumas sob a sombra ampla e suave,
De mão em mão o mundo há dominado,
Té comigo reger do Império a nave.
“César, Justiniano fui chamado.
Do Amor, que sinto, por querer movido,
O supérfluo das leis hei cerceado.
“Antes de ter a empresa cometido,
Uma só natureza acreditava
Ter Cristo e andava nessa fé perdido.
“Mas de Agapeto santo que mandava
De Roma Santa Igreja, a voz potente
Levou-me à crença pura, que eu deixava.
“O que então disse, eu vejo claramente,
Pois, como vês, contradição implica
Uma falsa asserção e outra evidente.
“Quando eu cri no que a Igreja certifica,
Minha mente, de Deus por alta graça,
Logo à sublime empresa se dedica.
“Belisário a reger as armas passa;
No favor, que lhe deu poder divino
Sinal vi que me ordena a paz se faça. —
“A responder-te, o que ouves tem destino;
Mais o que hei dito agora a tanto obriga,
Que a mor explicação dar-te me inclino.
“Verás que sem razão vontade imiga
Move-se contra esse estardarte santo,
Quando o tenta usurpar, quando o profliga.
“Pelos fatos verás respeito quanto
Mereceu desde a honra em que Palante
Morreu por dar-lhe de sob’rano o manto.
“Em Alba sabes como foi constante
Por mais de anos trezentos té lutarem
Três contra três por que ele fosse avante.
“Sabes quanto ele fez por se curvarem
Vizinhos desde o roubo das Sabinas
Té Lucrécia expirar e os Reis findarem.
“Sabes que glória teve nas mãos di’nas
De heróis, que Breno e Pirro combateram,
E de outros reis coligações mali’nas;
“Décios, Fábios, Torquatos lhe deveram
E Quíncio Cincinato, que amo e louvo
A fama das vitórias, que tiveram;
“Calcou o orgulho do Africano povo,
Que por fraguras, donde, o Pó, te envias,
Sob Aníbal, abriu caminho novo.
“Fez triunfar da juventude em dias
Cipião e Pompeu, e assaz desgosto
Causou às tuas pátrias serranias.
“Perto dos tempos, em que o céu disposto
Havia, por seus fins, dar paz ao mundo.
Em mãos de César Roma o teve posto.
“O que ele fez do Var ao Rin profundo
Isara há visto e o Era, há o Sena
E esse vale, onde o Rone é sem segundo.
“Passando o Rubicon, após Ravena,
Com César a Águia tanto em vôo alçou-se,
Que o não pôde seguir nem voz, nem pena.
“Depois que para a Espanha remontou-se,
A Durazzo e a Farsália acometia:
Do efeito o ardente Nilo perturbou-se.
“O Simoente e Antandro então revia,
Seu berço, em que a de Heitor cinza descansa;
E sem detença a Ptolomeu se envia.
“Dali, qual raio, logo Juba alcança;
Depois volve-se às terras do Ocidente,
Onde os sons de Pompeu a tuba lança.
“Nas mãos de outro o que fez essa ave ingente
No inferno Bruto e Cássio estão sentindo,
Sofrem Perúgia e Módena tremente.
“Cleópatra inda vai triste carpindo
Atroce morte, que da serpe toma,
Da Águia os assaltos pávida fugindo.
“Até o Roxo mar tudo a Águia toma,
E ao mundo tão serena a paz se inclina,
Que em fim de Jano as portas fecha Roma.
“O que fez e faria a ave divina
Para trazer à fama sua aumento
Nesse império mortal, em que domina,
“Parece escasso em seu merecimento,
Quando em mãos de Tibério a contemplamos
Com puro afeto e claro entendimento;
“Pois que a viva justiça, que adoramos
Lhe há nessas mãos a glória concedido
De dar vingança às iras, que incitamos.
“Sê, me ouvindo, de espanto possuído:
Águia a vingança do pecado antigo
Depois com Tito há por tornar corrido.
“Quando, mordida por lombardo imigo,
Gemia a Santa Igreja, à sombra da ave
Salvou-a Carlos Magno do perigo.
“Podes julgar, portanto, do erro grave
Daqueles, cujas faltas hei notado,
Causa do mal que vês quanto se agrave.
“Contra o sacro estandarte um tem hasteado
Áureo lírio, outro o quer por seu partido:
Custa dizer qual seja o mais culpado.
“Gibelinos, no iníquo andar sabido
Outra bandeira sigam; que à justiça
Culto esta exige nunca interrompido.
“Carlos novo a batê-la em vão cobiça
Com Guelfos; temas as garras, que arrancaram
A mais forte leão juba inteiriça.
“Mais de uma vez os filhos já choraram
Pelas culpas do pai: é louca a esp’rança, —
De que de Deus favor lírios ganharam.
“O planeta, em que habito agora, estança
É de almas generosas que honra e fama
Aspiraram do mundo na lembrança.
“Quando os desejos deste modo inflama
O incentivo da glória, aos céus ascende
Do vero amor menos ativa a chama.
“Mas nossa dita em parte compreende
Dos méritos e prêmio no confronto:
Nem menor, nem maior nenhum se entende
“Pois da viva justiça o feito pronto
Tanto os afetos nos ameiga e apura,
Que nequícia os não torce em nenhum ponto.
“Vozes várias de sons formam doçura:
Assim os vários graus na eterna vida
Doce harmonia fazem nesta altura.
“Nesta per’la, em que estás, bela e polida,
Rebrilha de Romeu claro luzeiro,
Virtude ínclita e mal agradecida.
“Os provençais, pelo ato traiçoeiro,
Não se riram; caminho segue errado
Quem o bem de outro inveja sobranceiro.
“Às filhas grato de rainha o estado
Conseguiu Beranguer: tal bem devia
A Romeu, nome humilde e não falado.
“Preso na trama que a calúnia urdia,
Que aumentado no quinto o erário havia;
Do erário contas exigiu do justo,
“Romeu partiu-se então pobre e vetusto:
Se o mundo o coração lhe aquilatara,
Quando, mendigo, se mantinha a custo,
Louvor muito maior lhe dispensara.” —
CANTO VII
[ Desaparecem os bem-aventurados cantando. Beatriz explica como a crucificação de Cristo restituiu ao homem a dignidade perdida, a liberdade que lhe foi conferida por Deus. Os anjos e os homens por sua natureza são livres e imortais. O homem porém, pecando, abusou da sua liberdade, e deformou a imagem de Deus que tinha em si. Não podia reparar a falta por si mesmo, pois não podia humilhar-se tanto quanto Adão, em seu orgulho, quis subir. A Deus convinha ou perdoar ou punir. Na sua sabedoria infinita, Deus perdoou e puniu no mesmo tempo. Puniu a humanidade em Jesus Cristo e nele a fez novamente livre. ]
“HOSANNAH Sanctus Deus Sabaoth,
Superillustrans daritate tua
Felices ignes horum malacòth!”
Assim, voltando à melodia sua,
Cantar ouvi essa alma venturosa
Em quem dúplice lume se acentua.
Tornam todas à dança jubilosa,
E súbito da vista se apartaram
Velozes, como flama fulgurosa.
Disse entre mim, pois dúvidas me entraram:
“Fala à senhora tua, fala; à sede
Rocio as palavras suas te deparam.”
Torvação me assenhora e a voz me impede,
Que apenas B com I C E conjugava:
Acurvei, como quem ao sono cede.
Mas Beatriz do enleio me tirava,
Com sorriso, que a mente me ilumina
E aditara entre as chamas começava:
— “Como bem vejo, dúvida domina
A tua alma: — a vingança, que foi justa,
Punição teve, da justiça di’na?
“Esclarecer-te o espírito não custa.
Atende bem: verdade preminente
Das vozes minhas co’a expressão se ajusta.
“Aceitar não querendo, obediente,
Saudável freio, o homem, sem mãe nado,
Perdeu-se a si, perdeu a humana gente.
“Muitos séc’los enferma do pecado,
Jazeu ela não erro engrandecido
Té que o Verbo de Deus fosse encarnado.
“Por ato só do Eterno Amor, unido
À natureza se há, que ao mal se dera,
Depois de esquiva ao Criador ter sido.
“No que vou te dizer bem considera.
A natureza, a que se uniu beni’no
Em pessoa, nasceu boa e sincera.
“Por si mesma, fugindo em desatino
Da vereda da vida e da verdade,
Do Paraíso se exilou divino.
“Da Cruz a pena, em face da maldade
Da natureza, a que Jesus baixara,
Foi a mais justa em sua gravidade.
“Nunca injustiça igual se praticara,
Atenta essa Pessoa, que há sofrido,
Que à natureza humana se ajuntara.
“Contrastes, pois, de um ato hão procedido:
Folgam Judeus da morte a Deus jucunda,
Foi ledo o céu e o mundo espavorido.
“E não te mova sensação profunda
Ouvir que uma vingança, que foi justa,
Vingada ser devia por segunda.
“Vejo-te a mente por vereda angusta
Levada a estreito nó de dubiedade,
Que solver mor esforço ora te custa.
“Dirás: — discerne o que ouço, na verdade;
Mas porque Deus nos desse está-me oculto,
Remindo-nos tal prova de bondade. —
“Este decreto irmão, está sepulto
Aos olhos do que ainda o entendimento
Não tem de Amor na flama ainda adulto.
“É mistério em que luta o pensamento
Sem fruto conseguir de tal porfia,
Mas foi o melhor modo. Ouve-me atento!
“A Divina Bondade que desvia
De si o desamor, arde e flameja,
Por eternais primores se anuncia.
“Diretamente o que emanado seja
Dela é sem fim; eterna impressão fica
Do que no seu querer supremo esteja.
“O que assim nasce, não sujeito fica
Das causas secundárias à influência
E liberdade plena significa.
“Mais lhe apraz, se é conforme à sua essência:
Que o santo Amor que em toda cousa brilha,
Mais vivo é no que encerra esta excelência.
“Aos homens de tais bens cabe a partilha:
De tais predicados se um falece,
Sua nobreza já decai, se humilha.
“Só por pecado dessa altura desce;
Do Sumo Bem não mais reflete o lume,
Semelhança não mais dele oferece.
“E o grau sublime seu não mais assume,
Se não contrapuser ao do pecado
Deleite mau das penas o azedume.
“Quando o gênero humano, infeccionado
Todo no germe seu, foi dessa alteza
E do seu Paraíso deserdado,
“Reaver só pudera (com certeza
Verás, se bem cogitas), intervindo
Um dos meios, que aponto por clareza:
“Ou Deus, por graça infinda, remitindo;
Ou — porque, de si mesmo, se convença —
Das culpas suas o homem se remindo.
“Para sondar a profundeza imensa
Dos eternos conselhos, prende à mente
As razões que o discurso meu dispensa.
“O homem não podia, de indigente,
As dívidas solver: nunca pudera
Curvar-se tanto, humilde e reverente,
“Quanto, rebelde, se elevar quisera.
Eis por que redimir-se do pecado
Só por si mesmo ao homem não coubera.
“E, pois há sido do divino agrado,
Por clemência ou justiça e ambas juntando,
Ser ele à vida eterna aparelhado.
“A feitura do Autor ao gosto estando
Inda mais, quando a imagem nos of’rece
Do peito, de quem vem piedoso e brando,
“A Bondade que em tudo transparece,
Em prol vosso os dois modos reunia:
Um somente bastar-lhe não parece.
“Entre a noite final e o primo dia
Ato igual não se fez alto e formoso
Desse modo por um, nem se faria.
“Dando-se, há sido Deus mais generoso,
Por que o home’ a se erguer se habilitasse,
Do que só perdoando carinhoso.
“Outro meio qualquer, que se empregasse
Não bastara à Justiça, se humilhando
De Deus o Filho à carne não baixasse.
“Para de todo seres doutrinado
Eu torno a um ponto, por que vejas claro,
Como eu, o que zelosa hei te explicado.
“Dizes: — no fogo e no ar, se bem reparo
Na terra e nágua vejo e em seus compostos
Corrupção que destrói sem anteparo.
“Na criação por Deus foram dispostos:
De corrupção isentos ser deveram,
Certos sendo os princípios por ti postos. —
“Criados, meu irmão, se consideram
Os anjos e dos céus o que há no espaço,
Inteiros, puros sempre quais nasceram.
“Elementos e quanto no regaço
Da natura por eles se combina
De virtude criada of’recem traço.
“Criou-lhes a matéria a lei divina,
Criando logo a força informativa,
Que nos astros, que os cercam, predomina.
“Dos lumes santos moto e luz deriva
Dos brutos alma, e plantas igualmente,
Por compleição potencial passiva.
“A vida nossa vem diretamente
De Deus, Supremo Bem, que em nós acende
Amor tal, que o deseja eternamente:
“Daí, por dedução, também descende
Vossa ressurreição, se ao ser e à essência
Da humana carne o teu esp’rito atende,
Quando o primeiro par teve existência.” —
CANTO VIII
[ Dante e Beatriz elevam-se à estrela de Vênus, onde estão os espíritos daqueles que outrora foram propensos às paixões amorosas. Encontro com Carlos Martelo, o qual referindo-se à índole mesquinha de seu irmão Roberto, explica-lhe como se dá que de um bom pai possa nascer um filho mau e, enfim, quanto providencial é a Natureza nos seus decretos e quão vaidosos são os homens que não lhe seguem as indicações. ]
O MUNDO com perigo verdadeiro
Creu que Ciprina bela dardejava
Louco amor do epiciclo que é terceiro.
Sacrifícios não só lhe consagrava,
Preces e votos essa antiga gente
No erro antigo fatal, que a transviava,
Mãe e filho adoravam juntamente,
Dione e o seu Cupido, que fingiram
De Dido reclinado ao seio ardente;
Dessa falsa deidade o nome uniram
Ao planeta, que o sol sempre namora,
Quando raiam seus lumes, quando expiram.
Como ao astro eu me alcei, a mente ignora,
Mas certo fui de haver lá penetrado,
Mais formosa por ver minha senhora.
Como se vê fagulha em fogo ateado,
Como uma voz é de outra discernida,
Firme o som de uma, o de outra variado,
Outros clarões notei na luz subida,
Mais ou menos velozes se volvendo,
Lá da eterna visão, creio, à medida.
Ou visíveis ou não, ventos rompendo,
Em rápida invasão, de nuve’ escura,
Demorados stariam parecendo,
A quem pudesse ver cada luz pura,
Que ao nosso encontro vem deixando a dança
Que marcam serafins dos céus na altura.
Trás a grei, que primeiro nos alcança.
Tão doce hosana soa, que, incessante,
De inda ouvi-lo o desejo jamais cansa.
Dos espíritos um, que vem diante
Só principia: — “Todos nós queremos
Quanto para aprazer-te for prestante.
“Num só ardor e giro nos movemos
Cos Príncipes, celestes esplendores
De quem no mundo hás dito (bem sabemos):
— “Vós, do terceiro céu sábios motores!” —
Por te agradar nos é doce o repouso
Tão vivos são do nosso amor fervores!” —
De Beatriz ao gesto luminoso
Depois que alcei os olhos reverente
E certo fui do seu querer donoso,
À luz, que se mostrou condescendente
Em tanto grau — “Quem és” — falei, de afeito
Estremecido possuída a mente.
Ó das palavras minhas raro efeito!
Maior a vi brilhar; nova delice
A alegria aumentou do claro aspeito.
— “Bem pouco o mundo” — a refulgir-me, disse —
“Me teve; se algum tempo mais vivesse,
Mal, que há de vir, por certo ninguém visse.
“O júbilo que em torno me esclarece,
Aos teus olhos me encobre, como inseto,
Que dos seus véus de seda se guarnece.
“Com razão me votaste o extremo afeto;
Pois, em mais longa vida, eu te mostrava
Por ações quanto me eras tu dileto.
“Aquela região, que o Rone lava
À sestra, quando ao Sorga corre unido,
Por senhor seu um dia me esperava.
“Como da Ausônia o litoral partido
Por Bari, por Gaeta e por Crotona.
Onde é do Tronto e Verde o mar nutrido.
“Da c’roa a fronte minha já se entona
Do vasto reino, que o Danúbio rega,
Quando as plagas tudescas abandona.
“Trinácria, a cujos céus névoa carrega
Sobre o golfo, em que mais Euro embravece,
De Paquino a Peloro, em mor refega,
“Que não Tifeu, mas súlfur escurece,
O trono guardaria à prole minha,
Que de Carlo e Rodolfo antigos desce,
“Se o mau jugo, que os povos amesquinha,
A gritar — morra! morra! — não movesse
Palermo, a quem temor não mais continha.
“Se mais prudência meu irmão tivesse,
Dos Catalanos a indigência avara
Fugira, por que o mal seu não crescesse.
“Urgente, na verdade, se tomara
Que, por si ou por outrem, não deixasse
Mais onerar a barca, que adernara.
“Quando a índole nobre transtornasse
Avareza, milícia ter devia,
Que só de encher seus cofres não curasse.” —
— “Como creio” — tornei-lhe — “a essa alegria,
Que me infundes, Senhor, a origem tira
De Deus que todo bem finda e inicia.
“Comigo a sentes: mor prazer me inspira.
Quanto me hás dito, me é no extremo caro,
Pois vês, de Deus no espelho tendo a mira.
“Ledo me hás feito; assim tornar-me claro
O que por teu dizer stá duvidoso:
Semente doce brota fruto amaro?” —
— “Vendo a verdade” — disse — “pressuroso
Darás o dorso ao que ora dás o rosto,
Verás claro o que julgas tenebroso.
“O Bem, que os céus, que sobes, há disposto,
Os move e alegra, sem pôr providência
Nestes corpos que vês virtude posto.
“E não só com perfeita previdência
Cousas terrestres acham-se ordenadas,
Mas as preserva a sua onipotência;
“Porque as setas, deste arco arremassadas,
Predestinadas são a um ponto certo,
Infalíveis ao alvo enderaçadas.
“O céu aliás, aos olhos teus aberto,
Só feituras sem arte produzidas
Abrangera e ruínas no deserto.
“Foram então de perfeição despidas
As Substâncias, que regem as estrelas
E a mão, que as fez assim destituídas.
“Verdades são: mais claras queres vê-las?” —
— “Não” — repliquei — “supor não poderia
Natura escassa em suas obras belas.” —
— “Um mal, dize-me, fora” — prosseguia —
“Não ser o homem cidadão na terra?” —
— “Por certo; e a razão sei” — lhe respondia.
— “Sociedade haverá, se não encerra
Misteres vários, que cada um pratica?
Não, se o teu Mestre em seu pensar não erra.” —
Deduzindo, a evidência significa,
E logo concluiu: — “Causa dif’rente
Efeito diferente sempre indica.
“Nasce um Sólon, e Xerxe outro é furente,
Melquisedeque ou Dédalo perito,
Que no ar perdeu o filho seu demente.
“Perfeito é o giro pelos céus descrito;
Na cera humano o seu sinal fazendo,
Mas solar não distingue, nem distrito.
“Daí vem que Esaú, logo em nascendo,
Difere de Jacó; toma Quirino
Marte por genitor, seu pai vil sendo.
“Natureza gerada, em seu destino
Seria sempre igual à que a fizera,
Se não vencesse o decretar divino.
“O rosto ora diriges à luz vera;
Mas inda um corolário te ofereço,
Pois de agradar-te em mim desejo impera.
“Sempre natura, se da sorte excesso
A contraste, produz fruto danado,
Como semente posta em solo avesso.
“Se meditasse o mundo, desvelado,
Nos fundamentos, que natura lança,
De melhor gente fora povoado.
“Mas quem próprio seria à militança
Na soledade monacal definha,
Bem pregara quem, Rei, em vão se cansa.
E fora assim da estrada se caminha.” —
CANTO IX
[ Depois de Carlos Martelo, fala a Dante, Cunizza de Romano, irmã do tirano Ezzelino. Prediz-lhe iminentes desventuras na Marca de Treviso e de Pádua, e uma negra traição do bispo de Feltre. Folco de Marselha manifesta-se a Dante e lhe indica a alma resplendecente de Raab, que favoreceu os hebreus na conquista da Terra Santa. Invectiva contra Florença e contra a Cúria Romana. ]
DEPOIS que Carlos teu, bela Clemência
Instruiu-me, narrou traições e enganos,
Que ter devia a sua descendência;
Mas disse: — “Cal’-te! Deixa o curso aos anos!” —
Dizer só posso, pois, que justo pranto
Há de vir por vingança aos vossos danos.
E voltou-se de novo o lume santo
Para o Sol que de júbilos o enchia,
Sendo ele o Bem que para tudo, e tanto.
Ah! mortais iludidos! raça impia,
Que, em pensamentos fátuos se engolfando,
Do Bem Supremo os corações desvia!
Eis outro vi pra mim se encaminhando:
De aprazer-me a vontade anunciava,
O brilho da luz sua acrescentando.
Os olhos Beatriz em mim fitava,
Bem como de antes: grandioso assenso,
Ao meu desejo claramente dava.
— “Ó ser bendito, ao meu querer intenso
Defere logo” — exclamo — “ e dá-me a prova
De que em ti se reflete o que ora penso.” —
A luz então, inda aos meus olhos nova,
Dês que a vi lá na altura onde cantava
Diz como quem cortês rogos aprova:
— “Nessa parte da Itália opressa e escrava,
Que situada entre o Rialto
E as nascentes do Brenta e do Piava,
“Colina vê-se que, não surge ao alto:
Lá centelha, depois ígnea procela,
Que a toda a região deu grande assalto.
“De um só tronco brotamos eu com ela.
Cunizza me chamei: aqui resplendo,
Porque venceu-me a flama desta estrela.
“Da sorte minha a causa não me sendo
Desgosto, eu ma perdôo alegremente
Talvez estranhe o vulgo o como entendo.
“Da luz, que me está perto, refulgente,
Amada jóia desta nossa esfera,
Revive grande a fama, e permanente
“De séc’los cinco mais será na era.
Vê se homem com razão à glória aspira,
Se extinta a vida, outra no mundo o espera!
“A este alvo, porém, não levam mira
Os que o Ádige cerca e o Tagliamento:
Nem dos seus erros o infortúnio os tira.
“Punido em breve, o povo truculento
De Pádua o lago tingirá, que banha
Co’as águas, de Vicência o fundamento;
“Onde o Cagnan do Sile se acompanha
Se trama o laço que fará cativo
Quem mostra no perder soberba estranha.
“Do ímpio Pastor procedimento esquivo
Há-de Feltro chorar, tal ribaldia
A Malta não levou nunca homem vivo.
“De enormes dimensões tonel seria,
Que o sangue recebesse de Ferrara,
Pesá-lo o esforço humano esgotaria,
“Em tal cópia o bom Padre o derramara
Em preito ao seu partido! Os dons malvados
Da terra sua a índole explicara.
“Espelhos no alto (Tronos são chamados)
A nós refletem quanto Deus indica:
Crê, pois, ora nos fatos revelados.” —
Calando-se Cunizza significa,
Ao giro seu anterior voltando,
Que em diverso cuidado imersa fica:
Aquele, a que aludira, rebrilhando,
Com preclaro esplendor, mostrou-se à vista.
Como ao sol rubi fino flamejando.
Alegria no céu fulgor aquista,
Como a nossa no riso se declara;
Mas os gestos no inferno a dor contrista.
“Deus vê tudo, e o teu ver nele se aclara” —
Falei — “ditoso espírito: patente
Te é sempre quanto o seu querer depara.
“Porque a voz tua, enlevo permanente
Do céu, de anjos no canto a sócia sendo,
Que em seis asas têm veste resplendente,
“Não satisfaz desejos, em que ardendo
Estou? Falara, sem mais ser rogado,
Se eu visse em ti bem como em mim stás vendo.” —
— “O maior vale de águas inundado”
— Desta arte a responder-me começava —
“Do mar, em torno à terra derramando,
“Opostas plagas, se estendendo, lava
Contra o sol, e assim faz meridiano
Esse horizonte, em que primeiro estava.
“Nessa parte do val mediterrano
Nasci, entre Ebro e Macra, que separa
Do domínio de Gênova o Toscano.
“Quase um meridiano se depara
Para Bugia e o ninho meu querido:
Sangue dos seus seu porto avermelhara.
“Chamei-me Folco e assim fui conhecido:
Este céu da luz minha é penetrado
Como eu fora da sua possuído;
“Pois Dido, que ciúmes há causado
A Creusa e a Siquei, não mais ardera
Do que eu, enquanto à idade me foi dado;
“Nem Rodópea infeliz, a quem perdera
Demofonte; nem Hércules outrora,
Que o coração a Iole oferecera.
“Não há remorso aqui; folga-se agora,
Não pela culpa, já no esquecimento,
Pela Virtude, cuja lei se adora.
“Arte aqui se contempla, em que portento
Tão alto brilha; e o Bem se patenteia,
Que influir faz na terra o firmamento.
“Para ser a medida toda cheia
Dos teus desejos, nados nesta esfera,
Do meu discurso inda prossegue a teia.
“Ora queres saber a luz quem era,
Que aí perto de mim tanto cintila,
Como o sol, que na linfa reverbera.
“Sabe, pois, que ali vês leda e tranqüila
Raab: à nossa ordem reunida
Em grau superior clara rutila.
“Foi neste céu, que a sombra procedida
Da terra não alcança, em triunfando
Jesus Cristo, a primeira recebida.
“Devia dar-lhe um céu por palma, quando
Assinalar lhe aprouve a alta vitória,
Que na Cruz teve, as palmas entregando;
“Pois que por ela começara a glória,
Que colheu Josué na Terra Santa,
Que se apagou do Papa na memória.
“A tua pátria, que foi daquele a planta,
Que ao Criador revel primeiro há sido
E causou pela inveja aflição tanta,
“Tem flor maldiçoada produzido,
Que, ovelhas e cordeiros transviando,
Traz o pastor em lobo convertido.
“O Evangelho, por ela, abandonado
E os Doutores, às páginas usadas
Das Decretais stão muitos se aplicando.
“O Papa e os Cardeais, nisto engolfadas
Tendo as idéias, Nazaré esquecem,
Que viu do Arcanjo as asas desdobradas.
“Mas Vaticano e os sítios que enobrecem
A Roma e têm sido o cemitério
Dos que, fiéis a Pedro, lhe obedecem,
Livres serão em breve do adultério.” —
CANTO X
[ Depois de admirar a infinita sabedoria de Deus na criação do Universo, narra o Poeta como sem aperceber-se achou-se elevado ao Sol, em que estão as almas dos doutos na teologia. Doze espíritos mais reluzentes o circundam e um deles, S. Tomás de Aquino, revela o nome dos seus companheiros. ]
O PODER inefável e primeiro,
O Filho a contemplar co’ Amor sublime,
De um e outro, eternal, vindo o terceiro,
Quanto à vista e à razão nossa se exprime
Com tal ordem criou, que, o efeito vendo,
De adorar seu Autor ninguém se exime.
As esferas, leitor, olhos erguendo
Nota a parte, onde estão dois movimentos
Um para o outro oposição fazendo.
E começa a mirar de arte os portentos,
Que tanto dentro em si o senhor ama,
Que lhes tem sempre os olhos seus atentos.
Vê como desse ponto se derrama
Em linha oblíqua, o círc’lo, que transporta
Os planetas que o mundo aguarda e chama.
Se lhes assim, não fosse a estrada torta,
Muita força no céu fora perdida
E aqui potência quase toda morta.
Se fora essa vereda preterida
Mais ou menos, ficara transtornada
A ordem no universo estatuída.
Ora leitor, meditação pausada
Faz de quanto comigo prelibaste:
Leda a mente hás de ter, não saciada.
Dou-te iguaria: come, pois, se praz-te.
A matéria, em que escrevo, não consente,
Nem por instantes, que a atenção se afaste.
Da natura o ministro mais potente
Que a influência do céu na terra imprime
E o tempo mede com sua luz fulgente,
À parte, que outro verso acima exprime,
Se unindo, para o ponto se volvia,
Onde mais cedo as trevas nos dirime.
Já no seu seio estava e o não sabia,
Como não pode alguém seu pensamento
Saber, quando inda à mente não surgia.
E Beatriz, em quem notava aumento
De bem para melhor, tão de repente,
Que o tempo fora ante o seu ato lento,
De si mesma quanto era refulgente!
O que era lá no sol onde eu me entrara,
Não por cor, por seu brilho mais nitente,
Posto que arte, uso, engenho me ajudara
Descrever por imagens não pudera;
Mas crer se pode e ver-se desejara.
Não se estranhe, se baixa parecera,
Querendo a tanto alar-se, a fantasia;
Além do sol ninguém olhos erguera.
Quarta família aqui resplandecia
Do Sumo Pai, que sempre da Trindade
No inefável spetáculo a sacia.
E disse Beatriz: — “Tanta Bondade
Humilde ao Sol dos anjos agradece,
Que ao sol sensível te alça à claridade.” —
Peito mortal jamais ardor aquece
De sentir tão devoto e tão piedoso,
Que a Deus a gratidão inteira expresse,
Quanto é meu ao convite carinhoso.
E em tanto enlevo o coração se acende,
Que a Beatriz olvida, fervoroso.
Não lhe despraz, e no seu riso esplende
Tanto brilho dos olhos expressivos,
Que do êxtase profundo me desprende.
Fulgores então vi claros e vivos,
De nós centro de si c’roa fazendo,
Mais suaves em voz que em luz ativos.
A filha de Latona se movendo
Vemos assim de um cinto rodeada,
No ar úmido as cores, se mantendo.
Dos céus a corte, donde volto, ornada
De jóias stá sublimes e formosas:
Só nos céus pode a estima lhes ser dada.
As vozes eram tais, que ouvi donosas.
Quem não tem plumas para ir lá voando
Pergunte a um mudo cousas portentosas.
Aqueles sóis, em torno a nós cantando,
Volveram-se três vezes: semelharam
Astros em roda aos pólos circulando.
Damas imitam, que no baile param,
Em silêncio outras notas esperando
Para seguir na dança que encetaram.
E uma voz do seu seio disse: — “Quando
Da Graça o raio em que o amor se acende
Sublime, pelo amor se acrescentando,
“Multiplicado em ti tanto resplende,
Que te conduz pela celeste escada,
Que a subir torna quem de lá descende,
“O que à sede em que tens a alma abrasada
Vinho negasse, irmão, livre não fora,
Qual linfa de correr embaraçada.
“Saber desejas como a c’roa enflora,
Que cinge, contemplando-a a pulcra Dama,
Que para o céu te guia protetora.
“Um anho fui da santa grei que chama
De Domingos a voz pelo caminho,
Onde prospera só quem mal não trama.
“Tomás de Aquino sou; me está vizinho,
À destra de Colônia o grande Alberto
A quem de aluno e irmão devo o carinho.
“Se dos mais todos ser desejas certo,
Na santa c’roa atenta cuidadoso,
A tua vista a voz siga-me perto.
“Nesse esplendor sorri-se jubiloso
Graciano que num e noutro foro
Di’no se fez de ser no céu ditoso.
“Aquele outro ornamento deste coro
Foi Pedro: como a pobre a of’renda escassa,
À Santa Igreja deu rico tesouro.
“A quinta luz, que as mais em lustro passa
Se acende em tanta luz, que anela o mundo
Saber se goza da celeste Graça.
“O alto esp’rito encerra, tão profundo,
Que se o Verbo de Deus é verdadeiro,
De saber tanto não se alçou segundo.
“Ao lado seu lampeja esse luzeiro,
Que os anjos, seu mister, sua natura
Em conhecer na terra foi primeiro.
“Sorri na luz menor, serena e pura,
Dos séculos cristãos esse advogado
De Agostinho tão útil à escritura.
“Se os olhos da tua mente acompanhado
De luz em luz me tens nestes louvores
Saber já tens da oitava desejado.
“Do Sumo Bem se enleva nos fulgores
Essa alma santa, havendo demonstrado
As mentiras do mundo e os seus rigores;
“Jaz daquela alma o corpo despojado
Em Cieldauro; e ela veio à paz divina
Após martírio e exílio amargurado.
“Mais longe, em cada flama purpurina,
Beda, Isidoro estão, Ricardo esplende,
Que além do humano o pensamento afina.
“Esse, de quem tua vista se desprende
A mim tornando, achou, grave e prudente,
Que morte pronta um grande bem compreende:
“É Siger, que assim luz eternamente.
Na rua de Fouare lera outrora
Verdades, que ódio hão provocado ingente.” —
E qual relógio, que nos chama em hora,
Em que, desperta, do Senhor a Esposa
Matinas canta e o seu amor implora;
Que, no girar das rodas, tão donosa
Nota faz retinir, de amor enchendo
Devota alma, que o escuta fervorosa;
O glorioso círc’lo, se movendo,
Assim vi eu, com tal suavidade
E doçura de vozes, que comprendo
Só haja iguais do céu na eternidade.
CANTO XI
[ Dante elogia a vida contemplativa. — As palavras proferidas no canto anterior por S. Tomás criam duas dúvidas no ânimo do poeta. O santo, tratando de resolver a primeira, esboça a vida de S. Francisco de Assis. ]
Ó DOS mortais aspirações erradas!
Em que falsas razões vos enlevando
Tendes à terra as asas cativadas!
Qual seguia o direito; qual buscando
Já aforismos; qual o sacerdócio;
Qual reinava, sofisma ou força usando;
Qual roubo amava, qual civil negócio;
Qual, a salaz deleite entregue a vida,
Afanava-se; qual passava no ócio;
Enquanto eu, livre da terrena lida,
Ao céu com Beatriz me alevantava,
Aceito lá com glória tão subida.
Cada alma santa ao ponto já tornava
Do círculo em que de antes demorara;
E como círio em candelabro estava.
Então da luz, que de antes me falara
Voz suave escutei; e assim dizendo
Do seu brilho a pureza se aumentara:
— “O lume eterno, em que me inspiro e acendo,
Eu, contemplando, claramente leio
Teu pensamento e a origem lhe compreendo.
“Desejas tu, da dúvida no enleio,
Que eu aproprie da tua mente à esfera
O que dizer-te, há pouco, me conveio.
“Eu te disse — caminho onde prospera —
— De saber tanto não se alçou segundo: —
Aqui é, pois, que a explicação te espera.
“A Providência, que governa o mundo
Com tão sábio conselho, que, torvada
Sente a vista quem quer sondar-lhe o fundo.
“Por ser ao seu dileto encaminhada
Casta Esposa daquele, que alto grito,
Desposando-a, soltou na Cruz Sagrada,
“Com ânimo mais forte e à fé restrito,
Dois príncipes, lhe deu, que, em seu desvelo,
O caminho mostrassem-lhe bendito.
“Um seráfico foi no ardor do zelo,
Outro ostentou, por seu saber na terra,
De querúbica luz esplendor belo.
“De um só te falarei; pois num se encerra
O que de outros aos louvores mais se estende:
Quem der aos dois o mesmo fim não erra.
“Entre Tupino e o rio, que descende
Do outeiro, que escolhera santo Ubaldo,
Fértil encosta de alto monte pende.
“Dali baixa a Perúgia o frio e o caldo
Pela porta do Sol; atrás padece
Em duro jugo Nócera com Gualdo.
“Onde o declive menos agro desce
Nasceu ao mundo um sol tão luminoso,
Como o que ao Gange às vezes esclarece.
“Desse lugar quem fale portentoso
Não diga Assis, que pouco declarara:
Chame Oriente o berço glorioso.
“Do nascente este sol pouco distara,
Quando o conforto a receber a terra
Já das virtudes suas começara.
“Contra seu pai, adolescente, em guerra
Entrou por dama, a quem bem como à morte,
Ninguém a porta com prazer descerra.
“Então da Igreja a recebeu na corte,
E coram patre, por esposa amada
E amor votou-lhe cada vez mais forte.
“Vivera ela viúva e desprezada
Séculos onze e mais, e de outro amante,
Senão deste, não fora requestada;
“Em vão se disse que no lar, constante,
De Amiclas a encontrou esse guerreiro,
De quem tremera o mundo titubante;
“Em vão fiel, de coração inteiro,
Quando Maria ao pé da Cruz ficara,
Com Cristo ela subira-se ao madeiro.
“Para fazer minha linguagem clara,
Em suma, o nome sabe dos amantes:
Com pobreza Francisco se casara.
“Dos dois santa união, ledos semblantes,
Seu terno olhar e afeito milagroso
Dão a todos lições edificantes.
“Aquela paz anela cobiçoso
Venerável Bernardo que, primeiro,
Descalço corre e crê ser vagaroso.
“Riqueza inota! Ó Bem só verdadeiro!
Descalço vai Egídio, vai Silvestre,
Porque amam-na, do esposo no carreiro.
“Dali se parte aquele pai e mestre
Com terna esposa e com família santa
Que de corda o burel cinge campestre.
“Não baixa os olhos, nem se torna e espanta
Por filho ser de Bernardone obscuro,
Nem por sofrer desdém em cópia tanta.
“Mas afouto mostrou o intento duro
A Inocêncio de quem primeiro obteve
Assenso ao regimento austero e puro.
“E quando a pobre grei progresso teve,
Após aquele, a cuja heróica vida
Melhor no céu louvor de anjos se deve,
“Foi a c’roa segunda concedida
Por Honório, que o Santo Espírito alenta
Daquele arquimandrita a santa lida.
“Em breve a sede do martírio o tenta,
E do Soldão soberbo na presença
Cristo anuncia e a lei que o representa.
“Vendo rebelde o povo à nova crença.
Por não ficar seu zelo sem proveito
Da Itália volta para a messe extensa.
“Na dura penha, que se interpõe ao leito
Do Tibre e do Arno, o derradeiro selo
Cristo lhe pôs: dois anos dura o efeito.
Quando a Deus, que a bem tanto quis movê-lo,
O prêmio prouve dar-lhe merecido,
Na humildade cristã por seu desvelo,
“Essa esposa, que amara estremecido,
Aos irmãos confiou por justa herança,
Para afeto lhe terem sempre fido.
“Do seio da pobreza então se lança,
Tornando ao reino seu, a alma preclara:
Nesse jazigo o corpo seu descansa.
“Pensa, pois, o que foi quem Deus julgara
Di’no após ele, de reger a barca
Que Pedro, no alto mar encaminhara.
“Coube a tarefa ao nosso patriarca:
Quem, fiel, aos preceitos lhe obedece,
Sabe tesouros arrecadar na arca.
“Sua grei novo pascigo apetece,
E tanto é dos desejos impelida,
Que em diferentes campos aparece.
“Quanto mais cada ovelha é seduzida
Do mundo pelo pérfido atrativo,
Tanto mais ao redil volta inanida.
“Poucas temendo o lance decisivo,
Acolhem-se ao pastor: escasso pano
É já para vesti-las excessivo.
“Se claro te falei, livre de engano,
Se tens estado ao que te digo atento,
Se da memória não receias dano,
“Ao teu desejo, em parte, dei contento,
Pois da planta bem vês qual seja a rama;
E o corretivo está neste argumento:
Onde prospera só quem mal não trama.”
CANTO XII
[ Acabando S. Tomás de falar, ajunta-se à primeira coroa de doze espíritos resplendentes, mais uma coroa de igual número de espíritos. Um destes, S. Boaventura, franciscano, tece louvores a S. Domingos. Depois dá notícia acerca dos seus companheiros. ]
QUANDO o lume bendito proferira
Do discurso a palavra derradeira,
A coréia, como eu já a vira,
Inda uma volta não fizera inteira,
Logo outra turma em círculo a encerrava
Em voz acordes ambas e em carreira.
Essa harmonia tanto superava
Das Musas e sereias a cadência,
Quanto ao reflexo a luz que rutilava.
Como arcos dois das nuvens na aparência
Curvam-se iguais na cor e equidistantes,
Se de Íris Juno exige diligência,
Nascendo um do outro, em forma semelhantes,
Qual voz da que de amor foi consumida
Como do sol as névoas alvejantes,
E crer fazendo que há de ser mantida
A promessa, a Noé por Deus firmada,
De não ser mais a terra submergida:
Assim de nós em torno ia agitada
Cada grinalda das perpétuas rosas,
Uma com outra em tudo conformada.
Tanto que a dança e festa jubilosas,
Por cantos e esplendores flamejantes
Dessas luzes suaves e amorosas,
Quedar eu vi nas rotações brilhantes,
Quais olhos, juntamente ao nosso grado,
Se abrindo e se fechando vigilantes,
De um dos novos clarões voz, que, enlevado,
Volver-me para si fez de repente,
Qual à estrela polar ímã voltado:
— “Amor” — diz — “que a beleza dá-me ingente
Me induz a te falar do Mestre Santo,
Que ao meu foi de louvor causa eminente.
“Um se memore onde outro bilha tanto:
Sob a mesma bandeira hão militado;
Brilha a glória dos dois também no canto.
De Cristo, a tanto custo restaurado,
O exército o estandarte seu seguia,
Já raro, lento, de temor tomado,
“Quando à milícia, que o valor perdia
O Eterno Imperador deu provimento,
Só por Graça: esse bem não merecia;
“E da Esposa enviou por salvamento
Dois campeões, de cuja voz movida,
A transviada gente cobra o alento.
“Na terra, em que, ao seu hábito, convida
O Zéfiro a se abrirem novas flores,
De que se vê a Europa revestida,
“Em plaga, onde se embate em seus furores
O mar, em que, o seu curso terminado,
O sol esconde às vezes seus ardores,
“Jaz Calaroga em solo afortunado,
Que o poderoso escudo protegera,
No qual leão subjuga e é subjugado.
“Ali o atleta heróico à luz viera,
Da fé cristã esse indefesso amante,
Que, aos seus beni’no, aos maus guerra fizera.
“Foi virtude em sua alma tão possante,
Que, ainda estando no materno seio,
Do porvir fez a mãe vaticinante.
“Quando a firmar-se o desposório veio
Entre ele e a Fé, na fonte consagrada,
De muita salvação seguro meio,
“De dar pôr ele o assento a encarregada
A messe viu em sonhos milagrosa,
Que dele e herdeiros seus era esparada.
“Do seu destino em prova portentosa,
Anjo baixou ao fim só de chamá-lo
Do Senhor de quem era a alma piedosa.
“Domínico foi dito e eu dele falo,
Como o operário, que elegera Cristo,
Da vinha no lavor para ajudá-lo.
“Servo e enviado mostrou ser de Cristo
Por quanto o amor primeiro, que há mostrado,
Foi a primeira lei que nos deu Cristo.
“Muitas vezes a mãe o achou prostrado,
Em profundo silêncio e bem desperto,
Como a dizer: — A isto eu fui mandado.
“Oh! foi seu genitor feliz por certo!
Oh! sua mãe realmente foi Joana
Se há no sentido que lhe dão, acerto!
“Não pelo amor do mundo, que se engana,
Do Ostiense e Tadeu nos livros lendo,
Mas de Jesus pelo maná se afana,
“Sapiente doutor em breve sendo,
Da santa vinha guarda vigilante,
Que presto seca, pouco zelo havendo.
“De Roma à sede quando foi perante,
Que aos justos era compassiva outrora,
Hoje, por culpa do que a rege, errante,
“Onzenárias dispensas não lhe implora,
Nem primeira prebenda, que vagasse,
Nem dízimas, que são do pobre, exora.
“Mas contra o mundo, que no qual compraz-se,
Pede o favor de defender a planta,
Da qual tens flores vinte e quatro em face.
“Com seu querer e com doutrina santa,
Como a torrente, que da altura desce,
De apóstolo por zelo o mundo espanta.
“Dos hereges se arroja à infanda messe,
E onde a resistência mais porfia
Das forças suas o ímpeto recresce.
Dele brotaram rios, que hoje em dia
Têm o jardim católico regado
E aos seus arbustos dão viço e valia.
“Se tal foi uma roda do afamado
Carro, em que defendeu-se a Santa Igreja,
E a civil guerra em campo há superado,
“Da outra o alto mérito qual seja
Já te disse Tomás, eu stando ausente:
Dele nas vozes seu louvor lampeja.
“Porém daquela roda o sulco ingente
Ficou em desamparo tal, que o lodo
Onde era a flor domina tristemente.
“Vê-se a família sua por tal modo
Da vereda de outrora transviada,
Que esqueceu-lhe as pegadas já de todo.
“Logo a cultura má será provada
Na seara, zizânia sendo ao vento,
Em vez de ir ao celeiro, arremessada.
“Que nosso livro folheasse atento
Veria, creio, página, em que lesse:
— Sou, como sempre, de impureza isento. —
“Em Casal e Água-Sparta igual não vê-se:
Lá de tal jeito entende-se a Escritura,
Que um tíbio a foge, outro excessivo a empece.
“De Bargnoregio eu sou Boaventura,
Que, exercendo altos cargos, repelia
Dos interesses temporais a cura.
“Vê, dos irmãos descalços primazia,
Iluminato, de Agostinho ao lado:
Cada qual no burel por Deus ardia.
“Hugo vê de S. Vítor premiado
Como Pedro Mangiadore e Pedro Hispano
Pelos seus doze livros celebrado.
“Natã Profeta e o Metropolitano
João Crisóstomo, Anselmo e o afamado
Donato, na primeira arte sob’rano.
“Vê Rabano, a brilhar vê ao meu lado
O calabrês Abade Giovachino,
De espírito profético dotado.
“Aos louvores do excelso paladino
Moveu-me a caridosa cortesia,
O dizer sábio de Tomás de Aquino,
E comigo a esta santa companhia.”
CANTO XIII
[ O Poeta descreve a dança das duas coroas de espíritos celestes. S. Tomás resolve a segunda dúvida de Dante. Adão e Jesus Cristo são seres perfeitíssimos, por serem obra imediata de Deus. Mas ele não pode ser comparado nem a Adão nem a Jesus Cristo. Conclui o Santo advertindo do perigo dos juízos precipitados, e de quanto é sujeito a enganar-se quem julga das coisas pelas aparências. ]
O QUE hei visto e refiro quem deseja
Entender, imagine, (e bem sculpida,
Como em rocha, na mente a imagem seja)
Quinze estrelas, que luz tanta espargida
Tem por celestes regiões dif’rentes,
Que é do ar a espessura esclarecida,
Da carroça imagine as refulgentes
Rodas, sempre girando, noite e dia,
Pelos espaços do céu nosso ingentes;
Da trompa a boca mostre a fantasia,
Que lá no extremo do axe, ao qual a esfera
Primeira contorneia, principia.
Se em signos dois tais astros considera,
Iguais à c’roa que no céu fulgura,
Dês que Ariadne à morte se rendera;
E, os raios misturando da luz pura,
Para lados contrários se movendo
Aqueles círc’los dois na etérea altura:
Imagine, mas quase a sombra tendo
Dos versos astros, dessa dupla dança,
Que em torno a nós estava se volvendo.
Que a verdade essa imagem tanto alcança,
Quanto a Chiana a rapidez imita
Do céu, que a todos os mais céus se avança.
Nem Pean cantam, nem de Baco a grita;
Mas Três Pessoas com divina essência
E numa o humano ser, que a Deus se adita.
Os hinos tendo e a dança intermitência
Em nós os santos lumes se fitaram;
Compraz-lhes dos cuidados a seqüência.
O silêncio que os coros dois formaram,
As vozes rompem, que a espantosa vida
Do mendigo de Deus me recontaram.
— “Quando a palha é do trigo dividida,
Quando a colheita fica enceleirada,
A bater outra doce Amor convida.
“Crês que ao peito onde a costa foi tirada
Para a boca gentil formar motivo
Da pena ao mundo inteiro fulminada,
“E ao da aguda lança o golpe esquivo
Padeceu e a balança, em morte e vida,
Da culpa alçou com peso decisivo,
“Quanta ciência aos homens permitida
Ser poderia pela mão divina,
Que um e outro criou, fora infundida.
“Tua mente, pois, a dúvidas se inclina
Me ouvindo que em ciência sem segundo
Subira quem a luz quinta domina.
“Olhos abre à razão, em que me fundo:
Como teu crer confundida tens de vê-la
Na verdade, qual centro num rotundo.
“O que não morre, o que por morte gela
É só splendor da Idéia, que, nascendo
Do Senhor nosso, o seu amor revela;
“Por quanto essa luz viva, procedendo
Do foco seu, do qual se não desune,
Nem do Amor, que o terceiro fica sendo,
“Só por Bondade sua, o fulgor une,
Como em spêlho, em céus nove, e o concentrando,
Tem a unidade eternalmente imune.
“As últimas potências se abaixando,
Já de ato em ato enfraquecida fica,
As breves contigências vai formando.
“Contigências palavra é que te indica
Essas cousas, que o céu, no movimento,
Com semente ou sem ela multiplica.
“Não mostra arte ou substância um só intento
E modo, mais ou menos transluzindo
O selo do Supremo Entendimento.
“Vê-se, pois, a mesma arv’re produzindo,
Segundo a espécie, ou bons ou ruins frutos;
E vós à luz com várias manhas vindo.
“Brilhava o selo inteiro nos produtos,
Se a cera em ponto apropriado fora,
E os influxos do céu nunca interruptos;
“Porém natura as impressões desdoura,
Procedendo, assim como faz o artista:
Treme-lhe a mão que é da arte sabedora.
“E, pois, se ardente amor a clara vista
Da virtude primeira imprime e adapta,
A perfeição aqui toda se aquista.
“Assim a argila foi condigna e apta
A toda perfeição da criatura,
E concebeu a Virgem pura, intacta.
“Segues, portanto opinião segura:
Como nos dois jamais tão alta há sido,
Nem jamais há de ser vossa natura.
“Se eu porventura houvesse concluído,
Com razão me tiveras perguntado:
— Como disseste — igual não tem subido?
“Da verdade por seres informado,
No que era pensa e à sua escolha atende,
Quando — Pede — por Deus foi-lhe ordenado.
“Claro falei, tua mente bem comprende
Que foi Rei quem pediu sabedoria
Para fazer o que o bom Rei pretende.
“Não quis saber qual número seria
Dos motores ao céu, nem se necesse
Com contigente um seu igual faria.
“Non si est dare primum motum esse,
Ou se um triâng’lo sem ter âng’lo reto
Traçar em simicírc’lo se pudesse.
“E pois, o dizer meu que ora completo,
Quando falava na sem par ciência,
A prudência real ia direto.
“Dando ao — “Subiu” — devida inteligência,
Hás de ver que somente aos Reis se aplica,
Muitos na soma, poucos na excelência.
“E feita a distinção que exposta fica,
Meu dizer à tua fé no pai primeiro
E em nosso Redentor não contra-indica.
“Prende assim chumbo ao pé sempre; ligeiro
Não vás, imita o caminhante lasso;
Ao não ao sim não corre aventureiro.
“Mostra ser dos estultos o mais crasso
Quem afirma, quem nega leviano
Sem distinção ou num ou noutro passo.
“Daí vem muitas vezes por seu dano,
Que o juízo do vulgo se transvia
E o entendimento enleia afeto insano.
“Mais do que em vão do porto se desvia:
Incólume não volta da jornada
Quem pós verdade da arte não seguia.
“A prova dão, por fatos confirmada
Parmênides, Melisso, Brisso e quantos
Partiram sem saber o rumo e a estrada.
“Assim Ário fez, Sabélio e tantos,
Que, como espadas, deram na Escritura,
Mutilando o sentido aos textos santos.
“Quem no julgar as cousas se apressura
Imita aquele, que estimasse o trigo,
Quando a seara inda não stá madura.
“No inverno hei visto espinho dar castigo
Ao que imprudente as ramas lhe tocara;
Rosas depois oferecia amigo.
“E nau vi, que segura navegara,
Em viagem feliz, o salso argento,
Soçobrar, quando o posto já tomara.
“De Deus antecipar-se ao julgamento
Não queiram Dona Berta e Dom Martinho:
Se um rouba e é outro às oblações atento,
Pode um se erguer, cair outro em caminho.” —
CANTO XIV
[ Beatriz pergunta a um espírito celeste, em nome de Dante, se depois da ressurreição dos corpos permanecerá a luz que emana de suas almas e se essa luz não prejudicará a sua vista. O espírito responde que, depois da ressurreição, a vista dos espíritos aumentará. Aparecem novos espíritos. Sem perceber, Dante encontra-se no planeta Marte, onde estão aqueles que defenderam com as armas a religião cristã. Aí o aspecto do céu vence toda beleza passada, porque quanto mais se sobe, mais cresce o esplendor dos céus. ]
DO centro à borda e assim da borda ao centro
Água num vaso circular se agita,
Se a comovem de fora, se de dentro.
Isto que digo a mente me visita
Súbito, quando o esp’rito glorioso
De Tomás suspendeu a voz bendita,
Por semelhar-se ao efeito poderoso
Da sua voz e ao que Beatriz causava,
Quando assim disse em tom grave e donoso:
“O que saber este homem precisava
Com voz não disse, e, se o cogita, o ignora:
De outra verdade com raiz se trava.
“A auréola, dizei-lhe, em que se inflora
A substância, que é vossa eternamente,
Convosco há de existir, bem como agora?
“Se este esplendor em vós é permanente,
Quando visíveis fordes, ressurgindo,
A vista sofrerá luz tão fulgente?” —
Como em coréia as vozes vão subindo
E recresce a alegria, algum motivo
De alvoroço aos dançantes sobrevindo,
Assim aos santos círculos mais vivo
Júbilo mostram no girar, no canto
Ante o rogo piedoso e compassivo.
Quem, por chegar a morte, sente espanto,
Para lograr no céu viver divino,
Da eterna chuva desconhece o encanto.
Quem sempre reina, é uno, é duplo, é trino,
Em três, em dois, em um sempre perdura,
Não abrangido — e tudo abrange — em hino
De tão suave e cônsona doçura
Dos coros foi três vezes aclamado,
Que um prêmio fora da virtude pura.
No lume, de fulgor mais sinalado,
Ouvi, do menor círc’lo voz modesta,
Como a do arcanjo à Virgem deputado.
— “Quanto no Paraíso eterna a festa
Há de ser, tanto o nosso amor vestido
Será de luz em torno manifesta.
“O brilho seu do ardor há procedido
E o ardor da visão, que é tão gozosa,
Quanto a Graça o valor faz mais subido.
“E quando a carne santa e gloriosa
Revestirmos, será nossa pessoa
Completa e mais jucunda e mais ditosa.
“E o gratuito lume, que nos doa
O Sumo Bem, será mais rutilante:
A Glória sua a ver nos afeiçoa.
“A visão se fará mais penetrante,
Mor o ardor se fará que ali se acende,
E o esplendor, que este dá, mais coruscante.
“Qual carvão, que de si flamas desprende
E pelo vivo ardor as escurece
Tanto, que entre elas seu rubor resplende,
“Este doce fulgor, que em nós parece,
Ver deixará o corpo ressurgido,
Quando o sono, em que jaz um dia cesse.
“Nenhuma será das luzes ofendido:
Starão corpóreos órgãos adaptados
A quanto a deleitar-nos for provido.” —
Os coros dois tão ledos e apressados
Responderam — amém — que bem mostraram
Quanto os trajos carnais são desejados.
Não por si sós talvez os cobiçaram,
Mas por amor dos pais, de entes queridos,
Antes que ternas flamas se tornaram.
Eis, em torno, de lumes incendidos
Novo círculo aos outros se acrescenta:
Qual nitente horizonte, os tem cingidos.
E como, quando à tarde a sombra aumenta,
No céu começam de assomar estrelas,
Cuja luz dúbia aos olhos se apresenta,
Assim me pareceu que via aquelas
Novas substâncias, que, também girando,
Moviam-se em redor das c’roas belas.
Vero fulgor do Esp’rito Santo! Oh! quando
Te mostraste de súbito, candente,
Os olhos meus venceste, deslumbrando.
Mas Beatriz tão bela e tão ridente
Rebrilhou, que a visão maravilhosa,
Bem como outras, seguir não pode a mente.
Aos olhos força deu tão poderosa,
Que se alçaram; e com ela transportado
Vi-me à esfera mais alta e luminosa.
Fui da minha ascensão certificado
Da purpurina estrela pelo gesto,
Em que rubor notei não costumado.
Nesse falar, a todos manifesto
Do coração, a Deus vivo holocausto,
Por sua nova graça, humilde presto.
Do peito meu não era ainda exausto
Do sacrifício o ardor, que convencido
De estar aceito fui, e ser-me fausto.
Tão lúcidas, tão rubras, confundido
Vi luzes em dois raios fulgurantes,
Que disse — Ó Hélios, como os tens vertido! —
Galáxia, em astros mais, menos brilhantes
Branqueja, entre dois pólos colocados,
E os doutos deixa em dúvida hesitantes:
De igual maneira em Marte constelados
O signo os raios formam venerando,
Diâmetros iguais sendo cruzados.
Me está memória o engenho superando:
Se na cruz lampejar eu via Cristo,
Como acertar, exemplos procurando?
Quem toma a Cruz e na jornada Cristo
Segue, desculpe o que falta em arte,
Vendo nesse esplendor rutilar Cristo.
Da cruz em cada braço, em toda parte
Cintilantes mil fogos se moviam;
Qual desce, qual se eleva, qual desparte.
Assim sutis argueiros se veriam,
Retos ou curvos, rápidos ou lentos,
De formas, que multíplices variam,
De Sol em réstea que entra os aposentos,
Onde da calma o homem se repara
Apurando do engenho e da arte inventos;
E como da harpa e lira se depara
Nas cordas várias doce melodia
A quem notas ignora e não compara;
Assim desses luzeiros que ali via
Na Cruz formosa, extático escutava,
Sem comprendê-la, angélica harmonia.
Que eram altos louvores bem julgava
Ressuscita e triunfa — acaso ouvindo:
Confusamente o hino me soava.
Ouvia em tanto enlevo me sentindo,
Que inda não sinto cousa que mais queira,
A mente ao canto em doce enleio, unindo.
Ousado sou talvez desta maneira,
Parecendo pospor os olhos belos,
Em que a minha alma se embevece inteira.
Mas quem reflete que os eternos selos
Vão da beleza no alto se apurando,
E aos olhos não voltava-me por vê-los,
À falta me achará perdão, notando
A verdade que digo: o prazer santo
Não excluo que em vê-la ia gozando;
Com a altura, se eleva o puro encanto.
CANTO XV
[ As almas dos combatentes pela fé em Cristo estão dispostas em forma de cruz, vexilo de martírio e de vitória. Do lado direito dessa cruz move-se um espírito e com paternal afeto saúda a Dante. É Cacciaguida, seu trisavô. Descreve ele a inocência dos costumes do seu tempo e lembra como morreu combatendo pelo sepulcro de Cristo, na segunda cruzada. ]
BENÉVOLO querer, que significa
Sempre esse amor, que a caridade inspira,
Como a cobiça o mau querer indica,
Silêncio pondo àquela doce lira;
Os sons às cordas santas suspendida,
Que lá do céu a destra afrouxa e estira.
Como aos claros espíritos seria
Em vão meu justo rogo, se excitá-lo
De acordo se calando, lhes prazia?
Ah! pranteie sem tréguas e intervalo
Quem, do amor transitório cativado,
Pôde do amor eterno avantajá-lo!
Como o sereno azul, atravessado
Às vezes é por fogo repentino,
Que aos olhos nos salteia inesperado;
Disséreis astro a procurar destino,
Se algum faltasse à parte, onde se acende
Esse instantâneo lume peregrino:
Assim do braço, que à direita estende,
Da cruz ao pé vi deslizar um astro
Dessa constelação, que ali resplende.
Não desfiou-se a per’la do seu nastro;
Pela brilhante linha descendera,
Como fogo a luzir sob o alabastro.
De Anquise a sombra pia assim correra,
Se fé merece a Mantuana Musa,
Quando Enéias do Elísio aparecera.
“O sanguis meus! O superinfusa
Gratia Dei; sicui tibi cui
Bis unquam coeli janua reclusa?”
Minha atenção na luz, que o diz, se imbui;
Voltei depois pra Beatriz o viso;
Aqui e ali estupefato eu fui.
Nos olhos seus ardia um tal sorriso,
Que, encarando-a cuidei tocar o fundo
De ventura no eterno Paraíso,
E esse esp’rito, a se ver e ouvir jucundo,
Vozes aduz, que a mente não compreende,
Tanto o sentido seu era profundo.
Andrede a obscuro o seu dizer não tende;
Mas por necessidade o seu conceito
Além da esfera dos mortais ascende.
Quando o arco afrouxou do ardente afeito,
E em proporção do humano entendimento
Do seu falar manifestou-se o efeito,
Pude esta vozes distinguir, atento:
“Bendito sejas, Deus, Um na Trindade,
Que à prole minha dás tão alto alento!
“Meu longo e caro anelo, na verdade
Dês que no grande livro hei ler podido,
Imutável na sua eternidade,
“Cumpres, ó filho; e desta luz vestido
Aquela, que ao teu vôo sublimado
Prestou asas, eu louvo agradecido.
“Tu crês que o teu pensar me é derivado
Do ser Primeiro, como da unidade
Sabida o cinco e o seis se vê formado.
“E pois, quem sou e a minha alacridade,
Maior que a de outros nesta grei contente,
Não mostras de saber curiosidade.
“Crês a verdade: o Espelho refulgente
Desta vida reflete o pensamento
Antes que nasça e a todos faz patente.
“Mas, para o sacro amor, que traz-me atento
Em perpétua visão, doce desejo
Me acendendo, alcançar contentamento,
“Com voz clara, segura e alegre, ensejo
De ouvir tua vontade me oferece:
Qual resposta hei de dar-te eu já antevejo.” —
Pra Beatriz voltei-me: já conhece
Quanto intento, e, acenando prezenteira,
Ao querer meu as asas engrandece.
— “A cada qual de vós dês que a Primeira
Igualdade mostrou-se, amor, ciência
Se fizeram em vós de igual craveira;
“Pois ao Sol, que vos deu tão viva ardência
E luz tal dispensou, tanto se igualam,
Que não tem na igualdade competência.
“Mas nos mortais o afeito e o saber se alam,
Pela causa, a vós outros manifesta,
Com plumas, que, dif’rentes se assinalam
“Eu, pois, que sou mortal, sujeito a esta
Desigualdade, de alma unicamente
Respondo à tua carinhosa festa.
“Suplico, assim, topázio resplendente,
Que adornas esta jóia preciosa,
Me faças do teu nome ora ciente.” —
Falei. Com voz tornou-me maviosa:
— “Ó flor, que tanto eu, sôfrego, esperava,
Do tronco meu brotaste primorosa!
“Aquele, em quem teu nome começara,
Que, há mais de um séc’lo já, no monte erguido
Do primeiro degrau se não separa,
“Meu filho foi, teu bisavô há sido:
Por obras deves lhe encurtar fadiga,
Quando à vida mortal hajas volvido.
“Florença dentro em sua cerca antiga,
Onde ressoa ainda a Terça e a Noa,
Vivia honesta e sóbria em paz amiga.
“Não tinha áureos colares, nem coroa,
Chapins, cintos de damas em que havia
Mais que ver do que graças da pessoa.
“No pai, nascendo, a filha não movia
Temor; em tempo azado se casava
E o dote as proporções nunca excedia.
“Cada qual do seu lar se contentava;
Não alardava então Sardanapalo
Da alcova o que no encerro se ocultava.
“Não era inda vencido Montemalo
Por vosso Uccelatojo que, excedido
Na altura, há-de, ao cair, dar mor abalo.
“Bellincion Berti eu vi andar cingido
De couro e de osso, e também vi-lhe a esposa
Voltar do espelho sem rubor fingido.
“Vestindo pele simples, não fastosa
Nerlis e Vecchios vi, no fuso e roca
Tendo as consortes vida deleitosa.
“Ditosas! A nenhuma a dor sufoca
Sperando o esposo, que roubou-lhe a França,
Nem o jazigo ignora, que lhe toca.
“Uma o berço do filho seu balança,
E o consola naquele doce idioma
Que aos pais o coração no enlevo lança;
“Outra, estirando do seu fuso a coma,
Reconta aos filhos o que houvera outrora
Em Fiésole, em Tróia e antiga Roma.
“Nesse bom tempo maravilha fora
Uma Cianghella, um Lapo Salterello,
Como Cornélia e Cincinato agora.
“Da cidade naquele viver belo,
No seio dessa gente honrada e fida,
Nessa doce mansão, da paz modelo,
“Deu-me Maria à minha mãe dorida,
E em vosso Batistério hei recebido
Os nomes de cristão e Cacciaguida.
“Irmãos Moronto e Eliseu hei tido,
Minha esposa nasceu em Val-di-Pado:
Dessa origem provém teu apelido.
“Segui na guerra Imperador Conrado,
Que me armou cavaleiro na milícia,
Altos feitos me tendo assinalado.
“Com ele pelejei contra a nequícia
Do infiel, que o direito vosso oprime
De culpado Pastor pela malícia.
“Da torpe gente o assalto lá me exime
Dos enganosos vínculos do mundo,
Cujo amor nódoas tantas na alma imprime:
Mártir, vim ao repouso sem segundo.” —
CANTO XVI
[ O poeta orgulha-se pela nobreza da sua família. Cacciaguida continua falando a respeito da própria família e da antiga Florença. Deplora a chegada em Florença de cidadãos de outras terras. Lembra as maiores famílias da cidade, muitas das quais, no tempo de Dante, eram empobrecidas ou maculadas de infâmia. ]
Ó MESQUINHA nobreza de alto sangue!
Se tanto homem de haver-te se gloria
Neste mundo, em que o afeto enfermo langue,
Maravilhar-me já não poderia,
Pois me senti, por causa tal, ufano
No céu, onde o apetite não varia.
És manto exposto em breve a estrago e dano:
Se te faltar reparação constante,
A mão do tempo te cerceia o pano.
A responder começo à luz brilhante
Por “vós” de que, primeira, Roma usara,
Mas que em vulgar dicção não foi avante.
Beatriz, que algum tanto se afastara,
Fez, sorrindo-se, como a que tossira,
Quando a primeira vez Ginevra errara.
— “Vós sois meu pai” — disse eu — “em vós se inspira
Para falar-vos do ânimo a ousadia,
Me alçais mais do que a mente própria aspira.
“Por tantos rios se enche de alegria
Minha alma que em ledice é transformada,
Pois do prazer não vence-a a demasia.
“Dizei-me, pois, minha primícia amada,
Os ascendentes vossos e em qual era
Foi a vossa puerícia assinalada.
“De São João a grei como vivera
Dizei-me e os que em seu seio se mostraram,
A quem mais alta distinção coubera.” —
Como ao sopro do vento mais se aclaram
As flamas no carvão, dessa arte àquela
Luz, me ouvindo, os fulgores se avivaram;
E quanto aos olhos se ostentou mais bela,
Tanto com voz mais doce e mais suave
Respondeu, sem falar vulgar loquela.
Disse: — “Do dia, em que se ouvia o Ave
Ao momento, em que ao mundo a mãe querida,
Hoje santa me deu no transe grave,
Do Leão foi aos pés reacendida
De Marte a luz quinhentos e cinqüenta
Vezes mais trinta na incessante lida.
“O lugar, onde o sesto último assenta,
Dos jogos anuais termo à carreira,
Meu berço e o dos avós te representa.
Deles te baste esta noção primeira:
O que hão sido, onde é sua permanência
Calar prefiro a dar notícia inteira.
“Dos que haviam então suficiência
Para a guerra, entre Marte e João Batista,
São quíntuplo os que têm ora existência.
“Toda gente, porém, que se vê mista
Co’a de Campi, Certaldo, e mais Figghine
Pura estava, do nobre até o artista.
“Acerto fora do que bem combine
Tê-los vizinhos, linha demarcando,
Que com Trepiano e com Galuz confine,
“Em lugar de hospedar o infeto bando
Dos vilões de Aguglion junto aos de Signa,
Da fraude expertos no mister nefando.
“Se a gente, hoje no mundo a mais maligna,
A César não se houvesse declarado
Cruel madrasta em vez de mãe benigna,
“Quem se diz Florentino e à usura é dado,
Vende e merca, tornava a Simifonte,
Onde o avô mendigava esfarrapado.
“Ainda em Montemurli foram Conti,
Os seus Cerchi ainda Acone conservara
E, talvez, Valdigrieve os Buodelmonti.
“Sempre de castas confusão depara,
Como a de cibo em corpo mal disposto,
Mal à cidade, e danos lhes prepara.
“Touro cego primeiro em terra é posto
Que anho cego; e melhor corta uma espada
Do que cinco num feixe bem composto.
“Se de Urbisaglia a sorte desgraçada
E a de Luni tu vês, se igual espera
Chiusi e Sinigaglia malfadada:
“Dos solares mau fim não perecera
À tua mente estranheza ou caso forte,
Pois no exício de Estados considera.
“Terrenas cousas todas sofrem morte,
Como vós; mas de algumas, perdurando,
Quem curta vida tem não sabe a sorte.
“E como a lua, sem cessar girando
Cobre ou descobre as praias do oceano,
De Florença a fortuna vai mudando;
“Assim que não suponhas mais que humano
O que eu disser de exímios florentinos,
A cuja fama o tempo já fez dano.
“Eu vi os Ughi, vi os Catellinos,
Fillippe, Greci, Ornami e os Albericos
Decadentes, mas ainda nobres, di’nos.
“Grandes em fama, de virtudes ricos
Os de Sanella vi; também os de Arca,
Soldanieri, Ardingos e Bastichos.
“À porta de São Pedro, que ora abarca
Infâmia nova tanto em peso ingente,
Que fará soçobrar em breve a barca,
“Estavam Ravignans; seu descendente
Foi Conde Guido e quantos ao diante
De Bellincione o nome têm fulgente.
“Della Pressa em governo era prestante
E Galligaio no solar dourara
Punho e copos da espada fulgurante.
“A Coluna do Esquilo se elevara,
Sacchetti, Giuochi Fifanti e Barucci
Galli e quem pelo alqueire se pejara.
Era já grande o tronco dos Calfucci
E às cadeiras curuis tinham subido,
Assumindo o poder, Sizi e Arragucci.
“Quanto lustre daqueles, que abatido
Tem soberba! Que feito viu Florença
Sem ser de Esfera de Ouro enobrecido?
“Eram pais dos que julgam glória imensa
No concistório, vago o episcopado,
Cevar-se dos banquetes na licença.
“Surgia o bando já sem pejo e ousado,
Dragão que investe a quem lhe teme a ira,
Cordeiro em vendo bolsa ou braço armado;
“De princípio tão vil a origem tira,
Que Donato Ubertino se afrontava,
Quando a um desses o sogro a filha unira.
“Já Caponsacco no Mercado estava,
De Fiésole vindo; e lá já era
Giuda, Infangato: o nome os ilustrava.
“Incrível cousa vou dizer, mas vera:
No recinto uma porta outrora havia,
À qual deu nome a gente della Pera.
“Fidalgo, que o brasão belo trazia
Do barão cujo nome, glória e vida
De São Tomé celebra-se no dia;
“Lhe deve o privilégio e honra subida;
Mas hoje ao popular partido se une
Trazendo de ouro a faixa guarnecida.
“Já Gualterotti viam-se e Importuni;
E em Borgo a paz de todo se perdera,
Quando uma turba nova em si reúne.
“A casa, de que o mal vosso nascera,
Que vos deu morte, justamente irada,
E ao feliz viver vosso o fim pusera,
“Em si, na prole sua fora honrada:
Por que sua aliança recusaste
Por sugestão, o Buondelmonte, errada?
“Quando à cidade a vez primeira entraste,
Se do Ema às águas Deus te houvesse dado,
Ledice fora o pranto, que causaste:
“Forçado era que ao mármore quebrado,
Da ponte guarda, vítima imolasse
Florença, de sua paz o fim chegado.
“Com esses e outros, que inda eu mais lembrasse,
Florença vi gozar fausto repouso,
Sem motivo que pranto lhe excitasse.
Com esses e outros vi tão glorioso
E junto o povo, que ao rever lançado
Não era na hástea o lírio seu formoso,
Nem por facções em rubro transformado.” —
CANTO XVII
[ Dante pede a Cacciaguida que lhe declare qual sorte lhe está reservada. Este prediz-lhe o exílio, a perseguição pelos inimigos e o seu refúgio na corte dos Scaligeros, Exorta-o a falar do que viu e ouviu na sua viagem, sem receio de ofender ninguém. ]
QUAL a Climene explicações rogava
De quanto em desconcerto próprio ouvira
O que austeros depois os pais tornava,
Tal fiquei, tal efeito pressentira
Com Beatriz a santa luz brilhante,
Que da Cruz eu da altura descer vira.
E disse Beatriz: — “Desse anelante
Desejo a flama exibe e nela esteja
Ao que tens na alma imagem semelhante,
“Não, por que mais ao claro em ti se veja,
Mas porque, sendo a sede revelada.
Prestada em proporção água te seja.” —
— “Ó cara estirpe minha à Glória alçada! —
Como conhecem as terrenas mentes
Não dar a obtusos dois triâng’lo entrada,
“Assim vês tu as cousas contingentes
Lá no porvir, o Centro contemplando,
A quem todos os tempos stão presentes;
“Em quanto eu a Virgílio acompanhando,
Subia o monte, onde ao pecado há cura,
E também pelo inferno penetrando,
“Sobre a existência minha ouvi futura
Agras palavras, posto que me sinta
Impertérrito aos golpes da ventura.
“Folgara em ter ciência bem distinta
Dos reveses, que a sorte me prepara:
Menos mogoa a seta ao que a pressinta.”
Ao spírito, que, há pouco me falara,
Meu desejo hei desta arte declarado,
Como a senhora minha me ordenara.
Sem ambages, que aos homens enviscado
Tinham, antes de Deus ser o Cordeiro,
Que os pecados remiu, sacrificado,
Mas em preciso estilo e verdadeiro,
Logo tornou-me o paternal afeito,
Velado e transparente em seu luzeiro:
— “A contingência, que do espaço estreito
Da matéria os limites não transcende,
Toda se pinta no eternal aspeito.
“Necessidade, entanto, não a prende,
Como não prende a vista em que se espelha
A nau, que as águas rápida descende.
“De lá bem como se transmite à orelha
Doce harmonia de órgão, refletido
O tempo me é que a ti já se aparelha.
“Qual de Atenas Hipólito há partido
Pela perfídia da madrasta ímpia,
Tal deixarás Florença perseguido.
“Assim se quer e a trama principia;
Será em breve executado o plano
Lá onde a Cristo vendem cada dia.
“A culpa o mundo a quem padece o dano
Dará; mas terá pena merecida,
Da verdade em vingança, o algoz insano.
“Deixarás toda a causa a mais querida,
Chaga primeira de tormentos cheia,
Do desterro pelo arco produzida.
“Sentirás quanto amarga; quanto anseia
O sal de estranho pão; que é dura estrada
Subir, descer degraus da escada alheia.
“Tua angústia há de ser mais agravada,
Te acompanhar no val do exílio vendo
Ignóbil gente, estólida malvada.
“Ingrato, louco e mau te acometendo
O bando se há de unir: será corrido
Ele, não tu, o opróbrio merecendo.
“Seu bestial instinto conhecido
Terão seus feitos; glória consumada
Terás; tu só formando o teu partido.
“Te há de ser acolhida franqueada
Primeira pelo exímio e grã Lombardo
Que por brasão tem Águia sobre Escada.
“Terá contigo tão cortês resguardo,
Que, o rogo prevenindo, o dom se apresse,
Que sói entre outros, se mostrar mais tardo.
“Verás com ele o que ao nascer merece
Tanto deste astro bélico a influência,
Que a fama a glória ao nome lhe engrandece.
“Inda ignorada jáz tanta excelência:
Só voltas nove em torno lhe tem dado
Estas esferas na anual cadência.
“Mas antes que o Gascão tenha enganado
Henrique excelso já fará patentes
De ouro o desdém e o ânimo esforçado.
“Serão grandezas suas tão fulgentes,
Que inimigos malgrado as contemplando,
Terão de as proclamar por preminentes.
“Nele confia, o bem dele esperando;
A sorte mudará de muita gente,
Ricos, mendigos condição trocando.
“Dele o que eu digo inculcarás na mente,
Sem narrá-lo.” — E prozeas predizia,
Incríveis inda a quem lhe for presente. —
— “Eis, filho, o comentário” — prosseguia —
“Do que se foi já dito; eis a emboscada,
Que num período breve se encobria.
“Mas por ti dos vizinhos invejada
Não seja a sorte; prolongada a vida,
Verás sua perfídia castigada.” —
Depois que essa alma santa concluída,
Calcando-se, mostrou já ter a trama
Da tela, que eu lhe oferecera urdida,
Com tom de voz falei de homem, que clama
Por bom conselho, ao recear perigo,
De quem, sábio e discreto, o bem de outro ama.
— “Vejo, ó pai, que, investindo, o tempo imigo
Contra mim corre para o golpe dar-me,
Mais grave, porque opor-me não consigo.
“De prudência, portanto, é bem que me arme;
Não suceda, ao perder pátria guarida,
Dos meus versos por causa outra faltar-me.
“No mundo, onde em perpétua dor se lida,
Da montanha subindo o excelso cume,
Donde elevou-me Beatriz querida,
“E depois pelo céu de lume em lume
Cousas tais aprendi, que, se as redigo,
Travo terão a muitos de azedume.
“Se da verdade eu for remisso amigo,
Morrer temo dos homens pelo olvido,
Que o tempo de hoje hão de chamar antigo.” —
A luz, onde o tesouro era escondido,
Que eu achara, se fez tão coruscante,
Como o sol de áureo espelho refletido.
E disse: — “A consciência vacilante
Por próprios atos ou vergonha alheia
Teu falar haverá por cruciante.
“Mas deves repelir mentira feia;
Toda a tua visão faz manifesta,
Coce-se a pele, que é de lepra cheia.
“Ao primeiro sabor será molesta
Tua palavra; mas vital sustento
Deixará depois, quando for digesta.
“Há de o teu braço assemelhar-se ao vento,
Que ao mais soberbo cimo ousado investe;
Há de isto ao nome teu dar lustre e aumento.
“Ante os olhos aqui, no céu, tiveste,
No santo monte e lá no val das dores
Almas, que a fama com seu brilho veste.
“Pois de ouvintes o ânimo ou leitores
Preço não dá ao exemplo derivado
De origem vil, sem nota, sem louvores,
Nem a outro argumento mal fundado.” —
CANTO XVIII
[ Beatriz conforta o Poeta. Cacciaguida mostra-lhe outros espíritos que combateram pela fé cristã. Sobem depois a Júpiter, ande estão as almas dos príncipes que governaram com justiça. Os espíritos se dispõem de maneira a desenhar palavras de conselho aos que governam; por último se compõem na forma de uma águia. ]
JÁ gozava em silêncio do seu verbo
Essa alma venturosa e eu cogitava,
O doce temperando pelo acerbo;
Mas aquela, que a Deus me encaminhava,
— “Muda o pensar; que perto” — me dizia —
“Eu sou do que injustiças desagrava.” —
Voltei-me à voz, que sempre me infundia
Valor: dos santos olhos a ternura
Descrever a palavra renuncia.
Não só a língua em vão dizer procura;
Mas sobre si tornando, desfalece
A mente sem socorro lá da altura.
Ora somente referir se of’rece
Que outro desejo, a santa contemplando,
Do coração, ao todo, desparece.
Como a delícia eterna, rebrilhando
Direta em Beatriz, me extasiava
Do gesto seu por um reflexo brando,
Com riso, de que a luz me subjugava,
— “Volve-te, escuta ainda; o Paraíso
Não stá só nos meus olhos” — me falava.
Como a paixão, no seu dizer conciso
Pelos olhos se exprime, na alma enquanto
Tolhe o prestígio seu todo o juízo,
Assim no flamejar do fulgor santo,
Voltando-me, o desejo vi patente
De aditar ao que disse ora algum tanto.
— “Na quinta estância da árvore, que, ingente,
Pelo cimo se nutre” — principia —
“Que frutos sempre dá, sempre é virente,
“Espíritos habitam, que algum dia
Nome tinham na terra tão famoso,
Que opimo assunto às Musas prestaria.
“Da cruz os braços olha cuidadoso:
Os que eu te nomear verás fulgindo,
Qual relâmpago em nuvem pressuroso.” —
Na Cruz vi perpassar, o nome ouvindo
De Josué, um traço rutilante,
Mal acabara a voz, presto surgindo.
Disse o grã Macabeu: no mesmo instante
Outro acorria, sobre si rodando,
Tange alegria esse pião brilhante;
Assim fez Carlos Magno, assim Orlando.
Atento, os movimentos seus esguardo,
Qual monteiro ao falcão no ar voando.
Seguiram-se Guilherme e Rinoardo;
Distingue o duque Godofredo a vista,
E logo após se assinalou Guiscardo.
Depois com os outros esplendores mista
Provou-me a alma ditosa, que há falado,
Ser nos coros do céu sublime artista.
Voltei-me então para o direito lado
Por conhecer de Beatriz o intento,
Em palvras ou gestos declarado.
Nos olhos puros seus vi tal contento,
Fulgor tal, que excedia o seu semblante
Quando de antes prendeu-me o pensamento.
Como, ao sentir prazer inebriante,
Cada vez que o bem faz homem conhece
Ir da virtude na vereda avante,
Assim mais amplo o arco me parece
Do círc’lo, em que vou co’o céu girando
Ao ver quanto prodígio tal recresce.
Tão presto, como em nívea face, quando
A chama do pudor se acende, volta
A cor a ser qual de antes, branqueando,
Pelo doce candor, que a vista envolta
Me teve, conheci que a sexta estrela
Nos recebera a mim e a minha escolta.
De Júpiter na esfera argêntea e bela
O cintilar de amor, que ali resplende,
Linguage’ humana aos olhos me revela.
De aves qual bando, que se estreita ou estende,
Do rio junto à borda e que à verdura
Do pascigo, a folgar os vôos tende,
Tal em seus lumes grei ditosa e pura,
Adejando, cantava e descrevia
De D, de I, de L uma figura.
Ao compasso dos hinos se movia
E em silêncio quedava, se detendo,
Quando alguma das letras concluía.
Pegásea Diva, ó tu, que, concedendo
A glória ao gênio, lhe dilatas vida,
Cidades, reinos imortais fazendo!
Brilha em mim! por que seja referida
Cada figura, qual me foi presente!
Faz tua força em meus versos conhecida!
E cinco vezes sete claramente
Vogais e consoantes vi, notando
Cada qual pelo traço refulgente:
“DILIGITE JUSTITIAM” indicando
Verbo e nome primeiros na escritura;
“QUI JUDICATIS TERRAM” terminando.
Colocando-se assim cada luz pura,
No fim pausaram no vocáb’lo quinto:
Sobre o argento de Jove ouro fulgura.
De outros lumes, que descem, vi distinto
Do M o cimo: cantam, lá pousados,
Bem que os atrai ao divinal precinto.
Como carvões ardentes encontrados
De centelhas um jorro de si lançam,
Presságios por estultos venerados,
Muitos mil fogos para o ar avançam,
Subindo à altura, que lhes há marcado
O Sol, de quem beleza e brilho alcançam.
Já, cada qual ao seu lugar tornado,
De Águia o colo a meus olhos se mostrava,
Rematando em cabeça, desenhado.
Guia não teve o artista que os traçava:
É seu todo o primor, toda a mestria,
Que em cada ninho forma própria grava.
A santa grei, porém, que parecia
De ornar de c’roa o M estar contente,
Movendo-se, a figura perfazia.
Quanta jóias, ó astro refulgente,
Mostraram-me provir justiça humana
Do céu de que és ornato permanente!
À Mente, pois, suplico de que emana
O moto e a força tua, atenta veja
Da névoa a causa que o teu brilho empana;
E de ira inda uma vez tomada seja
Contra os que mercadejam no seu templo,
Que do sangue dos mártires flameja.
Celestial milícia, que eu contemplo,
Roga por esses, que ora estão na terra
Transviados, seguindo hórrido exemplo.
Com gládio outrora se travava a guerra;
Hoje em tirar o pão, que Deus tem dado,
Dos combatentes o valor se encerra.
Tu que escreves pra ser logo emendado
Pensa que Pedro e Paulo hão ressurgido,
Pela vinha morrendo que hás talado.
Tu bem podes dizer: — “Devoto hei sido
Do que, ao deserto dando tanto apreço,
Sofreu martírio à dança oferecido:
O pescador e Paulo não conheço.” —
CANTO XIX
[ Dante fala à Águia externando uma sua antiga dúvida se alguém possa salvar-se não tendo conhecimento da lei de Cristo. Respondendo, a Águia aproveita a ocasião para repreender os malvados reis cristãos do seu tempo que nunca obterão a graça de Deus. ]
DE asas pandas formosa se ostentava
Essa imagem, que enlevos de alegria
Nas almas enlaçadas excitava,
E rubi cada qual me parecia,
Em que raio de sol, fúlgido ardendo,
Os lumes nos meus olhos refrangia.
O que eu agora descrever pretendo
Voz não contou, nem pena há referido,
Nem criou fantasia encarecendo.
O bico da Águia vi falar, e o ouvido
Eu e meu nas palavras distinguia,
Mas nós e nosso estava no sentido.
— “Porque fui justo e pio” — assim dizia —
“Exaltado me vejo a tanta glória,
Que excede a quanto o anelo aspiraria.
“De mim deixei na terra tal memória,
Que apregoam-na os homens pervertidos,
Sem exemplos seguir, que narra a história.” —
Como em pira dão lenhos incendidos
Um só calor, aqueles mil amores
Da imagem stavam num falar contidos.
Então lhes disse: “Ó vós, perpétuas flores
Do júbilo eternal, que num perfume
Sentir fazeis multíplices olores,
“Esta fome fartai, que me consome,
Há largo tempo, na terrestre vida,
Onde alimento nunca achar presume.
“Se do céu noutro reino é refletida
A divina Justiça em claro espelho,
Sei que sem véus no vosso é percebida.
“Sabeis que, atento, a ouvir-vos me aparelho;
Sabeis também que, nunca saciado,
Ardo em desejo que se fez já velho.” —
Qual falcão, do capelo desvendado,
Que a fronte move, as asas exercita
E se apavona ledo e alvoroçado,
Tal vi a insígnia, que essa grei bendita,
Louvor da graça divinal, formara,
Com hinos próprios da mansão que habita.
Depois dizia: — “Aquele, que traçara
Com seu compasso o mundo e no começo
De ocultas, claras cousas o dotara,
“Não pôde tanto seu poder impresso
No universo deixar, que o Eterno Verbo
A criação não teve infindo excesso.
“Prova-o bem quem primeiro foi soberbo;
Pois, sendo ele perfeita criatura,
Não esperando a luz, caiu acerbo.
“Todo ente, pois, somenos em natura
Conter o Bem sem fim não circunscrito
Não pode e em si guarda a mensura.
“Nossa vista, de alcance tão finito,
Posto seja um dos raios dessa Mente,
Que as cousas todas enche no infinito,
“Não é, por natureza, tão potente,
Que não discirna a sua Causa Eterna,
Do que ela é na verdade diferente.
“Penetra na justiça sempiterna
A vista concedida ao vosso mundo,
Bem como o olhar, que pelo mar se interna:
“Se junto ao litoral lhe enxerga o fundo,
No pélago o não vê: certo é que existe,
Mas encoberto está por ser profundo.
“Se do Lume não vem, que só persiste
Sempre sereno, a luz torna-se em treva,
Ou da carne é veneno, ou sombra triste.
“Já compreendes que o véu romper se deva,
Que a Divina Justiça te escondia,
E a tão freqüentes dúvidas te leva.
“Junto ao Indo — tua mente assim dizia —
Um varão vem á luz: de Cristo o nome
Nem por voz, nem por letras conhecia.
“Os feitos e desejos são desse home’
Bons no quanto julgar à razão cabe;
Em pecar ditos e atos não consome.
“Quando sem fé e sem batismo acabe,
Há justiça em ser ele condenado?
Pode ter culpa quem não crê, não sabe?
“Mas tu quem és, que, em tribunal sentado,
Julgas, de léguas em milhões distante,
Se mal vês o que a um palmo é colocado?
“Em duvidar, por certo, iria avante
Quem assim sutilezas apurara,
Sem a luz da Escritura triunfante.
“Terrenos vermes! raça estulta, ignara!
A primeira Vontade, por si boa,
De si, Supremo Bem, se não separa.
“Justo é somente o que com ela soa,
A si nenhum criado bem a tira,
Todo o bem, radiando, ela afeiçoa.” —
Como a cegonha, que o seu ninho gira,
Os filhotes já tendo apascentado,
Enquanto cada qual, farto, a remira,
Assim, os olhos quando eu tinha alçado
Fez o pássaro santo; e asas movia,
Por múltiplas vontades sustentado.
Volteando cantou; depois dizia:
“As notas não comprendes do meu canto,
Como os mortais de Deus sabedoria.” —
As flamas quando já do Esp’rito Santo
Quedaram nessa imagem, que alcançara
Aos Romanos do mundo temor tanto,
Prosseguiu: — “Este reino não depara
Jamais quem não acompanhou a Cristo
Nem antes, nem depois que à Cruz se alçara.
“Dizem muitos em grita — Cristo! Cristo!
Menos perto, em juízo, do que o infido
Lhe hão de ser que jamais conheceu Cristo.
“Há de os danar o Etíope descrido,
Quando em grei rica e pobre eternamente
For o gênero humano repartido.
“Dos reis cristãos o que dirão em frente
Os Persas, lendo no volume aberto,
Onde tanto flagício está patente?
“Ali hão de se ver entre os de Alberto
Os que serão em breve registados:
De Praga o reino tornarão deserto.
Se hão de ver sobre o Sena acumulados
Os do Rei, que a moeda falsifica,
Da fera morto aos dentes afiados.
Se há de ver a soberba, atroce, inica
Quem me demência o Escocês e o Bretão lança:
Nenhum nos seus confins contente fica.
“E se há de ver quanto em luxúria avança
O Rei de Espanha e o que a Boêmia rege,
Que mostra ao seu dever tanta esquivança.
“Ninguém ao Coxo de Sião inveje:
Com I sua bondade se assinala,
Com M o que em contrário ama e protege
“Se há de ver que a avareza à ignávia iguala
No Rei da ilha, em que morreu Anquise,
E donde o fogo, a trovejar, se exala.
“Porque do seu valor mal se ajuíze,
Em cifra a história sua é resumida,
Que muito em pouco espaço localize,
“Será patente a vergonhosa vida
Do tio e desse irmão, que hão desonrado
Dois cetros e a ascendência enobrecida.
“O Rei de Portugal será notado
E o Rei de Noruega e mais aquele,
Que de Veneza os cunhos tem falsado.
“Ditosa Hungria! que de si repele
O jugo da opressão! Feliz Navarra,
Quando em seus montes que defensa vele!
“E creiam todos que já d’isto em arra
Nicósia e Famagusta se lamentam,
Bramindo de uma fera sob a garra:
Os exemplos dos mais não o escarmentam.” —
CANTO XX
[ A Águia louva alguns reis antigos que foram justos e virtuosos. Depois solve a Dante uma dúvida, como possam estar no Céu alguns espíritos que, na sua opinião, quando em vida não tinham tido fé cristã. ]
QUANDO esse astro, que a todos alumia
Deste hemisfério nosso já descende
E se consome em toda parte o dia,
O céu, que dele só de antes se acende,
Cintilante se mostra de repente
Por mil luzeiros, em que um só resplende.
Do céu surgiu-me essa mudança à mente
Depois que o santo pássaro calou-se,
Dos reis, no mundo, insígnia refulgente;
Pois desses vivos lumes ateou-se
Inda mais o clarão, hino cantando,
Que na memória instável apagou-se.
Ó doce amor! num riso te velando,
Quanto indicas arder nos esplendores,
Que estão santo pensar só respirando!.
Quando as gemas sublimes nos fulgores,
De que o sexto planeta se adornava
Findaram seus angélicos dulçores,
De rio o murmurar ouvir julgava,
Que, em claras espadanas debruçado
Com sua veia abundante as rochas lava.
Da cít’ra em braço como o som formado,
Como o sopro na avena penetrando
Em melódicas notas modulado,
Assim formou-se um murmúrio brando,
Que subiu, logo após, da ave formosa,
Pelo canal do colo, se exalando.
Então em voz tornou-se harmoniosa,
Que do bico em palavras irrompia:
Em minha alma insculpiram-se ansiosa.
— “Na parte atenta, que em mim vê” — dizia —
“Que até na águia mortal afronta ousada
O sol, quando rutila ao meio-dia;
“Porque dos fogos, de que sou formada,
Aqueles, com que a vista me cintila,
No céu graduação tem sublimada,
“Esse, que brilha em meio por poupila,
Foi o régio cantor do Esp’rito Santo,
Que a Arca trasladou de vila em vila.
“Conhece ora a valia de seu canto,
Qual foi o efeito desse ardente zelo,
Galardão recebendo tal e tanto.
“Dos cinco, que o sobrolho me ornam belo,
Consolou o que ao bico está mais perto
Viúva em dó do filho, seu desvelo.
“Quanto custa lhe está bem descoberto
A Cristo não seguir, pela exp’riência
Do céu e do penar pungente e certo.
“E o que está logo após na circunf’rência
Do sobrolho, onde vês arco superno,
Morte adiou por vera penitência.
“Conhece agora que o juízo eterno
Não muda, se o rogar do arrependido
Em crástino tornar fato hodierno.
“A mim e às leis esse outro há transferido
À Grécia, do Pontífice em proveito:
Boa intenção mau fruto há produzido.
“Conhece agora que o maligno efeito
Dessa obra pia lhe não é nocivo,
Posto haja o mundo horrendo desproveito.
“O que vês do sobrolho no declive
Guilherme é, por quem chora o reino opresso
De Frederico e Carlo ao mando esquivo.
“Conhece agora bem com quanto excesso
Ao Rei justo ama o céu: do seu semblante
Ainda no fulgor se mostra expresso.
“Quem crer pudera em vosso mundo errante
Que entre estas luzes santas quinta seja
Rifeu Troiano, da justiça amante?
“Conhece agora que mistério esteja
Na Graça — aquilo, que inda o mundo ignora —
Bem que o fundo inefável não lhe veja.” —
Qual codorniz que os vôos seu demora,
Paira cantando e cala-se, enlevada
Nas doçuras finais da voz sonora:
Tal parece-me a imagem sinalada
Pelo eterno prazer, que, a seu desejo,
Faz que seja quanto é cousa criada.
Posto a dúvida minha neste ensejo,
Como no vidro a cor, fosse patente,
Não mais espero a solução, que almejo.
Cedendo à força do seu peso urgente.
Prorrompo logo: — Que mistério imenso! —
Da águia o júbilo fez-se mais fulgente.
Brilho tendo nos olhos mais intenso
A sacrossanta forma respondia
Por não mais ter-me atônito e suspenso:
— “Bem vejo que tu crês” — assim dizia —
“Não porque entendas, mas porque assevero:
Ocultas cousas são, mas fé te guia.
“És como quem da cousa o nome vero
Aprende; mas inota fica a essência,
Se não a explica espírito sincero.
“Dos céus o reino sofre um violência
Do ardente amor e da esperança viva,
Que triunfam da própria Onipotência.
“Mas não é, qual vitória humana, esquiva:
Vencido é Deus por ser assim servido;
Tem, vencido, vitória decisiva.
“Maravilhado, ao veres, te hás sentido,
Do meu sobrolho a luz quinta e primeira
Neste império aos eleitos concedido.
“Não morreram gentios: crença inteira
No Redentor futuro ou no já vindo
Tinham antes da hora derradeira.
“À vida um, lá do inferno ressurgindo,
Onde não se corrige o condenado,
A mercê recebeu anelo infindo,
“Vivo anelo, que ardor tanto empenhado
Em suplicar a Deus tal graça havia,
Que pôde o seu querer ser abalado.
“Quando voltou à carne e à luz do dia,
Em que não fez detença a alma ditosa,
Naquele há crido que a salvar podia;
“E foi na fé, no amor tão fervorosa,
Que ao passar nova morte há merecido
Sublimar-se à existência gloriosa.
“E do outro, pela Graça protegido,
Que provém de uma origem tão profunda,
Que a nascente olho algum não lhe há sabido,
“Foi no amor à justiça sem segunda:
De graça em graça a Redenção futura
Mostrou-lhe Deus revelação jucunda.
“À fé se entrega; e a sua mente pura
A perversão gentílica rejeita,
Do mundo repreendendo a vida impura
“As damas três que achavam-se à direita,
Do carro, o seu batismo efetuaram,
Anos mil precedendo a lei perfeita.
“Ó predestinação! Não te alcançaram
A raiz esses olhos, que a primeira
Cousa jamais ao todo interpretaram.
“Mortais! Oh! não julgueis tão de carreira!
Porque nós que Deus vemos não sabemos
Dos preferidos seus a grei inteira.
“Esta ignorância por ditosa havemos;
Que o nosso bem por este bem se afina,
De ser quanto Deus quer o que queremos.” —
Por essa imagem de feição divina
Assim, para aclarar-me a curta vista,
Dada me foi suave medicina:
E como a um bom cantor bom citarista
Acompanha, vibrar fazendo a corda,
E desta arte mais graça o canto aquista,
Assim a fala (a mente me recorda)
Da ave santa os luzeiros dois seguiam
Como dos olhos o bater concorda,
Com sua voz igualmente se moviam.
CANTO XXI
[ Dante sobe do céu de Júpiter ao de Saturno, no qual encontra as almas dos que se dedicaram na vida à celeste contemplação, onde vê uma escada altíssima pela qual vai subindo o descendo uma multidão de almas resplendentes. S. Pedro Damião vai ao encontro do poeta e lhe fala do dogma da predestinação. ]
DE Beatriz no gesto o entendimento,
Acompanhando os olhos, embebia;
De ai não cuidava absorto o pensamento
Beatriz, sem sorrir-se, me dizia:
— “O sorriso contenho; de outra sorte,
Como Semele, em cinzas te veria.
“Minha beleza, viste já, mais forte
Refulge, quanto mais se eleva a escada,
Por onde ascende para a eterna corte.
“Teu vigor, se não fora moderada,
Ao seu fulgor, de todo fenecera,
Qual fronde, pelo raio espedaçada.
“À sétima chegamos clara esfera,
Que sob o peito do Leão ardente
Da luz mais viva do que de antes era.
“Teus olhos acompanhe pronta a mente;
Sejam-te espelho a quanto este astro belo,
Que um espelho é também, fará patente.” —
Quem bem coubesse a força do desvelo,
Com que a vista em seu gesto se pascia,
Quando voltei-me a impulso de outro anelo,
Quanto contente fui conheceria,
Minha guia celeste obedecendo,
Após uma gozando outra alegria.
No cristal, que, em seu giro se movendo,
O nome do Monarca tem querido,
Que a todo vício foi flagelo horrendo,
De áurea cor, em que o sol é refletido,
Escada vi de tão sublime altura,
Que o topo aos olhos stava-me escondido.
Pelos degraus brilhando com luz pura
Descia soma tanta de esplendores,
Que os clarões todos ver se me afigura.
Como, ao seu modo, aos matinais albores,
As gralhas, pelos ares se movendo,
Aquecem-se, do frio nos rigores,
Umas se vão não mais voltar querendo,
Tornam outras, buscando o pouso amado,
Rodam outras, os vôos seus contendo:
Tal dos lumes o bando sublimado
Pela escada formosa parecia,
Até certo degrau terem tocado.
E o que parou mais perto resplendia
Tão claro, que eu pensei: — Luz, que eu venero
Em ti, amor, em que ardes, denuncia.
Mas Beatriz de quem sinal espero
Pra dizer ou calar, grave emudece:
Eu pois o anelo meu, reprimir quero.
Ela, que o meu pensar então conhece,
Pois quem tudo prevê lho manifesta,
— “Cumpre” — disse — “o que a mente ora apetece.” —
E comecei: — “Direito não me presta
A resposta o meu mérito apoucado:
Mas por aquela, que o valor me empresta,
“Espírito ditoso, que velado
Stás por tua alegria, me declara
Por que tão perto a mim te hás colocado;
“E por que muda está na esfera clara
Do paraíso a doce sinfonia,
Que tão devota noutras escutara.” —
— “Como os olhos o ouvido” — respondia —
“Tens mortal: nesta esfera não se canta,
Nem Beatriz sorri, como soía.
“Tantos degraus desci da escala santa
De prazer por te dar mostra evidente
Em vozes e na luz que me abrilhanta.
“Não que me apresse o afeto mais ardente,
Pois lá por cima igual ou mais se acende,
Como te prova o flamejar ingente.
“Mas alta caridade, que nos prende
A quem por seu querer tudo governa,
Quais vês, marca os lugares como entende.” —
— “Bem conheço” — tornei — “sacra luzerna,
Como o livre amor do céu na corte
Basta para cumprir vontade eterna;
“Mas como, entre a dos teus santa coorte,
Tu só chamado a este cargo hás sido,
Por discernir não hei mente assaz forte.” —
A voz final não tendo proferido,
Qual veloz roda, sobre si girando,
Volveu-se o lume, súbito movido.
O amor, que encerrava, então falando
— “Em mim dardeja” — disse — “a luz divina,
Esta, que me circunda, penetrando.
“Com meu ver, sua ação, que assim combina,
Tanto me alteia, que a Suprema Essência,
Donde ela emana, a mim se descortina.
“Daí vem do meu júbilo esta ardência;
Pois a minha visão quanto é mais clara,
Da claridade em mim sobe a eminência.
“Alma, porém, que mais no céu se aclara,
O serafim, que em Deus mais se embevece,
Resposta ao teu dizer não deparara.
“Tanto o que me perguntas desparece
Dos eternos conselhos no infinito,
Que a vista a todos pávida esmorece.
“Ao mundo isto por ti deve ser dito,
Que da verdade saiba quanto aberra,
Os pés movendo ao transcedente fito.
“Alma, que é flama aqui, fumo é na terra:
O que no céu jamais saber alcança,
Como ver pode, quando a cinza a encerra?” —
Em tanto enleio o seu dizer me lança,
Que humilde, outras perguntas evitando,
Em lhe saber o nome pus a esp’rança.
— “De mares dois no meio demorando,
De Florenca não longe, estão rochedos,
Aos trovões sobranceiros se empinando.
“Catria chama-se a giba dos penedos:
Ao pé se vê um claustro consagrado
Da alma com Deus aos místicos segredos.” —
Terceira vez o santo me há tornado.
E disse, prosseguindo: — “Nessa ermida
Somente a Deus servir me hei dedicado.
“Com suco de oliveira por comida,
Contente a calma e frio suportava,
Passando ali contemplativo a vida.
“Nesse retiro ao céu se aparelhava
Ampla seara; estéril tanto agora,
Que o véu já cai que o mal dissimulava.
“Fui Pedro Damiano; um Pedro outrora
Dito Pecador junto ao Ádria esteve
Na casa em que invocou Nossa Senhora.
“Da vida me restava espaço breve,
Quando ao claustro arrancado, me cingiram
Chapéu, que a indignas fontes já se deve.
“Magros descalços a missão cumpriram,
O Vaso de Eleição e Cefas, tendo
O pão de cada dia, que pediram.
“Hoje o pastor, a custo se movendo,
Anda de um lado ao do outro carregado,
Quem o sustente por de trás querendo.
“Seu manto, o palafrém tendo embuçado,
Dois brutos numa pele está fingindo:
Ó paciência, quanto hás suportado!” —
Calou-se. Luzes mil eu vi, fulgindo,
Descer em veloz giro a excelsa escada:
Seu brilho, em cada volta, ia subindo.
Parando em torno a essa alma afortunada,
A voz em som tão alto despediram,
Que não pudera ser de outro igualada.
Não sei, torvado, o que elas proferiram.
CANTO XXII
[ Outros espíritos bem-aventurados aproximam-se do Poeta, entre eles S. Bento, o qual lhe indica alguns dos seus santos companheiros; depois lamenta profundamente a corrupção da ordem por ele fundada. Sobe daí o Poeta à oitava esfera que é a das Estrelas Fixas. ]
VOLTEI-ME a Beatriz, de espanto entrado,
Qual menino, que busca sempre o amparo
De pessoa, em quem mais há confiado.
Beatriz, como a mãe, que ao filho caro
Súbito acorre ao vê-lo espavorido,
Com voz, que sói lhe ser terno anteparo,
— “Ao céu” — disse — “não vês que foste erguido?
Ignoras tu que o céu em tudo é santo
E a caridade a tudo há presidido?
“Pois comover-te o grito pôde tanto,
Oh! quanto o meu sorriso te abalara
E dos celestes coros o alto canto!
“Se esse grito os seus rogos revelara,
Já de agora souberas a vingança,
Que inda antes de morrer, verás, amara.
“Do céu a espada pune sem tardança,
Mas sem pressa, conquanto o não pareça
A quem no medo aguarde e na esperança
“Mas por voltar o rosto ora começa:
Que tens de ver espíritos famosos,
Se a vista, como eu digo, se endereça.” —
Como ordenara, os olhos curiosos
Alcei: glóbulos vejo mais de cento,
Que os raios seus cruzavam luminosos.
Eu estava como quem reprime atento
Do desejo o aguilhão, e receava
Por perguntas mostrar molesto intento;
Eis uma dessas pér’las, que ostentava
Entre as outras mais brilho, mais grandeza.
Para dar-me contento se acercava.
— “Se como eu” — disse a sua voz — “certeza
Da caridade houvesse, que em nós arde,
Teu desejo exprimiras com franqueza.
“Por que maior demora não retarde
Teu fim sublime, eu te darei resposta,
Posto em silêncio o teu pensar se aguarde.
“O monte, que o Cassino tem na encosta,
Estava, em seu cabeço, povoado
Por gente ignara, ao erro e ao mal disposta
“Ali, primeiro, o Nome hei proclamado
Daquele, que aos humanos a verdade
Trouxe que humanos tanto há sublimado.
“Da Graça em mim luziu tal claridade,
Que salvar pude os povos circunstantes
Do culto, que perdera a humanidade.
“Eremitas hão sido esses brilhantes
Fogos, que vês: na flama se acenderam,
Que frutos brota e flores vicejantes.
“Macário e Romualdo aqueles eram,
Estes os meus irmãos, que, os pés firmando
No claustro, os corações ao Senhor deram.” —
— “Esse afeto, que mostras me falando” —
Tornei — “e o bem-querer, que tão patente
Nos esplendores vossos ’stou notando,
“O ânimo dilata-me: igualmente
O sol faz, quando à rosa purpurina
O seio desabrocha rescendente.
“E, pois, te rogo, ó Padre meu, te inclina
A declarar-me se a mercê mereço
De ver-te a face, mas sem véu, beni’na.” —
— “O teu sublime anelo todo apreço
Há de achar” — disse — “irmão, na extrema esfera,
Onde todos e o meu terão seu apreço.
“Madura, inteira ali se considera
Perfeita a aspiração; ali somente
Demora cada parte sempre onde era.
“Sem pólos, sem lugar é permanente;
Até lá nossa escada vai subindo;
Foge-te à vista a sua altura ingente.
“Viu-a Jacó, o topo lhe atingindo,
Quando em sua visão a contemplava
De inumeráveis anjos refulgindo.
“Mas ninguém por subi-la os pés destrava
Hoje da terra; e a minha regra escrita
Inutilmente nos papéis se grava.
“A morada monástica bendita
É covil; o capuz se há transformado
E farinha contém ruim, maldita.
“Não seja usura havida por pecado
Tão grave contra Deus, quanto a avareza,
Que aos monges tem os corações eivado;
“Pois quanto a Igreja poupa é da pobreza,
Que de Deus por amor seu pão mendiga,
Não pra cevo a parentes, ou a torpeza.
“Na terra a carne ao homem tanto obriga,
Que haver um bom princípio não bastara
Entre a planta em nascendo e a sua espiga.
“Sem ouro e prata Pedro começara,
Eu com jejuns, com orações; convento
Francisco humildemente levantara.
“De cada qual à origem estando atento,
Verás o branco em negro transformado,
Se depois tens seu fim no pensamento.
“Maior milagre foi, quando tornado
Para trás, o Jordão do mar fugia,
Do que socorro a tanto mal levado.” —
Calou-se, e a santa grei logo se unia;
Cerrou-se a grei, e o espírito com ela,
Qual turbilhão, na altura se encobria.
Na escada alcei-me após, da dama bela
Ao oceano; por seu poder mudada
A natureza minha se revela.
Naturalmente nunca acelerada
Descida houve na terra, nem subida,
Que possa ao meu voar ser igualada.
Seja-me assim, leitores, concedida
A glória, pela qual choro e suspiro,
Bata nos peitos de alma compungida,
Como eu, enquanto o dedo meto e tiro,
Do fogo o signo, de que está seguido
O Tauro, vi, e entrei logo em seu giro.
Gloriosas estrelas, luz que hás sido
Por grã virtude a causa de que emana
Humilde engenho, que há em mim nascido,
Convosco na carreira, em que se afana,
Andava o que a mortal vida origina,
Quando aspirei primeiro ar da Toscana.
E quanto permitiu Graça Divina
Nesse alto céu entrar, que vos compreende,
Por vós passar me deu sorte beni’na.
Por vós devoto anelo em mim se acende
Para alcançar virtude nesse forte,
Árduo passo que a si me atrai, me prende.
— “Perto à ventura extrema és de tal sorte,
Que a vista clara tens e penetrante” —
Diz Beatriz, o meu formoso norte.
“Mas antes de te ergueres mais avante,
Remira abaixo, e vê, por mim guiado,
Sob os pés quanto mundo está distante;
“Por que teu peito, em júbilo inundado,
Seja presente ao povo triunfante,
Que nesta esfera avança extasiado.” —
Então, volvendo os olhos anelante
Às sete esferas, nosso globo vejo
Tal, que sorri-me do seu vil semblante.
Quem lhe dá pouco apreço em todo ensejo
Aplaudo, e grande sábio, em meu conceito,
É quem põe noutra parte o seu desejo.
Vejo da filha de Latona o aspeito
Sem a sombra, que fosse em parte densa,
Em parte rara imaginar me há feito.
Do filho, Hiperião, a flama intensa
Pude olhar; perto e em torno lhe giravam
Maia e Dione em volta pouco extensa.
Como aos do pai e filho temperavam
De Jove os fogos, vi e o movimento
Vário, que em roda ao centro seu formavam.
Dos orbes sete eu contemplava atento
Grandeza e rapidez, e comprendia
Distâncias e postos seus no firmamento.
Como o curso dos Gêmeos eu seguia
De montes, mares via todo envolto
O canto estreito, em que homem se gloria:
Olhos depois aos belos olhos volto.
CANTO XXIII
[ Descem Cristo e Maria no meio de anjos e de almas bem-aventuradas. Cristo, porém, logo desaparece; e o arcanjo Gabriel, em forma de chama, coroa a Maria. Depois, Maria sobe no Empíreo reunindo-se ao seu divino filho. ]
QUANDO tudo em seus véus a noite esconde,
Sobre o ninho dos filhos seus amados
Ave, pousada entre a dileta fronde,
Para ver os seus gestos desejados
E buscar cibo que lhes dê sustento,
Desvelos, que lhes são bem compensados,
Da rama espia o tempo de olho atento
E com sôfrego anelo espera o dia,
Da alvorada aguardando o nascimento;
Tal vigilante Beatriz eu via
Para a plaga voltada luminosa,
Onde mais lento o sol me parecia.
Vendo-a assim pronta em vista e cuidadosa,
Homem fiquei, que melhorar-se aspira
E na esperança alenta a alma cuidosa.
Porém, breve, a demora logo expira
Entre atentar e ver que o céu se aclara
Com luz, que, viva mais e mais, subira.
— “Eis a milícia” — a dama diz preclara —
“Da vitória de Cristo! Eis a colheita,
Que o giro entre as esferas nos depara!”
Parece a face ter de flamas feita;
Arde nos olhos seus tanta alegria,
Que a palavra a dizê-la não se ajeita.
Qual Trívia em plenilúnios irradia
Entre as ninfas eternas se sumindo,
De que o céu nos recessos se alumia,
Sobre milhões de fogos refulgindo
Um sol vi, que os clarões seus lhes prestava,
Como aos astros o nosso a luz partindo.
Por entre o aceso lume fulgurava
A Divina Substância tão brilhante
Que a vista, contemplando-a, desmaiava.
— “Ó Beatriz! Ó guia doce e amante!” —
Tornou-me: — “O que te enleia a inteligência
Força invencível tem, sem semelhante.
“Aqui stá o Saber e a Onipotência,
Que para o céu caminho abrindo à terra,
Cumpriu-lhe inextinguivel apetência.”
Como o fogo da nuvem se descerra,
No seio, estreito já, se dilatando,
E, devendo subir, baixa e se aterra,
Assim, entre delícias se alargando,
Alma senti num êxtase arroubada;
Qual fui não sei, de todo me olvidando.
“Abre os olhos e vê qual sou tornada;
Pois te foi dado ver tanto portento
Já posso, ora a sorrir ser contemplada.” —
Estava eu como quem, no pensamento
De passada visão vestígio tendo
Salvá-los quer em vão do esquecimento,
Quando a sublime oferta recebendo,
De gratidão me entrei, que não se apaga
Do livro, em que o passado está vivendo.
Se quantos c’as irmãs Polínia afaga,
Com dulcíssimo leite os alentando,
Por eloqüência me ajudassem maga,
Na milésima parte eu, me afanando,
Cantar não conseguira o santo riso,
Que raiava no aspeito venerando.
Desta arte, descrevendo o Paraíso
Saltar deve este meu sacro poema,
Como em caminho às vezes é preciso.
Mas quem pensar que é ponderoso o tema
E débil o ombro, que lhe está sujeito,
A mal não levará, se ao cargo eu trema.
Não é para baixel pequeno e estreito
O mar que a proa vai cortando agora,
Nem para nauta a se poupar afeito.
— “Porque tanto o meu gesto te enamora,
Que não contemplas o jardim formoso,
Que aos doces raios de Jesus se enflora?
“Tem a Rosa, em que o Verbo milagroso
Carne se fez; os lírios têm, que ensinam
O bom caminho pelo odor mimoso.” —
Assim diz Beatriz. Pois me dominam
Seus conselhos, aos transes se oferecem
Meus olhos, que ante a luz débeis se inclinam.
À sombra estando, às vezes me aparecem
Prados vestidos de formosas flores
Do sol aos raios que entre nuvens descem;
Assim turbas distingo de esplendores,
A que do alto baixaram mil ardentes
Clarões sem ver a causa dos fulgores.
Ó Virtude beni’na que esplendentes
Os fazes, deste espaço, assim subindo,
Aos meus olhos, pra ver-te inda impotentes.
Da bela flor o doce nome ouvindo,
Que noite e dia invoco sempre, atento
No lume, que maior stava fulgindo,
Quando em sua grandeza e luzimento
Vi com meus olhos essa viva estrela,
Que vence, como aqui, no firmamento;
Do céu baixando flama se revela,
Que em forma circular, como coroa
Cingiu-a, se agitando em torno dela.
A melodia que mais branda soa
Na terra e as almas para si mais tira,
Trovão seria, que das nuvens troa,
Comparada à doçura dessa lira,
Que, do azul mais suave em céu vestido,
C’roava a bela, divinal safira.
— “Sou angélico amor, que, assim movido,
Mostro o prazer, que vem do seio santo,
Que ao Salvador do mundo albergue há sido.
“Hei de girar, do céu Senhora, enquanto
Deres, do filho entrando em companhia,
À suma esfera mais divino encanto.” —
Cantava assim da c’roa a melodia.
Dos outros lumes todos almo canto
O nome proclamava de Maria.
Dos orbes o primeiro, régio manto,
Que sente mais fervor, que mais se anima,
Do Supremo Senhor ao sopro, tanto
De nós distante se internava acima,
Que o aspecto seu na imensidade pura,
De distinguir a vista desanima.
Dos olhos meus a força em vão se apura,
Seguir querendo a flama coroada,
Que após seu Filho ergueu-se para a altura.
Qual criança, de leite saciada,
Que, ávida ainda, à mãe estende os braços,
No afeto seu mostrando-se inflamada,
Cada esplendor, subindo nos espaços,
Tendia-se, a Maria revelando
Quanto os prendem de amor excelso os laços.
Depois ver se fizeram modulando
“Regina coeli” em tanta consonância,
Que me perdura na alma esse hino brando.
Oh! dos celestes prêmios que abundância
Se contém nesses cofres, que hão guardado
Frutos colhidos na terrena estância!
No céu se frui tesouro acumulado,
No pranto e em Babilônia conseguido,
Onde o ouro ficara desdenhado.
Do filho de Maria conduzido,
Lá triunfa, por sua alta vitória,
Das duas leis aos santos reunido,
Quem guarda chaves da celeste glória.
CANTO XXIV
[ Beatriz roga aos santos que iluminem o intelecto de Dante. Eles manifestaram o seu assentimento. O mais luminoso entre os santos, S. Pedro, aproxima-se mais do Poeta, o interroga sobre a Fé. O apóstolo aprova inteiramente as respostas de Dante o abençoa, cingindo-o três vezes com o seu esplendor. ]
“Ó SODALÍCIO, à ceia convidado
Do cordeiro de Deus, que dá sustento
Tal, que o apetite heis sempre saciado,
Se inda antes de chegar ao passamento
Preliba este homem — assim Deus dispensa —
Da mesa, em que comeis, tênue fragmento:
Alívio dai-lhe em sua sede imensa.
Na fonte sempre hauris, de que deriva
Quanto ele, sôfrego aspirando, pensa.” —
Disse então Beatriz. Com flama viva,
À guisa de cometa, a grei contente,
Como esferas em pólos, gira ativa.
Em relógio quem põe atenta a mente,
Das rodas uma cuida estar sem moto
E correndo estar outra velozmente:
Pelo vário compasso que lhes noto
Nas coréias, já lento, já apressado,
Da glória sua a estimativa adoto.
Do círc’lo em mor beleza assinalado
Um lume vi surgir tão venturoso,
Que outro nenhum ficara avantajado.
Em torno a Beatriz girou formoso
Por vezes três com tão divino canto,
Que trasladar não posso o som donoso.
Screver não cabe à pena enlevo tanto,
Cores não tem palavra ou fantasia,
Que exprimam propriamente o doce encanto.
— “Santa irmã nossa, que dessa arte envia
Devotos rogos, teu ardente afeito
Dessa bela coréia me desvia.” —
Parando, o bento lume ao claro aspeito
De Beatriz o sopro há dirigido,
Que falou do que eu disse pelo jeito.
— “Eterna luz desse varão subido,
Que de Deus” — torna — “as chaves da alegria
Que infinda à terra deu, hás recebido,
“Deste homem como queiras avalia
O saber sobre a Fé lhe perguntando,
Pela qual sobre o mar andaste um dia.
“Se bem crê, se bem spera, terno amando,
Certo sabeis, pois tens fitado a vista
Onde tudo se está representando.
“Mas como cidadãos o céu conquista
Pela Fé verdadeira, para honrá-la
Explique ele por que na Fé persista.” —
O bacharel apresta-se e não fala
Té que o Mestre a questão haja of’recido,
Por aprová-la, não por terminá-la:
Assim, de todas as razões munido,
Dispus-me, enquanto Beatriz se explica,
A tal assunto, por tal Mestre arguido.
— “Teu pensar, bom cristão, me significa:
O que é Fé?” — Presto, ouvindo, o rosto alçava
Para a luz, que a questão desta arte indica.
Voltei-me a Beatriz: já me acenava
Para que sem detença água fizesse
Brotar da interna fonte, onde a guardava.
— “A graça, que concede eu me confesse
Ao sublime Primópilo” — assim digo —
“Permita que os conceitos claro expresse!
“Como escrito, Pai meu,” — depois prossigo —
“Foi com verdade pelo irmão amado,
Que Roma em bom caminho pôs contigo,
“É a Fé a substância do esperado
E argumento evidente do invisível:
Da Fé a essência assim tenho julgado.” —
Tornou-me: — “O parecer teu é plausível,
Se o porque foi substância definida
E argumento te fica inteligível.” —
— “De mistérios” — disse eu — “soma crescida,
A mim nestas esferas revelada,
Está na terra aos olhos escondida.
“Sua existência em crença é só firmada,
Em que se fundamenta alta Esperança:
Substância, pois, tem sido intitulada.
“E como em crença o raciocínio lança
As premissas sem ter mais outra vista,
Por isso de argumento o nome alcança.” —
— “Se quanto lá na terra homem conquista
Por doutrina, assim fosse comprendido,
Lugar faltava ao engenho do sofista” —
Daquele aceso amor foi respondido;
E mais: — “Nesta moeda examinado
Metal e peso muito bem tem sido.
“Mas diz: na bolsa a tens arrecadado?” —
— “Sim” — tornei — “tão redonda é, tão polida,
Que do bom cunho estou certificado.” —
A voz então, desse esplendor saída
Perguntou-me: — “Essa pedra preciosa,
Em que toda virtude se acha erguida
“Donde a tens?” — Eu: — “A chuva copiosa,
Pelo Espírito Santo derramada
Na Lei antiga e nova portentosa,
“Razão é, porque foi-me demonstrada
Com agudeza tal, que outra seria
Obtusa, se lhe fora comparada.” —
— “Porque divina lei pareceria
A nova e a antiga” — a voz logo retorna —
“Que a tão profunda convicção te guia?” —
— “É prova que a verdade clara torna
De obras a série” — eu disse — “a que natura
Nunca ferro aqueceu, bateu bigorna.” —
A luz me replicou: — “Quem te assegura
Que as obras fossem tais? Quem defendido
Por provas deve ser. Quem mais to jura?
Então falei: — “Se o mundo convertido
Sem milagres de Cristo à lei se houvesse,
Este o maior milagre houvera sido;
“Porque pobre, em jejum, para ter messe
Semeado hás na terra ótima planta:
Onde foi vinha, hoje espinhal só cresce.” —
Mal concluía, quando a corte santa
Nas esferas — Louvemos Deus! — entoa
Nessa toada, em que no céu se canta.
Do sublime Barão, que até a c’roa
De ramo em ramo me elevado havia,
Naquele exame, a voz de novo soa.
— “A graça com tua mente consorcia
Tanto, que por teus lábios tem falado:
Té aqui respondeste o que cumpria.
“Dou, pois, assenso ao que me tens tornado;
Mas tua crença exprime, lhe acrescendo
De que fonte à tua alma ela há brotado.” —
— “Ó Santo Padre, ó Spírito, que vendo
Stás quanto creste, tanto que chegaste
Ao Sepulcro, o mais moço antecedendo,
“Direi” — lhe torno — “(assim determinaste)
Da minha Fé a fórmula evidente,
Sua origem direi como ordenaste.
“Em um só Deus eu creio onipotente,
Eterno, que, imutável, os céus move
No desejo e no amor sempre clemente.
“São, para que tal crença se comprove,
Metafísica e física discretas;
Mas da verdade a prova também chove
“Por Moisés, pelos salmos, por profetas,
Pelo Evangelho e escritos, que inspirado
Vos tem o Esp’rito Santo, almas seletas.
“Nas Três Pessoas creio afervorado;
Creio na essência delas Una e Trina,
Tanto que é stá com são bem conjugado.
“O que de altos mistérios da divina
Condição digo, em traços mil se assela
Em mim pela evangélica doutrina.
“Este o princípio, esta a fagulha bela,
Que depois se dilata em flama ardente
E em mim cintila, qual nos céus estrela.” —
Qual patrão, que de servo diligente
Aprazíveis notícias escutando,
Feito o silêncio, o abraça de contente,
Assim, quando acabei, me abençoando
E cantando, três vezes me acercava
O esplendor apostólico, mostrando
Das respostas que eu dei quanto folgava.
CANTO XXV
[ S. Tiago examina o Poeta sobre a Esperança, perguntando em que ela consiste, se ele a possui, de onde veio nele. À segunda pergunta responde Beatriz; às outras duas responde Dante. Aproxima-se S. João Evangelista, e diz a Dante que o seu corpo, apesar da comum opinião, morrendo, ficara na Terra. ]
SE este sacro poema houver podido
(Em que tem posto a mão o céu e a terra
E em que hei por tanto tempo emagrecido)
Aquele ódio abrandar que me desterra
Do belo aprisco, onde eu dormi cordeiro,
Contrário aos lobos, que lhe movem guerra;
Com voz e lã melhor que de primeiro
Voltando, eu do batismo sobre a fonte
Hei-de, vate, cingir-me de loureiro;
Pois lá entrei na fé, que uma alma insonte
Aproxima de Deus e causa há sido
De girar Pedro em torno à minha fronte.
Então a nós um lume vem saído
Da grei, a que a primeira pertencia
Dos vigários, que há Cristo instituído.
Beatriz, resplendente de alegria,
— “Olha!” — me disse — “Eis o Barão famoso
Por quem vai-se à Galízia em romaria!
Quando à consorte acerca-se amoroso
O pombo, cada qual mostra, girando
Entre arrulhos o ardor seu amoroso:
Os dois Príncipes vi tão ledos, quando
Da glória sua no esplendor se acolhem
O manjar, que se frui no céu louvando.
Depois que as saudações entre si colhem
Coram me cada um tácito fica
Com tais clarões, que de os olhar me tolhem.
Sorrindo, Beatriz assim se explica:
— “Ó alma egrégia, por quem foi descrita
Delícia, de que a nossa igreja é rica,
“Aqui a Esp’rança faz ouvir bendita:
Mostraste-a, toda vez que aos três há dado
Jesus de vê-lo em sua Glória a dita.” —
— “Ergue o rosto com spírito esforçado,
Pois da terra quem sobe a tanta altura
Ser deve ao brilho nosso afeiçoado.” —
O ânimo desta arte me assegura
A luz segunda; a vista, pois, levanto
Aos montes, cujo lume a fez escura.
— “Se o nosso Rei te há dado favor tanto,
Que vês os condes seus antes da morte
Do seu palácio no recinto santo,
“Porque, vindo é verdade desta corte,
A Esperança, que tanto os homens prende,
Em ti, nos mais o coração conforte.
“O que ela seja diz, como se acende
Em tua alma; diz donde se origina.” —
Estas palavras inda o santo expende.
E quem as plumas conduziu beni’na
Das asas minhas neste vôo ingente,
Tornou, por que a resposta me previna:
“A militante Igreja um mais ardente
Filho não tem na Esp’rança, como escrito
É no Sol, que alumia a nossa mente.
“Eis por que Deus permite que do Egito,
Para ver a Sião tinha chegado
Antes de estar o tempo seu prescrito.
“Os outros pontos dois lhe hás perguntado,
Somente por que à terra ele respira
Quanto és desta virtude deleitado.
“Lhos deixo, sem que assim vangloria aufira;
Poderá responder ao teu contento,
Se a Graça divinal o alenta e inspira.
“Como discíp’lo, que a seu Mestre atento
De assunto fala, em que é perito e experto, —
Folgando de mostrar zelo e talento,
“Esperança é” — disse tu — “guardar certo
Da Glória, pela Graça produzida
E mérito provado e descoberto.
“Sendo luz de astros muitos procedida,
Pelo sumo cantor do Sumo Guia
Foi-me primeiro na alma introduzida.
“Espere em ti — na excelsa Teodia
Disse — aquele, que o nome teu conhece:
Com fé como eu, quem não conheceria?
“Como seu rocio, também sobre mim desce
O da Epístola sacra e, redundante,
Outros inunda a chuva, que recresce.”
Falava assim: do seio coruscante
Daquele incêndio tremulava chama,
Qual relâmpago, súbita, incessante.
Respondeu-me: — “Esse amor que inda me inflama
Pela virtude, que me dera alento
No martírio, ao findar da vida a trama,
“Atrai-me a ti, que tens contentamento
Por ela; e, pois, me diz de qual ventura
A Esperança te fez prometimento.” —
E eu: — “Foi declarado na Escritura
O sinal (sua forma está sabida)
De almas, que, amigas, o Senhor apura
“Disse Isaías: cada qual cingida
Em sua pátria será de dupla veste,
E a pátria sua é nesta doce vida.
“Por que mais a verdade manifeste,
Das cândidas estolas discorrendo
Mais claro teu irmão falou do que este.” —
Palavras tais eu proferido havendo.
“Sperant in te” ressoa lá da altura,
Ao hino os coros todos respondendo.
Lume entre eles depois tanto fulgura,
Que, se o Câncer tivesse igual estrela,
Fora do inverno um mês luz sem mistura.
Como leda no baile entra a donzela
E, para a noiva honrar, dança inocente
Sem que vício ou vaidade impere nela:
O clarão assim vi resplandecente
Aos dois se apropinquar, que circulavam
Quanto convinha ao seu amor ardente.
Entrou no canto e dança, que formavam:
Qual sem voz sposa imota, aos três o aspeito
De Beatriz os olhos contemplavam.
— “O santo é este, que estreitava ao peito
O nosso Pelicano e dele há sido
Sobre a cruz à missão sublime eleito.” —
Assim diz Beatriz. Sempre embebido
O seu olhar está na luz terceira
Depois, como antes de eu a ter ouvido.
Quem do sol fita os olhos na carreira,
Crendo vê-lo de eclipse anuviado,
Para ver sente o efeito da cegueira:
Por esse lume assim fui deslumbrado.
— “Por que te afanas procurando” — fala —
“O que no céu não pode ser achado?
“Na terra o corpo meu à terra iguala,
Até que o nosso número complete
O que eterno propósito assinala.
“Ter vestes duas só do céu compete
No claustro aos lumes dois, que se elevaram:
Esta verdade ao mundo teu repete.” —
Calou-se e os esplendores três pararam
E com eles a doce melodia,
De que os sons a coréia acompanharam.
O remo, assim, que o mar de antes feria,
Se há fadiga ou perigo, é bem que cesse,
Logo ao sinal do apito, que assobia:
Na mente ai! quanto a comoção recresce,
Quando o gesto não pude ver formoso
De Beatriz ainda que eu stivesse
Ao seu lado e no mundo glorioso!
CANTO XXVI
[ O apóstolo S. João interroga Dante a respeito da terceira virtude teologal, a Caridade. Responde Dante e os seus conceitos são aplaudidos por toda a corte celeste. Beatriz reaviva no Poeta a vista que estava ofuscada. Aproxima-se Adão que lhe fala e esclarece alguns pontos duvidosos de Dante. ]
FOSSE já morta a vista eu receava,
Eis da fúlgida flama, que ofuscara,
Atento fez-me a voz, que assim falava:
— “Enquanto a força a vista não repara,
Que em minha nímia luz hás consumido
Compensação no discursar depara.
“Começa e diz pra onde é dirigido
Teu espírito e sabe que, se escura
A vista sentes, não a tens perdido;
“Pois quem te guia na divina altura
Virtude tem no olhar, como Anania
Nas mãos tivera, que a cegueira cura.” —
— “Quando bem lhe aprouver” — eu respondia —
“Remédio aos olhos dê, por onde a chama
Com ela entrou, que sempre incendia.
“O Bem, que pelo céu prazer derrama
Alfa e Ômega há sido na escritura,
Que amor ou forte ou leve em mim proclama.”
Aquela mesma voz, que me assegura
Não haver eu de súbito cegado,
Inda excitar-me a lhe falar procura.
— “Por mais estreito crivo ser passado
Deves” — disse — “e portanto denuncia
O que ao fito há teu arco endereçado.” —
— “Razões” — tornei — “da sã filosofia
E autoridade, que daqui descende,
Me influem desse amor toda a energia.
“O bem, enquanto bem, quando se entende,
Ateia amor que é tanto mais ardente,
Quanto mais de bondade em si comprende.
“É pois, essência, em si tanto excelente,
Que todo bem, que ser lhe possa externo
Reflexo é só da sua luz fulgente;
“Atrai, mais que outra, o espírito, que, terno,
Amando, conhecer pode a verdade,
Que desta prova é o alicerce eterno.
“Dessa verdade eu vejo a claridade
Naquele, que demonstra o amor primeiro
De todo ente, a quem cabe eternidade.
“Vejo na voz do Autor, só e verdadeiro,
Que de si disse, a Moisés falando:
— O bem te hei-de mostrar perfeito e inteiro. —
“Também tu mo revelas, começando
O sublime pregão, que à terra ensina,
Mais que os outros, o arcano venerando.” —
— “Pela razão” — ouvi — “pela divina
Autoridade, que com ela acorda,
O amor teu, e mais que tudo a Deus destina.
“Diz-me, porém: não sentes outra corda,
Que para Deus te arrasta? Faz patente
Com quantos dentes esse amor te morda.” —
Da Águia de Cristo não me foi latente
O propósito santo e onde queria
Na profissão levar-me diligente.
— “Estímulos, que possam” — lhe eu dizia —
“Para Deus impelir a humana essência,
Tem minha caridade noite e dia;
“Porque do mundo o ser; minha existência;
A morte que sofreu para que eu viva;
O que espera um cristão da fé na ardência;
“Do bem, que eu disse, a inteligência ativa,
Me afastaram do mar do amor culpado,
Do santo amor me conduzindo à vida.
“As flores, de que o horto é todo ornado,
Do Jardineiro eterno, eu amo tanto,
Quanto ele em perfeição lhes tem doado.” —
Calei-me e resoou melífluo canto
Pelo céu, que Beatriz acompanhava,
Dizendo todos: — Santo! Santo! Santo! —
Como pungente luz olhos destrava
Do sono, a vista, o brilho procurando,
Que as pálpebras descerra, invade, agrava;
E o desperto, os motivos ignorando
Da súbita vigília, olhos desvia,
Na mente, entanto, a reflexão calando:
Em mim, dessa arte, a névoa desfazia
De Beatriz o olhar, que pelo espaço
De mais de milhas mil resplendecia.
Então mais claro que antes a ver passo:
Quarta luz perto a nós, maravilhado,
Diviso e uma pergunta logo faço.
E ela: — “Nesse lume, ora chegado,
Seu Criador contempla a alma primeira
Que a Virtude primeira haja criado.” —
Qual fronde, que, ao soprar da aura ligeira,
O cimo curva e, logo após, se erguendo
Pela força, que a torna sobranceira,
Tal eu, essas palavras lhe entendendo
Atônito fiquei; depois seguro
Fez-me um desejo, que me estava ardendo.
— “Único pomo, que nasceu maduro!
Dos homens pai, que hás visto filha e nora
Em cada esposa então e no futuro!
“Devota e humilde a minha voz te exora!
Fala-me, pois! Do meu desejo és certo;
Almejo ouvir-te, e não to expresso agora.” —
Como de manto um animal coberto
Movimento, que os membros seus agita
Pelo envoltório, deixa descoberto:
Assim essa primeira alma bendita
Pelo tremor da sua luz mostrava
O prazer de agradar-me quanto a excita.
— “Não hei mister declares” — me tornava —
“Teu desejo, melhor que tu sabendo
Quanto a certeza em tua mente grava.
“Nesse espelho infalível estou lendo,
Em que é todo o visível refletido,
Cousa nenhuma o refletir podendo.
“Ouvir aspiras quando vindo hei sido
Lá no santo jardim, donde, guiado
Por tão comprida escada, tens subido;
“Quanto tempo ali fui deliciado;
Da cólera divina a causa vera;
Que idioma falei, por mim formado.
“O pomo, ó filho meu, não considera
Motivo só por si do acerbo exílio,
Mas ordens transgredir, que Deus me dera.
“Lá donde Beatriz moveu Virgílio
Quatro mil e trezentos e dois anos
A ventura anelei deste concílio.
“Do desterro senti na terra os danos,
Enquanto vezes novecentas trinta
Seu giro fez o sol do céu nos planos.
“Antes que a gente de Nemrod consinta
Em meter mãos à obra interminável,
A língua, que falei, se achava extinta.
“De homem feitura sempre perdurável
Não é; vem do capricho e um dia cessa,
Do céu segundo o influxo variável.
“A humana fala a natureza expressa;
Por ela o modo de falar deixado
Ao homem está, segundo lhe interessa.
“Antes de eu ter no inferno penetrado
El o supremo bem significava,
Que desta leda luz me há circundado;
“Depois em Eli o nome se mudava;
Qual rama dos mortais uso varia,
Sucede a folha nova à que secava.
“No monte, que mais alto ao ar se envia
Santa vida vivi, depois culpada,
Da hora prima à sétima do dia,
Noutro quadrante o sol fazendo entrada.”
CANTO XXVII
[ S. Pedro exprobra os maus pastores da Igreja; e todos os santos manifestam a sua aprovação às palavras do Apóstolo. Novamente o Poeta contempla a Terra, e, depois, com Beatriz, eleva-se ao Primeiro Móvel. ]
GLÓRIA ao Pai! Glória ao Filho! ao Espírito Santo!
Uníssono entoava o Paraíso:
Senti-me inebriado ao doce canto.
Pareceu-me o que eu via um doce riso
Do universo: tomava-me a ebriedade
Pelos olhos e ouvidos o juízo.
Ó júbilo! Ó inefável f’licidade!
De paz ó vida inteira e de ternura!
Riqueza certa, isenta de ansiedade!
Fulgia-me ante os olhos a luz pura
Dos esplendores quatro; mais brilhante
O que veio primeiro eis se afigura!
E tal se me apresenta o seu semblante,
Qual fora Jove, se, aves ele e Marte,
A plumagem trocassem rutilante.
A Providência, que no céu reparte
Tarefa a cada qual, calar fizera
O venturoso coro em toda parte,
Quando lhe ouvi: — “A cor se em mim se altera
Não o estranhes: enquanto estou falando
Mudança igual em todos ver espera.
“Quem, meu lugar na terra ora usurpando,
Meu lugar, meu lugar, vago em presença
De Cristo o deixa, converteu nefando
“Meu cemitério na sentina imensa
De sangue e podridão, com que o perverso,
Do céu lançado, frui delícia intensa.” —
O céu então eu vi todo submerso
Na cor, que por manhã e à tarde acende
Sobre as nuvens o sol do lado adverso.
Qual a dama, que à virtude cultos rende
E, de si bem segura, se enrubesce,
Quando torpezas de outra ouve e compreende,
Beatriz transmudada me parece,
Ao céu ante a paixão do Onipotente
Igual eclipse em seio que envolvesse.
Prosseguiu logo o Apóstolo eminente;
E tanto a voz lhe estava demudada,
Que mais não fora o vulto seu rubente.
— “Com sangue meu a Igreja alimentada
Não foi, nem Lino e Cleto o seu lhe deram
De ouro em ganância para ser mudada.
“Como Calixto e Pio mereceram,
Urbano e Sixto a sempiterna vida?
Pós muito pranto o sangue seu verteram.
“Por nossos sucessores dividida
Não quisemos a grei — parte chamada
À destra, parte à esquerda repelida;
“Nem que das chaves fosse a insígnia usada
Por estandarte em campo sanguinoso
Contra cristãos em guerra encarniçada.
“Nem que, por privilégio mentiroso
De traficância, em selo eu figurasse
Quanta vez de pudor me acendo iroso!
“Com vestes de pastor lobo rapace
Daqui em cada pascigo se avista:
Para que não surgiu Deus, que os fulminasse?
“De Gasconha e Cahors raça malquista
Beber-nos sangue vem: belo começo,
O indi’no fim que tens, quanto contrista!
“Mas Deus que a Roma, do seu mal no excesso,
De mundo em glória os Cipiões mandava,
Dará socorro, como foi-me expresso.
“E tu, que o peso da matéria grava,
Voltando, ó filho, ao mundo lhe revela
Quanto eu te digo dessa gente prava.” —
Como o vapor nos ares se congela,
E em flocos baixa, quando o sol tocado
Pelas pontas está da Cabra bela;
Assim vi eu o éter adornado
De clarões triunfantes, que detido
Haviam-se na altura ao nosso lado.
Tinha-os a vista na ascensão seguido
E os seguiu té que enfim subir avante
Pelo espaço não foi-lhe permitido.
Que eu não podia ver mais adiante
Notando, Beatriz disse: — “Repara
Quanto agora, girando, estás distante.” —
Desde a hora, em que a terra eu contemplara,
Por todo o arco, que o clima faz primeiro,
Do meio até o fim, já me avançara.
A passagem, que Ulisses aventureiro
Além Gades tentou e a plaga via,
Em que Europa foi cargo prazenteiro,
Naquela área inda mais divisaria;
Porém sob os meus pés o sol andava
Distância, que a de um signo precedia.
A namorada mente, em que reinava
Sempre a Senhora minha, no incentivo,
Mais que nunca de olhá-la se inflamava.
Se de arte ou natureza almo atrativo
Pelos olhos prender nos pode a mente,
Seja em pintura, seja em corpo vivo,
Nada foram, conjuntas, certamente,
Ante o enlevo que o peito me ilumina,
Quando me volta ao gesto seu ridente.
Virtude, olhando-a em mim tanto se afina
Que do ninho de Leda me destrava
E ao céu velocíssimo me empina.
Tanto na altura e brilho se mostrava
Uniforme este céu, que eu não sabia
Qual pouso Beatriz me destinava.
Ela, porém, que o meu desejo via
No sorriso tão leda assim começa,
Que em seu rosto exultar Deus parecia.
— “O movimento, que no centro cessa,
Em torno ao qual, porém, tudo o mais gira,
Daqui partindo à roda se endereça.
“Somente a sua ação este céu tira
Da soberana Mente, em que se acende
O amor, que o move, o influxo, que respira.
“De luz e amor um círculo o compreende,
Assim como ele aos mais; deste precinto
Unicamente quem lho cinge entende.
“Seu movimento é por si só distinto,
Por ele os outros céus medidos sendo,
Como dez por metade e por seu quinto.
“Ficas, portanto, ao claro conhecendo
Como o tempo a raiz neste céu tenha,
As ramas pelos outros estendendo.
“Fatal cobiça; que os mortais despenha
Em tão profundo pélago, que alçar-se
Do abismo fora a vista em vão se empenha!
“Nos homens o querer pode enflorar-se,
Mas de chuvas contínuas açoutado
Bom fruto são não há-de conservar-se.
“Fé, inocência, abrigo têm buscado
Nas crianças; mas cada qual se esquiva
Antes que à face o buço haja apontado.
“Quem balbucia de comer se priva;
Em tendo solta a língua, a qualquer hora
Mostra em toda iguaria fome ativa.
“Quem balbucia a mãe respeita e adora;
Mas, quando a voz já sente desprendida,
Vê-la em mortalha o seu desejo exora.
“Assim de alva se torna enegrecida
A cutis da gentil filha daquele,
Que traz manhã, da noite em despedida.
“Estranheza, porém, de ti repele
Vendo o gênero humano transviado:
Quem há que em bem regê-lo se desvele?
“Por força do centésimo olvidado
Inda antes de deixar Janeiro o inverno,
Hão de as esferas dar tão forte brado,
“Que a fortuna, de esp’rança alvo hodierno
Fará que as popas dêm lugar às proas,
A armada correrá com bom governo
E após as flores virão frutas boas.” —
CANTO XXVIII
[ Dante volve os olhos para Beatriz, que estava atrás dele; depois mira para a frente e vê um ponto brilhantíssimo, em torno do qual se movem nove círculos de luz, que giram mais rapidamente e são mais brilhantes quanto mais próximos estão dele. Aquele ponto é Deus; os círculos são os coros angélicos. ]
DEPOIS que acerca do existir presente
Dos míseros mortais mostrou verdade
Aquela a que emparaísa a mente,
Como quem vê no espelho a claridade
De tocha, que de trás esteja acesa,
Suspeita inda não tenho da verdade;
E, para olhar voltado, tem certeza
De que o vidro é fiel ao que apresenta,
Como o canto é do metro a natureza:
Assim minha memória representa
Que eu fiz, nos belos olhos me enlevando,
Com que amor cativou minha alma isenta.
De os contemplar, porém, os meus deixando
E no que esse orbe faz onipotente,
Quando em seu giro atenta-se os fitando,
Um ponto vi, que lume tão fulgente
Dardejava, que a vista deslumbrada,
Fechava-se ante o lume translucente;
Estrela, ao parecer, mais apoucada,
Junto dela, de lua figurada,
Como estrela ao pé de outra colocada.
Como a c’roa talvez, que se depara
Cingindo astro, que a torna luminosa,
Quando o vapor que a tem mais condensara,
Ígneo círc’lo, em carreira impetuosa.
Distante, ao Ponto mais veloz cercava
Do que a esfera que vai mais pressurosa.
Este círc’lo primeiro outro abraçava;
Ao terceiro o segundo, outro ao terceiro,
Ao quarto o quinto e o sexto o circundava.
Tão largo o sétimo era, que, inda inteiro,
Abrangido, por certo, o não teria
Aquele, que de Juno é mensageiro.
Oitavo e nono assim: mas se movia
Mais lento cada qual, segundo ele era
Mais longe do primeiro, que corria.
E a flama rutilava mais sincera
No que da Excelsa luz mais perto estava
Creio que em fluxo seu mais recebera.
Mas Beatriz, que o enleio meu notava
— “Daquele Ponto o céu e a natureza
Estão na dependência” — me falava.
“Olha o círc’lo mais próximo e a presteza,
Que tanto lhe acelera o movimento:
De ardentíssimo amor punge-o a viveza.” —
— “Se do mundo.” — eu lhe disse — “o regimento
Fosse qual nestes orbes aparece
Do que ouço eu conseguira já contento;
“Mas no mundo sensível me parece
Ser cada esfera tanto mais divina,
Quanto mais longe do seu centro desce,
“Se instruir-me o querer teu determina
Neste seráfico, estupendo templo,
Que só com luz e com amor confina,
“Explicar-me te digna, porque o exemplo
Não se conforma em tudo ao seu modelo:
Por saber a razão em vão contemplo” —
— “De desatar o nó se ardente anelo
Teus dedos não contentam, não te espante:
Tal é, porque ninguém tentou solvê-lo.” —
Tornou-me ela e seguiu: — “Terás bastante
No que direi de luz ao entendimento:
Aguça o engenho e escuta vigilante.
“Nos círc’los corporais o crescimento
Regula pelo influxo, que é spargido
Nas partes que lhes formam complemento.
“Mor bondade, mor bem tem produzido
De mor bem foi mor corpo aquinhoado,
Se igual primor nas partes é contido.
“O círc’lo, pois, do qual arrebatado
Gira o alto universo, é referente
Ao de amor e ciência mais dotado.
“Se à virtude a medida propriamente
Adaptas, não regendo-te a aparência
Das substâncias, que em círc’los tens em frente,
“Mirífica hás de ver correspondência
Entre maior e mais, menor e menos
Em cada céu e a sua inteligência.” —
Como os ares são fúlgidos, serenos,
Se Bóreas sopra aquela face inchando,
Que os hálitos difunde mais amenos.
Resolvendo-se a névoa e se apagando
A sombra que o hemisfério enegrecia,
E o céu, a rir-se, as pompas ostentando:
Assim eu, quando aquela que me guia
Com sua explicação minha alma aclara,
E a verdade, qual astro, me alumia.
Depois que as vozes suas rematara,
Bem como ferro a faiscar fervente,
Dos círculos cad’un flamas dispara.
Cada centelha incêndio faz ingente
Em soma tal, que a do xadrez passava,
Dobrando-se o algarismo infindamente.
De coro em coro hosana ressoava
Ao Ponto, que ao seu ubi, onde têm stado
E onde sempre estarão pra sempre os trava.
Ela, o espírito meu vendo atalhado,
Disse-me: — “Aqueles círculos primeiros
Te hão Serafins e Querubins mostrado.
Assim nos orbes seus volvem ligeiros
Por semelhar-se ao Ponto e o conseguindo,
Segundo a vê-lo estão mais altaneiros.
“Os Amores, que em torno estão, seguindo,
Tronos se chamam do divino aspeto
O primeiro ternário concluindo.
“Prazer, bem sabes, todos têm seleto,
Quanto mais sua vista se aprofunda
Na verdade, alto fito do inteleto.
“Desta arte se conhece que se funda
Mais na visão celestial ventura
Do que no amor, ação, que vem segunda.
“Da visão é a medida a mercê pura,
Por vontade e por graça produzida:
De grau em grau se enalça a criatura.
“Outro ternário, que do céu movida.
Germina em primavera sempiterna,
Pelo Áries noturno não despida,
“Hosana entoa na harmonia eterna
Com três coros; que soam de alegria
Em ordens três, em cujo seio interna.
“Ordens três compreende a jerarquia,
Dominações, Virtudes, ocupando
Potestades final categoria.
“Nos penúltimos círculos girando,
Principados e Arcanjos resplandecem;
E dos Anjos, após festivo bando.
“No Ponto as Ordens todas se embevecem,
De baixo a Deus são todas atraídas,
E uma das outras a atração padecem.
“Contemplando-as, idéias tão subidas
Dionísio formou com tanto zelo,
Que as fez, como eu, por nomes conhecidas.
“Não quis Gregório como norma tê-lo;
Neste céu quando entrou, porém, se ria
Do erro, em que estivera, ao percebê-lo.
“Mortal, que o grã mistério compreendia
E o disse à terra, não te mova espanto:
Quem tinha-o visto aqui lhe descobria
E mais verdade deste império santo.” —
CANTO XXIX
[ Beatriz esclarece a Dante que os anjos foram criados por Deus no mesmo tempo em que foram criados os céus. Fala-lhe dos anjos fiéis e dos anjos rebeldes, os quais foram precipitados no Inferno. Censura os falsos filósofos e os padres mentirosos que esquecem que o escopo da predicação é persuadir os homens a serem cristãos, e vendem as indulgências para obter bens materiais. ]
QUANDO aos dois gentis filhos de Latona,
Um por Áries coberto, outro por Libra,
A um tempo cinge do horizonte a zona,
Quanto espaço o zênite os equilibra,
Té que mude o hemisfério e, desprendido
Deste cinto um e outro se deslibra,
Tanto calou-se Beatriz, luzido
De riso tendo o rosto e olhos fitando
Nesse Ponto que os meus tinha vencido.
— “Teu desejo” — falou-me — “antecipando
Agora não te inquiro: já o hei visto
No centro de todo o ubi e todo o quando.
“Não para ter mais perfeição, pois isto
Fora impossível, mas porque fulgindo
O seu splendor dizer pudesse, — Existo, —
“Na Eternidade, o tempo não medindo
Nem o lugar, criar se há dignado
Amores nove o Eterno Amor se abrindo.
“Antes não tinha na inação ficado:
Nem antes, nem depois era existente,
Quando Deus sobre as águas foi levado.
“Matéria e forma puras, juntamente,
Quais setas de tricorde arco voando
Saíram do ato da Infalível Mente.
“Como, em vidro, em cristal, em âmbar quando
Luz do sol toca, é logo refletida
Do vir ao ser distância não se dando,
“Tal a obra triforme, concluída
De uma só vez, no ser raiou perfeita
Sem star parte por outra antecedida.
“Ordem foi concriada, a que é sujeita
Cada substância; o cimo foi marcado
No mundo a que por ato puro é feita;
“À força pura imo lugar stá dado;
São no meio travados força e ato
Por nó que indissolúvel se há tornado.
“Jerônimo escreveu que longo trato
De séc’los antes de outro mundo feito
Fora dos anjos o império nato.
“A verdade, porém, stá no conceito
De escritores, que influi o Espírito Santo
Verás, pensando, da verdade o efeito.
“Razão em parte o vê também, porquanto
Compreender não pudera que os motores
Inertes fossem por espaço tanto.
“Sabes, pois, onde e quando esses Amores
Criados foram e de qual maneira:
Do teu desejo apago três ardores.
“Em menos tempo do que a soma inteira
De um a vinte se faz, dos anjos parte
Turbou vosso elemento sobranceira.
“Fiel a outra emprega-se dessa arte,
Que vês: assim girando jubilosa,
Deste excelso mister se não disparte.
“O mal causou soberba criminosa
Do que hás visto no abismo do tormento,
Do mundo sob a mole ponderosa.
“Mas estes, com modesto pensamento,
Mostraram-se à Bondade agradecidos,
Que lhes deu tão sublime entendimento.
“Na vista se exaltando, enriquecidos
São de mérito e graça iluminante,
Por querer certo e firme dirigidos.
“Não duvides; e sabe, de ora avante,
Que receber a graça é meritório,
Segundo o afeto mostrar-se constante.
“Já, pois, este celeste consistório,
Se quanto ora te hei dito a mente alcança,
Bem podes contemplar sem adjutório.
“Como em vossas escolas se afiança,
Na terra, que é da angélica natura
O querer, o entender, o ter lembrança,
“Eu devo ainda revelar-te a pura
Verdade, que entre vós se há confundido,
Sendo enleada por tão má leitura.
“Estas substâncias, o prazer obtido
De verem Deus, jamais rosto voltaram
Dos olhos a que nada oculto há sido.
“Seu ver, novos objetos não cortaram;
Não há razão, por que se lhes suponha
Rememorar idéias, que passaram.
“Assim na terra sem dormir se sonha,
Crendo e não crendo proferir verdade:
Neste caso há mais culpa e mais vergonha.
“De opiniões não tendes fixidade
Filosofando, tanto vos transporta
Da ostentação e de o pensar vaidade.
“No céu menos do que isto se suporta —
Ser a Santa Escritura desdenhada
Ou ter inteligência errada e torta.
“Para ser pelo mundo semeada
Quanto sangue custou pouco se atenta,
E quanto a crença humilde a Deus agrada.
“Qual para alardear engenho, inventa;
Quando o Santo Evangelho está calado
Tais invenções o púlpito comenta.
“Qual diz que a lua, tendo atrás voltado,
No ato da Paixão de Cristo, houvera,
Interpondo-se, a luz do Sol velado.
“Qual afirma que o lume se escondera
Por si mesmo; e o eclipse à Índia, à Espanha
Comum como à Judéia, se fizera.
“Em Florença não há cópia tamanha
De Lapi e Bindi quanto só num ano
O púlpito de contos desentranha.
“Desta arte a ovelha, que não sabe o engano,
Do pasto volta túmida de vento,
Desculpa não lhe dá não vendo o dano.
“Não disse Jesus Cristo ao seu convento:
Parti e ao mundo apregoai mentira;
Mas deu-lhes da verdade o fundamento;
“Ele tão alto, em sua voz se ouvira,
Que foi-lhes o Evangelho escudo e lança
Nos prélios, de que a Fé vitriz saíra.
“Ora em sermões o trocadilho, a chança
Estão na voga; o riso provocando
Incha o capuz; por nada mais se cança*.
“Se o vulgo vira o pássaro nefando,
Que em cógula se aninha, não quisera
Indulgências, em que se anda confiando;
“Stultícia tal da terra se apodera,
Que, em prova e testemunho não firmado,
Qualquer a dá-las apto considera.
“De Santo Antônio assim medra o cevado
E outros muitos, que os porcos mais ascosos,
Que pagam com dinheiro não cunhado.
“Mas longa vai a digressão; cuidosos
Os olhos volve à verdadeira estrada;
O tempo é curto, andemos pressurosos.
“É tanto a grei dos anjos avultada,
Que nem por voz, nem por humana mente
Ser pode a conta sua calculada.
“Bem te demonstra a reflexão prudente
Que não diz dos milhares, que revela
A soma Daniel precisamente.
“A luz primeira, que irradia nela,
É por maneiras tantas recebida,
Quantos fulgores são, que a fazem bela.
“E, pois que a percepção logo é seguida
Do amor, do afeto angélico a doçura
Está em graus diversos aquecida.
“Do Poder Eternal vê, pois, a altura
E grandeza, que em espelhos tão brilhantes
A sua imagem multiplica pura,
Permanecendo um sempre como de antes.”
CANTO XXX
[ Os nove coros angélicos aos poucos vão desaparecendo, Dante volve os seus olhos novamente para Beatriz, cuja beleza é agora maravilhosa a tal ponto que renuncia a descrevê-la. Eles estão no Empíreo, e Dante vê um rio de luz, cujas ribas estão esmaltadas de flores. Do rio saem centelhas que formam flores e depois voltam para as ondas. Enfim vê uma grande rosa de luz na qual aparecem anjos e os bem-aventurados. No meio há um trono preparado para o imperador Henrique VII. ]
TALVEZ milhas seis mil de nós distando,
A hora sexta ferve e deste mundo
A sombra vai-se ao nível inclinando,
Quando o meio do céu, p’ra nós profundo,
Tal se faz que não mostra o seu semblante
Mais de uma estrela deste val ao fundo;
E enquanto vem do sol a radiante
Núncia, o céu olhos cerra, adormecido
Um após outro até o mais brilhante:
Tal o triunfo, sem cessar movido
De gáudio, em torno ao Ponto deslumbroso,
Que parece, contendo estar contido,
Extinguiu-se aos meus olhos vagaroso.
Não vendo a pompa mais, a amor cedendo,
A Beatriz voltei-me fervoroso.
Num só louvor eu, resumir querendo
Dela o que vezes mil tenho cantado,
Frustara o intento, o esforço meu perdendo.
Pelo humano ideal imaginado
Não seria o primor, que vi mas, creio,
Gozá-lo todo, só a Deus é dado.
Neste árduo passo superado, anseio:
Vate jamais em trágico poema
Ou cômico sentiu tamanho enleio;
Quanto a vista ao clarão do sol mais trema.
Tanto a memória do seu doce riso
As potências do espírito me algema.
Dês que vi do seu gesto o paraíso
Na terra até me alçar a visão pura
Meu canto renovar não foi preciso.
Mas seguir-lhe a sublime formosura
Nos versos meus agora não me atrevo,
Como artista, que o extremo esforço apura.
Beatriz, sendo tal que a deixar devo
A tuba, mais que a minha, sonorosa,
Enquanto esta árdua empresa ao termo levo,
Com gesto e voz de guia cuidadosa,
— “Ao céu que é pura luz” — disse — “ao presente
Alçamo-nos da esfera mais vultosa,
“Luz intelectual, de amor ardente,
Amor do sumo bem, que enche a alegria;
Alegria em dulçores transcendente.
“Do céu verás, na santa bizarria,
Uma e outra milícia: uma no aspeto
Que hás de ver do final Juízo em dia.”
Como aos visivos espíritos direto
Relâmpago, que a ação lhes tolhe e os priva
De discernir o mais patente objeto,
Circunfluiu-me assim uma luz viva
Com véu do seu fulgor, que me impedia
Em claridade ver tanto excessiva.
— “Sempre o Amor, que este céu tanto extasia,
Por ser o círio à flama aparelhado,
Este saudar a quem recebe envia.” —
Bem não tinha estas vozes escutado,
Eis senti que virtude milagrosa
A força minha havia sublimado;
Senti vista mais que antes poderosa
E tal, que a luz mais penetrante e pura
Afrontar poderia valorosa.
Fúlvido lume um rio me afigura,
Entre margens correndo, que esmaltava
A primavera da celeste altura.
Do seio essa corrente arremessava
Centelhas; que entre as flores se espargiam
Como rubis, que o ouro circundava.
Quando ébrias de perfumes pareciam
Reprofundavam na ribeira bela:
Se umas entravam, outras emergiam.
— “O desejo, que te urge e te desvela,
De saber quanto vês maravilhado
Me agrada neste excesso que revela.
“Não serás em tal sede saciado
Senão dessa água tendo já bebido” —
Dos meus olhos o sol me há declarado.
“Os topázios, que movem-se, o luzido
Rio e das flores o matiz ridente
Prefácio umbroso da verdade hão sido.
“Não, por ser isto impenetrável à mente,
Mas por defeito da fraqueza tua,
Que te veda visão tanto eminente.” —
Não há criança, que tão presto rua
Ao seio maternal, em despertando
Mais tarde do que está na usança sua,
Como eu: melhor espelho desejando
Fazer dos olhos, à água me inclinava,
Que flui, pureza e perfeição nos dando.
Das pálpebras apenas se molhava
A borda, a forma, que antes vi comprida,
Do rio, circular se apresentava.
Como quem sob a máscara escondida
A face teve e logo diferente
Se mostra, essa aparência removida,
Assim flores, centelhas, mais fulgente
Alegria mostraram e eu já via
Do céu ambas as cortes claramente,
Ó de Deus esplendor, por quem já via
O triunfo do reino da verdade,
Dá-me valor; que eu diga o que já via.
Lá alto há luz de tanta claridade,
Que Deus visível faz à criatura,
Que em vê-lo tem da paz a f’licidade.
Ela se estende em circular figura,
Tão vasta que o seu âmbito faria
Ao sol desmarcadíssima cintura.
Um raio era o que dela aparecia
Refletido no Móbile Primeiro,
A que assim vida e influxo principia.
Qual em cristal do próximo ribeiro
Se espelha, como para ver as flores
E verdura, que o vestem, lindo outeiro,
Miravam-se, da luz aos esplendores,
De degraus em milhões almas tornadas
Da terra para os célicos fulgores.
Se claridades tantas derramadas
Stão no imo degrau, como da Rosa
No cimo hão de as grandezas ser esmadas?
Sem turbar-me, a amplitude portentosa,
Notava o qual e o quanto da alegria,
Em que se enleva aquela grei ditosa.
De perto, ao longe igual resplendecia;
Pois onde por si mesmo Deus governa
Da natureza a lei não mais regia.
Ao centro áureo da Rosa sempiterna,
Que em degraus dilatada rescendia
Louvor ao sol da primavera eterna,
Como quem cala, mas falar queria,
Beatriz, me atraindo, disse: — “Atenta
Dos brancos véus na imensa jerarquia
“O espaço vê, que esta cidade ostenta!
Quanto cada fileira está cerrada!
A poucos lugar vago se apresenta.
“Essa grande cadeira assinalada
Já de coroa, que te move espanto,
Antes de teres nesta boda entrada,
“Será de Henrique excelso, que há de o manto
Vestir de Augusto, para a Itália vindo
Antes de afeita ao regimento santo.
“Cega cobiça, a tantos iludindo,
Iguais vos torna a infante, que sem tino
De ama o seio não quer, fome sentindo.
“Será então Prefeito no divino
Foro aquele, que, oculto ou descoberto,
Não há de ser de acompanhá-lo di’no.
“A Deus, porém, apraz que esteja perto
Tempo, em que perderá cargo sagrado!
Terá com Simão Mago o lugar certo,
E o de Anagni será mais soterrado.” —
CANTO XXXI
[ Enquanto Dante contempla a rosa do Paraíso, Beatriz sobe e vai ocupar o lugar que lhe pertence, no meio dos bem-aventurados. S. Bernardo é o último guia de Dante. Ele lhe indica a Virgem Maria, toda brilhante de luz celeste. ]
FORMA assumindo de uma branca rosa,
Tinha ante os olhos a milícia santa,
Que em seu sangue fez Cristo sua Esposa.
A outra, que, adejando, vê, decanta
Do Onipotente a glória, que a enamora,
E a bondade, que deu-lhe alteza tanta,
Bem como abelhas, cujo enxame agora
Nas flores se apascenta, agora torna
À colmeia, onde os favos elabora,
Descia à flor imensa que se adorna
De folhas tantas, e depois subia
Ao centro, onde o amor seu sempre sojorna.
Nas faces viva flama refulgia,
Nas asas ouro, em tudo mais alvura,
Que a candidez da neve escurecia.
De sólio em sólio entrando na flor pura
E as asas agitando, derramavam
Ardor e paz, colhidos lá na altura.
As multidões aladas, que giravam,
Ao Senhor se interpondo e à flor brilhante,
Nem vista, nem splendores atalhavam,
Que a luz divina cala penetrante
No universo, segundo ele merece;
Nada lhe empece o brilho triunfante.
O gaudioso império, onde aparece
A par da grei antiga a grei recente
De olhos, de amor num fito se embevece.
Trina luz, que, num astro unicamente,
Fulgindo, alma lhes tens inebriada,
Conosco nas procelas sê clemente!
Se os Bárbaros, da terra enregelada
Vindos, que Hélice cobre cada dia
No seu giro, do filho acompanhada,
A pompa ao ver, que a Roma enobrecia,
Pasmavam, quando já Latrão famoso
Do mundo as maravilhas precedia;
Da terra eu ido ao trono luminoso,
Exalçado do tempo à eterna vida
E de Florença ao reino virtuoso,
Quanto havia de ter a alma transida!
Nem ouvir, nem falar apetecera:
Tanta alegria ao passo estava unida!
Bem como o peregrino considera
O templo, a que seu voto o conduzira,
E o que vê recontar, tornando, espera,
Na ardente luz a minha vista gira
De degrau em degrau, e agora acima,
Abaixo logo e em derredor remira.
Rostos eu vi, que a caridade anima
Com lume divinal; seu doce riso
Por suave atrativo se sublima.
Sem deterem-se mais do que o preciso,
Os olhos meus haviam rodeado
Em sua forma geral o Paraíso:
Vivo desejo em mim stando ateado,
A Beatriz voltei-me; ter queria
A solução do que era inexplicado
Ao que eu pensava o oposto respondia:
Nos gloriosos trajos de um eleito,
Em vez de Beatriz, um velho eu via.
Nos olhos transluzia-lhe e no aspeito
Alegria beni’na e o continente
De pai era, à ternura sempre afeito.
— “E Beatriz?” — exclamo eu de repente.
Tornou-o: — “Baixar me fez do meu assento
Por contentar o teu desejo ardente.
“Verás, do cimo ao círc’lo tércio atento,
Beatriz nesse trono colocada,
Que lhe há dado imortal merecimento.” —
Olhos alçando, à Dama sublimada,
Divisei que de c’roa era cingida,
Da eterna luz, em refração, formada.
Da região etérea a mais subida
Vista mortal, no pego profundando,
De tão longe não fora dirigida,
Como olhos meus, em Beatriz fitando.
Via-a, porém: a efígie livremente
Descia a mim do vulto venerando.
— “Senhora! Esp’rança minha permanente!
Que não temeste, por me dar saúde,
Teus vestígios deixar no inferno horrente!
“De tantas cousas, quantas eu ver pude
Ao teu grande valor e alta bondade
A graça referir devo e virtude.
“Sendo eu servo, me deste a liberdade,
Pelos meios e vias conduzido,
De que dispunha a tua potestade.
“Seja eu do teu valor fortalecido,
Porque minha alma, que fizeste pura
Te agrade ao ser seu vínculo solvido.” —
Desta arte orei. Lá da sublime altura,
Em que estava sorrindo-se encarou-me;
Depois voltou-se à eterna Formosura.
— “Por chegares” — o velho assim falou-me —
“Ao termo da jornada, como anelas,
A que seu rogo e santo amor mandou-me,
“Teus olhos voem pelas flores belas:
Eles mais hão-de se acender, no esguardo
Para alçar-se ao divino raio, em vê-las.
“E a Rainha do céu, por quem eu ardo
Cheio de amor, nos há de ser beni’na,
Pois sou seu servo, o seu fiel Bernardo.” —
Como quem da Croácia se destina
A ver Santo Sudário em romaria,
Por fama antiga da feição divina;
Devoto a contemplar se não sacia,
Dizendo em si: “ó Jesus! meu Deus piedoso!
Tal o semblante vosso parecia!”
Assim notei o afeito caridoso
Daquele, que em seus êxtases no mundo
A paz celeste prelibou ditoso.
— “Filho da graça, este viver jucundo
Ser-te não pode” — prosseguia — “noto,
Se os olhos teus não alças cá do fundo.
“Dos círculos atenta ao mais remoto:
Lá no trono a Rainha está sentada;
Seu reino, o céu, lhe é súdito e devoto.” —
O rosto ergui. Bem como na alvorada
A parte, em que o sol nasce no horizonte
Excede a que franqueia à noite entrada,
Assim, quase a subir de vale a monte,
No píncaro eminente parte eu via
Vencer em lume a qualquer outra fronte.
Como lá donde espera-se do dia
O carro, que perdeu Fetonte, a flama
Aumenta e noutros pontos se embacia,
Assim essa pacífica oriflama
Se avivava no meio; e a cada lado
Por modo igual se enfraquecia a chama.
De milhares o centro rodeado
Stava de anjos voando como em festa,
Cada um na arte e no brilho assinalado.
De os ver e ouvir contento manifesta
A Beldade: que extremos de alegria
A outros santos nos seus olhos presta.
Se eu tivera opulenta fantasia
E a eloqüência não menos, desse encanto
Um só traço exprimir não poderia.
No vivo lume e ao ver Bernardo quanto
Os meus olhos, absortos, se fitavam,
Volveu-lhe os seus, acesos de ardor tanto,
Que a mais fervor meu êxtase enalçavam.
CANTO XXXII
[ S. Bernardo esclarece a Dante a composição da rosa do Paraíso. De um lado estão os santos cristãos; do outro os hebreus, que acreditaram no Cristo que devia vir. Entre uns e outros a Virgem Maria. Embaixo de Maria, mulheres hebréias; mais embaixo as crianças mortas logo depois do batismo. ]
DE contemplar no seu prazer sorvido,
De instruir-me, espontâneo, se incumbia,
E este santo discurso há proferido:
— “A chaga, que sarou e ungiu Maria
Abrira a bela, que aos seus pés sentada
Divisas, do homem no primeiro dia.
“Stá na tércia fileira entronizada
Logo abaixo Raquel; resplendente
Ao lado Beatriz vês colocada.
“Sara, Rebeca, Judite e a prudente
Bisavó do cantor, que lamentara,
Miserere clamando, a culpa ingente:
“Num degrau cada uma se depara
Da rosa, folha a folha, descendendo
Como seu nome a minha voz declara.
“Estão, do degrau sétimo descendo,
Como de lá subindo, em seguimento
Hebréias, dividida a Rosa sendo:
“Formam elas, assim, repartimento,
Segundo em Cristo a fé predominara,
Da santa escada em todo o comprimento.
“Da parte, em que da flor se completara
Em cada folha o número, exalçado
Vês quem a Cristo no porvir sperara;
“Da parte, onde o hemiciclo é sinalado
De alguns lugares vagos, se apresenta
Quem creu em Cristo ao mundo já chegado.
“Como de um lado a divisão se ostenta,
Da Virgem pelo trono demarcada
E pelos mais, que a vista representa,
“Assim do oposto a sede destinada
Ao que no ermo e martírio sempre há sido
Santo e em dois anos da infernal estada,
“Lugar que, tem por conta, há precedido
Aos de Francisco, de Agostinho, Bento
E outros, de um degrau cada um descido.
“De Deus ora contempla o sábio intento:
Igualmente a fé nova e a antiga crença
Hão de encher o jardim do firmamento.
“Abaixo do degrau da escada imensa,
Que as divisões reparte, está sentado
Ninguém, porque ao seu mérito pertença,
“Mas pelo alheio, e ao modo decretado.
Seus corpos tais espíritos deixaram
Antes que discernir lhes fosse dado.
“Bem à luz da evidência to declaram
Pela voz infantil e pelo gesto:
Olha, escuta, e tuas dúvidas se aclaram.
“Duvidas e o não fazes manifesto;
Sutil pensar em nó te prende estreito;
Mas deste enleio vou livrar-te presto.
“Crer-se não pode em casual efeito
Do reino divinal no infindo espaço;
Nem há fome, nem sede ou triste aspeito.
“De eternas leis vincula tudo o laço,
E, como o anel no dedo, justamente
Da criação responde tudo ao traço.
“Portanto aquela prematura gente
Sine causa não sobe à vida eterna;
Mais ou menos, cada um entra excelente.
“Deste reino o Monarca, que o governa
De amor em tanto extremo, em tal ventura,
Que desejo nenhum além se interna,
“Criando, de sua face na doçura,
Os espíritos, dota-os a seu grado.
Isto basta saber: não mais apura.
“Ao claro está nos gêmeos demonstrado,
Que haviam, — na Escritura se refere,
Já no materno ventre batalhado.
“Assim a luz altíssima confere
A grinalda da Graça dignamente
Segundo a cor da coma, que prefere.
“Graduação, portanto, diferente
Lhes cabe sem ter méritos na vida:
Visão primeira os distinguiu somente.
“Nos primitivos tempos conseguida
Estava a salvação, quando a inocência
À fé dos pais se achava reunida.
“Às primeiras idades em seqüência,
Dos filhos trouxe às asas inocentes
Circuncisão, virtude e permanência.
“Depois de anunciada a Graça às gentes.
Sem batismo perfeito haver de Cristo
Não valeu a inocência desses entes.
“Ora atento na face, que à de Cristo
Mais se assemelha; a sua luz tão pura
Só te pode dispor a veres Cristo.” —
Vi chover de alegria tal ternura,
Que a Maria os espíritos levavam
Para voar criados nessa altura,
Que quanto os olhos antes contemplavam
Tais portentos patentes não fizera:
Os assomos de Deus se revelavam.
Dos anjos o primeiro, que viera,
Cantando “Ave, Maria, gratia plena”,
Ante Maria as asas estendera.
Respondendo à divina cantilena
De toda parte a gloriosa corte,
Resplendeu cada face mais serena.
— “Ó santo Pai, que a caridade forte
Em prol meu fez deixar o doce assento,
A ti marcado por eterna sorte,
Diz-me que anjo com tal contentamento
Da soberana a fronte olha divina,
No amor mostra do fogo o encendimento.” —
Desta arte inda vali-me da doutrina
Daquele, que enlevava-se em Maria,
Como no sol a estrela matutina.
Tornou-me: — “Alacridade e bizarria,
Quanta em anjo haver possa e nalma humana,
Há nele; assim nos dá suma alegria:
“Foi ele o que à bendita Soberana
Levou a palma, o filho de Deus quando
Quis assumir a nossa carga insana.
“Minhas vozes tua vista acompanhando,
Do justíssimo império alça aos formosos
Patrícios, de alto nome, venerando.
“Os dois, que acima brilham, venturosos
Por starem perto da Sob’rana Augusta;
São desta Flor princípios gloriosos:
“À sestra sua aquele, que se ajusta,
O Pai é que, tentado por mau gosto
Tanta amargura à sua prole custa.
À destra o Pai primeiro se acha posto
Da santa Igreja; as chaves lhe entregara
Da Rosa Cristo e o fez o seu preposto.
“E o que antes de morrer vaticinara
Duros tempos daquela amada Esposa,
Que por lanças e cravos se alcançara,
“Fica-lhe a par; e, junto, a glória goza
O capitão da gente ingrata, insana,
Que viveu de maná, revel, teimosa.
“Em frente a Pedro vês que senta-se Ana,
Tão leda a excelsa Filha contemplando,
Que imóveis olhos tem, cantado hosana.
“Em frente ao Pai dos homens venerando,
É Luzia: a Beatriz há suplicado,
Quando ias para o abismo te inclinando
“Mas da tua visão o assinalado
Tempo foge: paremos, pois, fazendo
Do pano, que há, vestido bem talhado.
“E para o Amor Primeiro olhos erguendo,
Saibamos se do seu fulgor no seio
Penetras, quanto possas te absorvendo.
“Mas, de que retrocedas no receio,
Movendo as asas, em vez de ir avante,
Impetra graça, de piedade cheio,
“Daquela, que em valer é tão pujante.
Em mente a voz me segue fervoroso,
Com vivo afeto e coração amante.” —
E esta santa oração disse piedoso:
CANTO XXXIII
[ S. Bernardo pede à Virgem Maria que conceda a Dante contemplar a Deus. O Poeta vê um tríplice círculo no qual está revelada a Trindade divina. No círculo médio vê figurada a efígie humana. No espírito de Dante se forma o desejo de conhecer o modo da união da natureza divina com a humana. Um repentino esplendor lhe revela o mistério da encarnação de Cristo; e aqui termina a sublime visão. ]
“VIRGEM Mãe, por teu Filho procriada,
Humilde e sup’rior à criatura,
Por conselho eternal predestinada!
“Por ti se enobreceu tanto a natura
Humana, que o Senhor não desdenhou-se
De se fazer de quem criou, feitura.
“No seio teu o amor aviventou-se,
E ao seu ardor, na paz da eternidade,
O germe desta flor assim formou-se.
“Meridiana Luz da Caridade
És no céu! Viva fonte de esperança
Na terra és para a fraca humanidade!
“Há tal grandeza em ti, há tal pujança,
Que quer sem asas voe o seu anelo
Quem graça aspira em ti sem confiança.
“Ao mísero, que roga ao teu desvelo
Acode, e, às mais das vezes, por vontade
Livre, te praz sem súplica valê-lo.
“Em ti misericórdia, em ti piedade,
Em ti magnificência, em ti se aduna
Na criatura o que haja de bondade.
“Esse mortal, que da ínfima lacuna
Do mundo até o empíreo, passo a passo,
Viu quanto a vida esp’ritual reuna,
“Te exora auxílio ao seu esforço escasso:
A mente sublunar lhe seja dado
A Suma Dita no celeste espaço.
“Eu que, no meu ardor, nunca aspirado
Hei mais por mim o que em prol dele peço
Meus rogos todos alço esperançado.
“Te digna conseguir que o véu espesso
Da humanidade sua despareça,
E assim lhe seja o Sumo Bem concesso.
“Depois da alta visão dá que ainda eu peça
Que conserves, Rainha Onipotente,
Sempre pura sua alma e ao mal avessa.
“De perversas paixões guarda-o clemente:
Vê Beatriz e o céu inteiro unidos,
Juntando as mãos, ao voto meu fervente!” —
Os olhos, que por Deus são tão queridos
No santo orador fitos demonstraram
Que eram seus ternos rogos atendidos.
Após ao Lume eterno se elevaram,
Em que, se deve crer, da criatura
Olhos, em modo tal, não profundavam.
E dos desejos eu, que à mor altura
Suba, o ardor cessar, como devia,
Senti, me apropinquando da ventura.
Bernardo, me acenando, me sorria,
Que para cima olhasse; mas eu estava
Já por mim mesmo tal qual me queria.
A vista, que em pureza sublimava,
Do alto, que é por si toda a Verdade,
Mais e mais pelos raios penetrava.
E o que eu vi, desde então, na imensidade
Transcendeu quanto o verbo humano intente:
Cede a memória a tanta majestade.
Qual homem, que, a sonhar, vê claramente,
Depois só guarda a sensação impressa,
E o mais em todo lhe não volta à mente;
Tal eu; quase a visão inteira cessa.
Mas no meu coração quase destila
Doçura que em seu êxtase começa.
Assim ao sol a neve se aniquila,
Assim na leve folha, entregue ao vento,
Se dispersava o orác’lo da Sibila.
Flama excelsa, que o humano pensamento
Excedes tanto, oh! presta ao meu, piedosa,
Um pouco de inefável luzimento.
E a língua minha faz tão poderosa,
Que uma centelha só da tua Glória
Aos pósteros transmita venturosa;
Pois que, em parte surgindo-me à memória
E sendo por meus versos celebrada,
Melhor se entenderá tua vitória.
Da luz pela agudeza suportada,
Eu me perdera, creio, com certeza,
Se da luz fora a vista desviada.
E, recordo-me, pois mor afouteza
Tomei, tanto, que face a face olhando,
Encarar pude na Infinita Alteza.
Tu ó Graça abundante, me animando,
Olhos fitar ousei na luz eterna,
A visão almejada consumando.
E lá na profundeza vi que se interna
Unido pelo amor num só volume
O que pelo universo se esquaderna:
Acidente, substância e o seu costume,
Conjuntos entre si por tal maneira,
Que da verdade exprimo um frouxo lume.
Creio que a forma universal inteira
Vi desse nó; porquanto mais ao largo
Sinto, ao dizer, ledice verdadeira.
Um só instante à mente dá letargo
Maior, que séc’los vinte e cinco à empresa
Que admirar fez Netuno a sombra de Argo.
De êxtase assim minha alma toda presa,
Atenta, absorta, imóvel se imergia,
E sempre em contemplar mais stava acesa.
E essa Luz tal efeito produzia,
Que em deixá-la por ver dif’rente aspeto
Consentir impossível me seria:
Que o Bem da sua aspiração objeto,
Todo está nela; é tudo lá perfeito,
Como fora de lá tudo é defeto.
Meu dizer de ora avante mais estreito
Será no que recordo que o do infante
Ainda ao seio maternal afeito;
Não porque presentasse outro semblante
A viva Luz, que a contemplar eu stava,
Antes, como depois, sempre constante;
Mas, como, olhando, a vista se alentava,
A Imutável Essência parecia
Mudar, quando só eu me transformava.
Na substância profunda e clara eu via
Da excelsa Luz três círc’los dicernidos
Por cores três, de igual periferia,
Íris de íris, um de outro refletidos
Estavam, flama o têrcio parecia
Spirando, por igual, de um, de outro unidos,
Quanto é curta expressão! Quanto a excedia
Meu pensar, ao que eu vi, este já sendo
Tal, que pouco bastante não diria.
Lume eterno, que a sede em ti só tendo,
Só te entendes, de ti sendo entendido,
E te amas e sorris só te entendendo!
O girar, que, dessa arte concebido
Via em ti como flama refletida,
Quanto foi dos meus olhos abrangido,
No seio seu da própria cor tingida
A própria efígie humana oferecia:
Foi nela a vista minha submergida!
Geômetra, que o espírito crucia
Para o cir’lo medir, em vão procura
Princípio, que ao seu fim mais conviria:
Assim eu ante a nova visão pura
Ver anelara como a image’ humana
Ao círculo se adapta e ali perdura.
Às asas minhas fora empresa insana,
Se clareado a mente não me houvesse
Fulgor, que a posse da verdade aplana.
À fantasia aqui valor fenece;
Mas a vontade minha a idéias belas,
Qual roda, que ao motor pronta obedece,
Volvia o Amor, que move sol e estrelas.
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